O que é mais forte: o conceito ou a realidade?

Acordo às 10 horas da manhã. Meu celular toca, mas não quero atender. Abro o armário e o que vejo passar na despensa uma lagartixa assustada, provavelmente por causa do meu mau hálito. A casa onde moro é dividida por uma cortina, só tem um cômodo: na frente denominou-se sala e cozinha e atrás o quarto. O banheiro fica do lado de fora da casa, é coletivo. A sala tem uma mesa velha com duas cadeiras, velhas também. A cadeira não faz parte do conjunto da mesa e cada uma é de um conjunto diferente. Procuro e de tanto procurar acho um pão e esquento um café dormido. Como o pão duro sem manteiga e tomo o meu café. Olho-me no espelho e não vejo mais nada além de uma atriz que os homens acreditam satisfazê-los sexualmente.

O telefone celular toca novamente, atendo. É o cobrador de ônibus que sai comigo todas às sextas. Mas hoje talvez eu fosse para a Avenida Carlos Gomes. Minhas concorrentes disseram que lá a procura está grande, verão em Salvador. Mas não quero dispensar o cobrador, ele quebra meu galho quando não tenho o dinheiro da passagem.

Meio-dia. Não agüento mais ficar em casa, estou com fome. Só tenho nas mãos dois reais, o que dá para comer com dois reais? O transporte eu não pago, porque, posso ir andando. Chego na Carlos Gomes em dois tempos, saio da Ladeira montanha, onde fica minha casa, e chego lá entre 10 a 15 minutos no máximo. Procuro algum lugar para almoçar e que o meu dinheiro dê para pagar. Andei de meio dia e vinte até uma da tarde a procura de um lugar barato para almoçar. Almocei um kibe frio com suco de caju, desses de 300ml. Olho no relógio já é uma e trinta da tarde, não tenho nada para fazer pela tarde. Olho em direção a Praça Castro Alves. Belo poeta Castro Alves. Lutou pela libertação do escravo e hoje eu me pergunto quem lutará contra o comércio do sexo. Eu não agüento mais!

Passo pela Praça Castro Alves rumo a Praça da Sé, quero dar uma passada no pelourinho, na verdade quero saber de minha colega se ela tem algum cliente interessante pra gente hoje, preciso almoçar amanhã.

Chego à Rua Vinte e Oito às duas horas e cinco minutos. Minha amiga tem duas filhas, uma de cinco anos e outra de sete. As duas estavam chorando por causa da fome, tinham almoçado pão com creme cracker. Percebi que minha ida tinha sido em vão, ela na situação que se encontrara não deve está com cliente nenhum bom. Conversamos, falamos um monte de casos engraçados e sempre todas as nossas conversas tinha que estar relacionadas com a nossa atividade ou trabalho, como eu digo. Saio da Rua Vinte e Oito as duas e quarenta e nove da tarde. Não irei pra casa, aliás, descerei a ladeira logo, vou sair daqui da Rua Vinte e Oito porque no verão tem horário de entrada e saída daqui. Os moradores pela noite são proibidos de saírem, não sei a causa disso, mas deve ser por conta dos turistas. A rua fica cheia de turista e a gente fica impossibilitada de sair das nossas casas, nessa prisão domiciliar.

Chego na Ladeira da Montanha às três e vinte e sete paro na casa da vizinha que mora a três casas da minha, gosto muito das nossas conversas. Ela tem cinqüenta e sete anos, já viveu muito, veio do interior da Bahia. Apaixonou-se por um marinheiro e ele a ancorou aqui em Salvador. Ela veio a passeio com ele. Não sabia que aquele passeio romântico, que só existiu pra ela, não passava de um passa-tempo pra aquele marinheiro sedento por sexo. Quando veio saber que pra ele, ela era uma prostituta, a embarcação pegou fogo, os dois brigaram e ela “ficou a ver navios”. Essa senhora que eu adoro conversar ficou em Salvador sem destino. Morou um tempo nas ruas e depois se alojou aqui na Ladeira da montanha. Ela nunca se prostitui, ganhava a vida trabalhando nas casas dos barões da Graça. Saia de casa às sete hora da manhã e chegava em casa às oito da noite.Uma senhora honesta que eu tenho o maior respeito foi enganada pelo marinheiro, tinha todo motivo para ficar na Carlos Gomes, como eu e minhas colegas ficamos, mas ela preferiu andar de cabeça erguida, como ela mesmo diz.

Meu celular toca de novo, já são quatro horas é um jovem que me conheceu em uma festa no Pelourinho, quer sair comigo amanhã, sábado. Esse cliente é desses jovens de quinze anos descobrindo o sexo. São os melhores clientes, com esses eu consigo ser carinhosa, com eles eu consigo relaxar e gozar.

Hoje eu irei sair com o cobrador, ele marcou comigo na frente do Banco do Brasil no comércio. Marcou às oito horas, essa é a hora que o ônibus vai passar, certamente iremos ao fim de linha.

Minha vizinha disse uma coisa que nunca esquecerei: “minha filha, entre viver mal e ter dignidade ou viver bem sem dignidade, eu sempre viverei mal”. Mas, é complicado você acordar pela manhã e não ter nada para colocar no estômago. Eu até que tentei conseguir um emprego honesto. Minha vizinha me levou numa casa de uma senhora para fazer uma faxina, mas a madame quando me viu nem deixou entrar em casa, da cozinha mesmo me mandou ir embora. Ela alegou que já tinha arranjado outra garota. Mas era mentira, pois quando soube pelo interfone que minha vizinha estava subindo com uma amiga que iria fazer a faxina, a senhora ficou toda contente. As portas do trabalho “honesto” estão todas fechadas para mim. Preciso viver e o único meio que eu tenho é esse, me vendendo.

Já são cinco horas e doze minutos, vou embora. Passei quase a tarde toda na casa da minha vizinha. Chego em casa e ligo a televisão.Fico ouvindo, mas não presto atenção no que está sendo exibido, só ouço, sem saber no que estou ouvindo. Na verdade estou vendo a roupa que sairei hoje.

Saio de casa e olho a fila do banheiro, tem seis pessoas na minha frente, fico na fila e quando chega uma jovem de seus quinze anos eu peço para ela guardar meu lugar, com a desculpa que deixei uma panela no fogo. Entro em casa e vou escolher a sandália que irei sair. Escolher a sandália é muito fácil. Tenho uma havaiana branca e azul, aquela tradicional que eu não vejo quase ninguém usar mais e uma outra que comprei com muito esforço, essas da marca Gooc. Comprei uma pra mim de cor preta.

Passaram-se trinta e cinco minutos, a menina vem me chamar tomada banho, me informando que eu tinha que ir logo porque a mulher que tomaria banho agora não ia deixar ninguém passar na frente dela. Eu sair de casa desembestada, revoltada com a jovem e já cheguei gritando na fila: “deixei essa filha da puta atrás de mim, essa piriguete! Só fui ver a panela no fogo e ela me atravessou! E vem você agora querendo tomar banho na minha frente, você só toma banho na minha frente se sua buceta for maior que a minha.” A mulher da fila também me ofende e fica nesse bate-boca até a hora que um senhor sai do banheiro e a mulher já atrasada para seu encontro às oito horas, entra no banheiro às pressas. Ela demora lá uns dez minutos, sai rebolando, falando: “minha buceta é maior que a sua”. E depois entra em casa sorrindo.

Cinco e quarenta, coloco uma calcinha branca e um sutiã verde. Depois deito na cama e ligo o rádio. Fico me lembrando do tempo que era criança. Minha mãe esse horário estava fazendo o café e eu com meus irmãos e irmãs tomando banho. Começo a chorar lembrando de como era prazeroso o fim do dia com minha família. O cheiro de café às seis horas. Na minha casa era eu e mais duas irmãs e mais quatro irmãos, meu pai, minha mãe e minha avó, mãe do meu pai. Tanta gente para acomodar! Tínhamos uma sala, dois quartos, a cozinha e um banheiro. Ah! Que saudade do meu banheiro, bons tempos que tinha minha privacidade no banheiro, entrava nele e não tinha hora para sair. Eu sempre fui a rueira da família, freqüentemente estava na casa de uma amiga. Minha mãe quando chegava do trabalho batia de porta em porta me procurando. Morávamos em uma ribanceira aqui na cidade de Salvador, toda vez que chovia não dormíamos, era um tormento sem fim.

Em uma festa junina, eu e meu irmão fomos a uma casa de uma tia que reside em Cajazeiras. Fomos para passar um fim de semana, mas acabamos ficando por lá uma semana. Nunca irei esquecer. Eu tinha dezesseis anos e meu irmão vinte. Ficamos sabendo pelo noticiário que tinha ocorrido um deslizamento de terra no nosso bairro, ficamos super preocupados. Fomos a nossa casa e quando cheguei lá fiquei impossibilitada de chegar perto dos destroços, a área estava isolada. Foram três dias de esperança para encontrar algum sobrevivente, mas na minha casa só quem sobreviveu foi meu irmão e eu porque estávamos fora de casa. Quem saiu ileso do acidente entrou em acordo com o governo. No acordo, o governo prometia pagar um aluguel para os sobreviventes até arranjar um lugar para eles irem. Eu e meu irmão também entramos nessa e ficamos morando de “graça” durante dois meses. Por infelicidade nossa foi esse o tempo que o governo pagou nosso aluguel. Fomos despejados e esse foi o segundo tapa na cara que tomei. O primeiro foi perder minha família, e o segundo foi não ter condições de morar dignamente.

Procurei minha tia de cajazeiras, ela nos deu abrigo durante quinze dias, mas depois começou a ter problemas entre ela e seu marido. O esposo dela não estava gostando da situação. Eu o peguei dizendo que já tinha seis filhos e não estava disposto mais um dia ter que bancar um marginal e uma aprendiz de biscate. Estava escondida vendo os dois brigarem e depois de ouvir isso peguei minhas coisas e dormir três noites na rua. Eu e meu irmão dormimos na rua do comércio.

Depois do terceiro dia na rua, meu irmão conseguiu um trampo com o pessoal da Ladeira da Montanha. Ele vendia maconha nas festas de Salvador, principalmente para turistas e gente de alto nível social da cidade. Foi dessas amizades que meu irmão descobriu que aqui na Ladeira da Montanha alugavam-se casas. Um amigo dele aconselhou a ele pagar o primeiro mês do aluguel e do segundo ou terceiro em diante, fazer a inclusão digital da proprietária. Pronto, foi isso mesmo que fizemos, levávamos essa vida. Meu irmão vendendo drogas e cometendo pequenos furtos e eu me exibindo para os homens, sonhando que um deles casasse comigo. Quando eu dei por mim estava fazendo sexo por causa de um cigarro ou copo de cerveja.

Certo dia a Ladeira da Montanha, por volta das cinco e trinta e cinco da tarde, foi toda fechada por policiais. Os brutamontes invadiram casa por casa, atrás dos “delinqüentes” da área. Ninguém saía e ninguém entrava. O corre-corre foi geral aqui na vila e em toda Montanha. A vizinha que eu adoro conversar estava chegando do trabalho e queria entrar em sua casa, mas o cerco estava fechado e os policiais não deixariam ninguém entrar. Ela sussurrou: “como é que pode o cidadão chegar do seu trabalho cansado e ter que ficar em pé olhando o outro trabalhar, cadê o respeito à dignidade do trabalhador?”. Um policial ouviu, desses de dois metros, olhou nos olhos dela e disse: “aqui o respeito à dignidade!”. E deu um tapa em seu rosto, mostrando o respeito, em seguida deu um empurrão que a fez cair no chão, mostrando a dignidade. Depois desse dia o que minha vizinha mais repete é essa frase que entre viver mal e ter dignidade ou viver bem sem dignidade, ela sempre viverá mal. Mas viver mal e ainda apanhar da policia com dignidade? Eu prefiro viver “bem” e não ter dignidade. Quando apanhar da policia, sei o porquê do tapa. É melhor assim. Minha vizinha quer mudar esse conceito, que respeito para gente pobre é tapa na cara. Coitada, faleceu. E agora tem gente pobre tomando tapa na cara, ou melhor, da policia que agride por agredir, o médico que omite atendimento, o professor que não dá aula porque o salário está atrasado, o cobrador que não dá uma carona de dez minutos a um pai de família que precisa chegar ao seu local de trabalho, um segurança de um shopping center que prende, agride, constrange um jovem acusando ele de ter roubado um par de tênis e quando vai averiguar o jovem não roubou nada, jovens assassinados em bairros pobres sem ter o direito de ir a julgamento pela justiça, seu julgamento é a arma da policia.

Começa um tiroteio, bala para tudo que é lado. Alguns moradores procurados pela polícia conseguem fugir, mas meu irmão não. Ele não foi soterrado pela terra no deslizamento, mas foi soterrado de bala aqui no centro de Salvador, ele foi soterrado de bala debaixo do queixo de Castro Alves. Ô Castro Alves, você brigou pela nossa liberdade e agora? Foi essa a frase dita em prantos em cima do corpo do irmão. Agora eu estou só. Comecei a morar sozinha aos dezenove anos de idade, eu e “minha casa invadida”. Posso dizer que é minha porque o meu irmão antes de morrer assassinou a dona da casa. Ele certamente viu que não tinha saída, o cerco dos policiais estava demais.

Os policiais não estavam respeitando ninguém aqui da vila. Até uma criança foi brutalmente assassinada. Essa criança não ficava na Montanha nos dias de semana, mas por azar dela nesse dia foi à casa dos seus pais pegar algumas roupas, porque estava sem ter o que vestir na casa da avó. Os seus pais deixavam a filhinha na casa da avó e só pegava a filha nos finais de semana. Ela quase não convivia com as pessoas da vila. Eu mesmo só conhecia a bunda dela. Meu irmão dizia que estava “criando” e num final de semana desses, ela passou com a sua bonequinha e o tarado do meu irmão apontou para o traseiro dela. Era uma criança. E seus pais a deixavam com a vovó porque assim economizavam gastos com a comida, e por acharem que no outro bairro a sua filhinha estaria mais segura. Pois eles não tinham tempo durante a semana para cuidar da sua filhinha. Meu irmão morreu fazendo essa criança de escudo.

No momento eu não entendi porque ele saiu de casa furioso, ele se escondeu na casa da proprietária. Foi chegando e matando a velha senhora. Ela só andava bem pintada e com os cabelos bem bonitos, todos os homens aqui a conheciam, profundamente e superficialmente também. Ele a matou porque sabia que para mim as coisas ficariam bem complicadas. Quando ele acabou de tirar a vida da proprietária saiu da vila correndo, mas ao sair da casa dele se esbarrou com dez policiais armado do pé a cabeça. Meu pobre irmão não tinha o que fazer a não ser se entregar e foi isso que ele estava tentando fazer, mas quando ele viu a criançinha saindo de casa toda distraída e indo para o portão, ele agarrou a pobre criança e fez ela de refém. Os policiais nem pensaram duas vezes o que fazer quando eles viram meu irmão fazendo aquela pobre de refém. Os dez policiais em conjunto fulminaram meu irmão e a pobre garota. Para eles todos aqui são fora da lei. Mas, eu fico me perguntando o que uma criança de doze anos com uma boneca na mão poderia ter feito contra aqueles brutamontes? Nada. Só gritar por papai, e foi o que a pobre fez. Por isso que eu faço programa com todo mundo, menos com policial. Eles certamente irão usar do meu serviço e não vão querer pagar. E o meu ódio contra eles é a morte do meu irmão que eles carregam.

Dou um salto da cama. Já são sete e vinte oito! O cobrador de ônibus marcou às oito no banco do Brasil do Comércio.

Fico em frente do espelho. Meus cabelos estão curtos, ele é encaracolado e eu cortei rente ao couro cabeludo. Minha vontade mesmo é dar escova, prancha, mas o dinheiro esses tempos esta difícil. Coloco sempre uma tiara, fico linda. Estou um pouco barriguda, colocarei uma camisa branca de alça e uma saia jeans acima dos joelhos, bem acima, calçarei minha sandália Gooc.

Sete e cinqüenta e quatro. Já estava pronta e séria, esperando o cobrador no Banco do Brasil. O ônibus com o cobrador a serviço passa às oito horas. A porta da frente se abre. Entro e dou boa noite ao motorista. A porta se fecha e vou para o fundo, fico sentada na cadeira individual perto do cobrador e o ônibus segue.

Chegamos no largo onde o ônibus irá fazer uma parada de uma hora e meia. Todos descem do ônibus, eu e o cobrador somos os últimos a descer. Eu já sabia aonde iríamos fazer o programa, vai ser onde foi todas às vezes que nós nos encontramos. Eles dão nome de escritório, mas parece mesmo um galinheiro, sem querer ofender as galinhas. O local fica ao lado de um módulo policial. O “escritório” é usado pelos fiscais das empresas que rodam no bairro e os motoristas e os cobradores utilizam o lugar para descansar e para fazer suas refeições. O local é escuro, a pintura já está sumindo, praticamente não existe. A parede era pintada de verde claro, o chão é de cimento, não colocaram pisos, o local tem um cheiro bem desagradável, parece que eles mijam no chão. O “escritório” é só um vão e nesse vão tem uma pia, um lavatório desses de banheiro, duas cadeiras e uma cama.

Saímos do ônibus. Ele parou e conversou com uns amigos, eles estavam bebendo em um bar do largo. Nós ficamos bebendo nesse bar junto com os amigos dele durante meia hora, nisso já eram oito e cinqüenta. O programa estava estabelecido para terminar às doze. Eu cobrei cinqüenta reais, ele chorou, diante do choro dele, foi para trinta e cinco. Nem um minuto a mais. Doze horas eu ponho minha calcinha e caiu fora. Mas mesmo que ele quisesse não poderia ficar até às doze. Primeiro por causa do trabalho, ele só tem uma hora e meia, e segundo por causa da sua esposa, pobres casamentos falidos. Sorte nossa, com isso não passamos fome. Que viva eternamente a hipocrisia nos casamentos.

Às nove e dez entramos no “escritório”. Todos no largo olhando pra gente. Entramos. Ele deita-se na cama, pega na minha bunda, diz que eu estou mais gostosa, que um mês faz milagre. Um mês é o tempo que nós nos vimos. Eu sento na cadeira de pernas abertas mostrando minha calcinha. Ele em dois tempos tira a calça fica só de cueca. Sua cueca suja do dia de trabalho, seu corpo coberto de suor do dia de trabalho, seu hálito. Ah! Seu hálito, como eu posso descrever? Bem, seu hálito é aquele mesmo que assustou a lagartixa do meu armário pela manhã, seu hálito era uma mistura de bala icekiss, cerveja e churrasco. Um horror! Ele me chama para cama, me dizendo: “você não quer que eu vá te buscar?!”. E no final sorrir. Deita na cama e eu fico por cima dele, olho nos seus olhos tentando achar seja lá quem for, tentando, no fundo do poço, encontrar uma gota de carinho por aquele homem que vai me ter naquele exato momento. Mas infelizmente só sinto um repúdio muito grande, uma amargura no meu peito, eu me sinto estuprada por aquele homem. Ele me tira do meu raciocínio aos berros: “trabalha mulher, eu estou te pagando pra que?”. E eu começo feito uma máquina de lavar roupas, uma máquina de lavar pratos, uma cafeteira... Eu começo... Porque estou programada para começar.

Minha boca engole o falo daquele homem. A sua glande suja, do dia-dia do trabalho começar a ficar limpa na minha boca. Seu pênis imundo vai de encontro a minha boca por causa dos trinta e cinco reais que eu preciso para almoçar amanhã. Hoje eu engulo um pênis com a glande suja para almoçar amanhã.

Terminado o sexo oral o sujeito não agüentava mais de tanto prazer, imediatamente ele me pôs de quatro e me penetrou. Que dor. Eu não estava nem um pouco dentro do êxtase dele, eu estava seca, literalmente. Fui estuprada. Ele ficou no movimento de ida e volta durante cinco minutos e depois caiu na cama todo sujo, tirou a camisinha jogou ao chão, virou para o lado, ascendeu um cigarro e deu a primeira baforada para o lado que estava virado, enquanto eu vestia minha calcinha e sentei na cadeira, ele me ofereceu um cigarro e começamos a conversar. Nossa conversa era uma negociação, ele queria fazer sexo anal, mas eu disse que teria que pôr mais cinqüenta, como ele não queria dar o dinheiro, nada feito.

Coloquei minha roupa, isso já era dez e vinte. Arrumei-me e ele também. Saímos do “escritório”, o motorista já estava dentro do ônibus. Quando nós entramos não tinha ninguém no ônibus ainda, que bom, porque é horrível quando tem alguém, todos olham. O motorista foi logo avisando que houve uma mudança de horário e que eles já iam para garagem, que só estava mesmo esperando ele. O cobrador ficou todo feliz, porque já ia para casa, mas estávamos com um problema, o ônibus não iria passar mais no Comércio, teria que pegar outro ônibus, certamente ele me colocaria em outro coletivo, mas é como eu já disse, os passageiros todos olham, é super constrangedor porque eu entro pela frente e ninguém entende nada, ou melhor, entende sim.

O ônibus saiu do largo e depois de cinco minutos, às dez e trinta, o cobrador parou um ônibus que seguia em sentido contrário. Ele parou o ônibus conversou rápido com o motorista, me chamou e me disse que ele me deixaria no Comércio. “Valeu, deixe essa moça no comércio!”, palavras do cobrador ao motorista. Nem um “Adeus, que dia nos encontraremos?”, nada disso ouvi.

Entro no ônibus, todos me olham, mas vêem uma mulher com um pedaço de blusa e um pedaço de saia. Eles não enxergam por trás disso, não conseguem, seus conceitos são mais fortes que a realidade crua e desumana do outro.

Sento no ônibus e não vejo a hora de chegar em casa e tomar um banho, esse cobrador é muito porco. Chego ao comércio às onze horas, salto nos correios do Comércio. Sigo andando, passos rápidos, têm ocorrido assaltos e estupros freqüentes aqui. Enquanto subo a Ladeira da Montanha passa um carro buzinando. Para do meu lado e eu olho, dentro do carro tem quatro jovens. O que está do lado do carona dá um tapa na minha bunda, eu mando ele ir se incluir digitalmente, lhe dou vários nomes desagradáveis. O que está atrás me acerta com alguma coisa nas minhas costas, parece que usou o tapete do carro para me atingir. O carro segue, eu entro em casa às onze e quarenta e cinco. Abro o armário, a lagartixa corre quando me vê, deve fugir por causa do meu hálito de novo, agora por causa do pênis sujo do meu cliente. Por infelicidade minha dentro de casa não tem mais nada para comer. Bem, eu que poderia fazer como eu faço sempre, sair agora quase meia-noite e só voltar pela manhã, mas felizmente eu não tenho forças. Só tenho vinte e quatro anos e parece que tenho setenta, não estou querendo mais essa vida pra mim, quero ter a dignidade da minha vizinha do lado, mas meu estômago fala mais alto. Hoje dormirei com fome, amanhã eu compro um pão pela manhã e começo meu novo e conhecido dia.