Mistura Fina

Mistura fina

Vestiu a camisa volta ao mundo e a calça de nycron, aquela que não amassa nem perde o vinco. Para os que têm menos de 40, estes dois produtos eram o “tchan” dos anos 60 e 70. Nos pés, os famosos amigos da onça. Um sapato que tinha uma tira de couro em sentido contrário no bico. Duro e desconfortável, mas também era moda.

Desce o morro da Caixa, reluzindo, literalmente, da cabeça aos pés. No cabelo ondulado, a brilhantina Bozzano passada em duas demãos e nos pés a graxa passada a fogo no amigo da onça. Isto mesmo!... Era passada no couro e em seguida queimada com o fogo de uma vela. Depois era só lustrar.

O cinema tinha duas sessões, a das quatorze e a das dezesseis horas. A primeira era dos pivetes e a segunda dos marmanjos, pra namorar. Namorar, na época, consistia em sentar ao lado depois da luz apagada, pra não “queimar o filme” com as outras e segurar na mão. Era um orgasmo. As meninas tremiam quando roçava o braço, imagine segurar a mão. Depois, só sair depois da luz acender. Essa rotina era feita por Genésio, auxiliar de eletricista. Trabalhava de segunda a sábado até as dezoito horas. Só descansava nos domingos.

Após o cinema, o “point” era a confeitaria do Chiquinho, onde se saboreava as melhores empadas e, se o dinheiro desse, a casa das frutas ficava ao lado, onde acabava o passeio com um misto-quente especial.

Falei da rotina e esqueci de falar do próprio Genésio!

Genésio, negro esquelético, tinha o apelido de pau-de-vira-tripa e no morro, se perguntassem pelo apelido, todos o conheciam. A roupa boa que tinha foi a que descrevi antes, porque, pra trabalhar, usava um macacão quatro vezes o tamanho dele. Com todo o jeitinho, amarrava com fios as pontas e a cintura.

Negro honesto, era de confiança na firma e na comunidade. Se alguém fazia uma aposta, o dinheiro casado ficava guardado com ele. Como disse, era ajudante de eletricista, mas na realidade era o famoso pau-pra-toda-obra, pois chegava a cozinhar pra mais de vinte homens na obra de um grande prédio no centro da cidade.

Porém, pessoas de bem nem sempre são tão respeitadas (acho que é inveja), principalmente nos dias de hoje, onde os honestos são ridicularizados. E um caso aconteceu com Genésio, num dia em que saiu do cinema. Achou uma carteira com documentos e duzentos cruzeiros. Para se ter uma idéia, o ingresso do cinema custava um cruzeiro. Eram duzentas sessões. Incrível! Mas Genésio, no momento que achou, já teve a convicção de devolvê-la.

Mas como devolvê-la?

Não tinha endereço e na confeitaria ninguém conhecia o infeliz.

Genésio parou na Praça XV, sentou embaixo da figueira durante duas horas, pensando em como devolver aquela carteira.

Não iria pra casa com aquilo. Revirou-a toda e achou um santinho de São Cristóvão dobrado numa parte com zíper. Imaginou então que devia ser de um motorista. Foi para o terminal de ônibus. Ele rapidamente verificou que nenhum motorista tinha perdido a carteira, já que nossa história é de quarenta anos atrás e naquela época eram poucos os ônibus.

-Esse nego é pirado! Imagina se ele vai achar o dono da carteira, comentou um motorista. Este não entendera porque aquele negro queria devolver a carteira. Só pensou no dinheiro.

Voltou Genésio para o banco da praça, pensou mais duas horas e revirou novamente a carteira, tendo o cuidado de repor tudo como estava. Achou numa nova parte, desta vez, um nome de uma rua e o número.

Rua Sete nº6. Ele repetia: Rua Sete nº 6, Rua Sete nº 6, Rua Sete nº 6. Guardou tudo de novo e descobriu.

-É na Rua Sete de Setembro!

Partiu para lá e procurou o nº 6. Não achou. A Rua começava com 20e terminava com 39. Ato imediato, começou a bater em todas as portas. Imagine, onze horas da noite. Era madrugada!

-Não, não é aqui.

-Vai-te embora!

-Vou chamar a polícia!

-Que é negão, tá querendo o quê?

-Vai pro inferno, negão!

-Pega Rex, pega...

E por azar de Genésio o Rex pegou. Deu-lhe uma mordida nas nádegas, que ele ficou batendo nas outras casas manco. Na trigésima casa e o último xingamento Genésio quis desistir. Mas era um cara perseverante.

-Não vou pra casa sem entregar essa porcaria! Vou voltar até o cinema, talvez o dono esteja procurando. Olhava pra todos os lados, pedindo pra São Benedito, santo da sua devoção.

Atravessou a praça e desta vez não sentou, porque a mordida lhe doía nas partes baixas. Passou a mão e foi aí que viu que a calça de nycron estava rasgada. Parou em frente ao cinema e sentou no meio-fio.

-Ô, negão. Ta fazendo o que aí?

Ele não teve nem tempo de responder. O vigia deu-lhe uma bordoada na orelha.

Genésio saiu torto, um tanto deslocado. Voltou à praça, sentou de lado, tirou a carteira do bolso e começou a examinar pra ver se achava mais alguma coisa. O ouvido zunia pela bordoada do vigia. Encostou-se e adormeceu.

O sol entre as folhas derretia a brilhantina dos cabelos de Genésio quando acordou.

-Virgem Santa, gritou, correndo em direção ao relógio da catedral. Não perdeu a noção do tempo e sabia que já era segunda-feira.

Correu pra casa pra se arrumar, ou melhor, colocar o macacão, porque ainda tinha um tempo. No começo do morro, uma viatura da chefatura fechava a subida.

-Encosta aí, ô negão!

O policial empurra Genésio, cola seu rosto na parede e lhe esvazia os bolsos.

Naquele dia, Genésio não foi ao serviço, tampouco nos próximos três anos. Fora condenado por furto. O dono da carteira, ao invés de, na ocorrência policial, dizer que tinha perdido, registrou que tinha sido roubado, pra não ter a necessidade de gastar na publicação. Na época, se alguém, e acho que até hoje, perdesse os documentos, era ou é obrigado a publicar um anúncio durante três dias, num periódico de grande circulação.

O tempo passa, o tempo voa. Genésio não usa mais nycron aos domingos e nem camisa volta ao mundo, mas vai ao cinema.

Um dia desses, ele vê algo no chão. Ajunta e verifica que é uma carteira. Tinha tudo, documentos, dinheiro, endereço e cartões. Ele pega o dinheiro e joga a carteira no lixo.