Os amigos

Terça-feira, 18:20. Bar do Amadeu. Temperatura agradável.

-----Sabe Gil, eu preciso fazer alguma coisa.

André estava debruçado com os cotovelos fincados na mesa.

-----Que tá falando? Quer fazer o que?--- Perguntou Gil, entornando seu copo de cerveja.

-----Sei lá. Eu aqui todo o santo dia. Bebendo. No outro dia aqui de novo.

-----Que....vai dizer que tá querendo parar de beber de novo.

André passava a unha na mesa de aço, tirando as casquinhas da tinta que se soltavam.

----Não é isso. Mas esse negócio de bar tá atrapalhando minha vida conjugal.

Gil pediu mais uma cerveja para o Amadeu que limpava o balcão com um pano encardido.

----Hi cara, isso é normal. Toda a mulher implica com isso. Não adianta esquentar.

----Você é solteiro. Não entende. É complicada a situação.

----Mulher é encrenca. Pelo jeito vou ter que tomar sozinho hoje--- Disse Gil enchendo o copo de cerveja.

----Que acha que devo fazer?

----Sei lá. Ignore. Chega uma hora que ela desiste de falar.

----Ela não desiste. Nunca desiste de nada. Conheço a mulher que tenho.

Ficaram em silêncio alguns minutos até que chegou Miltão.

----E aí. Beleza? Que cara de funeral é essa? Morreu alguém?---Perguntou o recém chegado, enquanto puxava uma cadeira na mesa.

----É o André. Tá deprimido.

----Manda um copo Amadeu. Dois. O Chico tá vindo aí.--- Ele o encheu, entornando tudo num só gole.

----Pronto. Agora me fala que merda é essa--- Disse Miltão limpando a boca da espuma da bebida.

----Problemas conjugais amigão.--- Falou André cabisbaixo.

----E isso é problema? Problema é dinheiro, saúde. Isso sim ---Argumentou Miltão.

----Eu falei pra ele ignorar. Qualquer coisa que ela diga, ignore---Completou Gil.

----Ela tá te enchendo por causa do bar?---Perguntou Miltão.

----É. Ontem ela me mandou um bilhetinho mal educado. Logo que você foi embora.

----E você ficou assim só por causa de um bilhetinho? ---Disse Miltão.

----É que vai enchendo. Todo o dia a mesma coisa. Já tou me chateando. Fora quando ela vem aqui.

----Não desiste. Se você der o braço a torcer vai ser pior--- Disse Gil.

----Fique firme amigão. A gente tá aqui com você. Pode contar com os amigos--- Completou Milton.

Pediram mais duas cervejas. Chico chegou logo depois. Ficaram ali os quatro, confabulando.

----Ela disse que não vai mais pagar minhas contas., principalmente a do bar.--- Disse André.

----Amigo. Não se preocupe. Pelo menos a conta do bar a gente dá um jeito. Até essa crise passar.

----Pode ter certeza. Teus amigos nunca vão te abandonar---Confirmou Milton.

Gil não se pronunciou. Mas ninguém o criticou. Todos tinham o conhecimento que estava desempregado. Não poderia se sacrificar. Mas mesmo assim sabiam que estava solidário á causa do amigo.

Os olhos de André lacrimejaram. Ficou tocado com a atitude de seus companheiros. Nunca o haviam abandonado. Estavam ali todos os dias, nunca o deixavam sozinho.

Eram seus irmãos, sua família. Agora estavam mais unidos do que nunca.

Ficariam até mais tarde naquela noite. André precisava daquela força.

Amadeu começou a levantar as cadeiras. Era o sinal que já chegava por hoje.

Quando então trancava as bebidas por trás de uma porta de vidro (não porque tinha desconfiança, o bar sempre fora assim, e as bebidas sempre ficaram trancafiadas mesmo), todos sabiam que já deviam acertar as contas e irem embora.

Um a um se despediram de André, dando-lhe forças, o incentivando.

Sempre era assim. Ficavam somente André e Amadeu. E quando Amadeu terminava tudo para finalmente fechar o bar, perguntava a André.

---- Quer que apague a luz?

----Pode apagar. Acho que já vou dormir. Tou meio cansado hoje.

----Boa noite então. Até amanhã. E não fique assim. Todo mundo tem problemas.

Amadeu apagou a luz e fechou a porta de aço pelo lado de fora.

André ficou ali no escuro. Ouvia somente o barulho do freezer, no seu ligar e desligar automático.

Refletia e remoia os pensamentos. Por um momento havia passado por sua cabeça desistir. Ir embora e fazer a vontade da mulher. Ainda bem que tinha amigos. Sabia que podia contar com eles.

Hoje ela não mandara nenhum bilhete, nem aparecera por lá. Quem sabe havia desistido de leva-lo embora. Ela tinha de se conformar, essa era sua esperança. Amanhã outro dia.

Tinha amigos, teimava em pensamento.Tinha o Amadeu.

A mesa estava fria e cheirava a cevada azeda, mas já se acostumara. Já se passaram quase 6 meses.

Ele ali, irredutível. Sabia que tinha de resistir. Não só por ele, mas pelos amigos também .

Não podia decepcioná-los.

Antes de adormecer, lembrou-se de uma frase de Goethe que ele havia lido, não sabia aonde.

“ Se você pensa que pode ou sonha que pode, comece. Ousadia tem genialidade, poder e magia. Ouse fazer e o poder lhe será dado”.

Não sabia quem era Goethe, mas gostava da frase que ele tinha escrito. Agora já havia começado. Não podia mais desistir. Mergulhou em sonhos. Debruçado na mesa gelada, dormiu o sono dos justos, imaginando que todo o dia que chega é um novo desafio para o homem.

FIM

Márcio José
Enviado por Márcio José em 07/11/2006
Reeditado em 08/11/2007
Código do texto: T284778