Dragão Manso

Dragão Manso

Trazia tatuado no peito o nome da mãe. Um anel de pedra vermelha imitando rubi, ornamentava o dedo mínimo. No canino direito, uma jaqueta de ouro. Sorriso aberto, proposital pra mostrar o dente. Bom de negócio e uma incrível sorte com as mulheres.

Nascido e criado na lavoura, sabia que não se pode desconfiar de ninguém sem provas; por isso, era o melhor delegado do Oeste de Santa Catarina. Saber ouvir, seu maior predicado. Dizia ao cabo Juvêncio, com ar de filósofo frente a qualquer dificuldade de elucidação de um crime: “Cada caso é um caso”.

Nos anos 70 e 80, não havia delitos, eram crimes mesmo.

-Doutor, o negócio é o seguinte.

-Meu filho, não sou doutor e não quero saber sobre o seguinte. Quero é saber desse crime que você é acusado.

-Pois é, seu Delegado. Fui eu mesmo que desovei aquele defunto.

-Desovou? Virou sapo, agora?

-É! Joguei o corpo no mato.

-E daí?

-O que, seu Delegado?

-E quem matou o infeliz que você desovou?

-Eu também!

-Por quê?

-O negócio é o seguinte... hum... quer dizer, este é o negócio...

-Que é que você quer negociar?

-Han?

-Por que você matou o desalmado?

Repetiu a pergunta porque o acusado disse a palavra que ele mais gosta. NEGÓCIO. Fazia tantos, que na maioria perdia. Ganhou em um. Trocou um trinca-ferro por um par de algemas. Um mês depois, trocou o trinca-ferro por um cardume de trutas. Teria que retirar do açude do dono, sem saber quantas tinham. Era época de eleições, e o candidato a prefeito duma cidade vizinha comprou tudo pra uma peixada. Com o dinheiro, comprou do próprio que fizera negócio um micro-trator e logo o trocou por uma plantação de cebola. Da casa em que mora, cinqüenta por cento foram fruto da safra e o dinheiro restante, financiado pela Caixa que ele ainda está pagando.

Fora o trinca-ferro, só levou chumbo. Uns engravatados visitaram sua cidade. Venderam títulos patrimoniais de um clube de verão.

-Olha, Doutor, que beleza! Com uma pequena entrada e vinte e quatro suaves prestações o senhor passa a ser sócio deste empreendimento. E a partir da assinatura do contrato, o senhor já pode usufruir de uma hospedagem completa durante sessenta dias. Sessenta dias na praia, Doutor!

-Quanto é?

-O título custa nove mil “cruzeiros”, a entrada é cinco mil e mais as vinte e quatro suaves prestações!

-Posso dar um cheque?

-Claro, Doutor.

Até hoje ele procura pelos pilantras pra pagar a primeira mensalidade. Faz dez anos.

Outro caso em que perdeu um bocado de dinheiro, tem como testemunha seu braço direito, cabo Juvêncio.

-Doutor, tem uns camaradas aí na frente perguntando pelo senhor!

-Manda entrar.

A sala era nos fundos da delegacia. Abriu a janela, viu sentados no banco de madeira em que algemava os presos para depoimento, dois senhores, de terno e gravata, ambos com uma pasta de couro marrom apoiada nos joelhos. Sentou-se, passou as mãos nos cabelos.

-Deve ser gente importante.

-O senhor é o Dr. delegado Reginaldo Inácio de Campos?

-Não sou doutor, mas sou o dito delegado.

-Então, meus parabéns, Sr. Reginaldo. Você ganhou um carro, uma moto e uma coleção de livros!

-Ganhei como, se eu não comprei rifa nenhuma?

-O senhor foi escolhido pelos computadores da empresa!

-Como? Você tem certeza?

-Tenho sim. O senhor não é o marido da D. Epifânia?

-Sou.

-Então deve ter sido ela quem mandou a carta.

-Carta?

-Sim, a carta do concurso!

-Que concurso?

-Do carro, da motocicleta, disse um deles.

-E da coleção de livros, disse o outro.

-Espera aí que eu vou ligar pra ela.

-Não, Sr. Reginaldo. Não se faz necessário. Nossa missão é lhe comunicar e de conferir sua identidade.

-De Delegado?

-Não, a sua pessoal.

-Tirou a carteira de identidade do bolso e entregou ao mais falante.

-Sr. Reginaldo, o senhor tem outro documento legal de identidade?

-Por quê? Este é legal! Apontava a carteira.

-É, mas não está plastificada, está aberta, olhe! (e mostrou a carteira em duas partes). Desculpe, mas são as normas.

-A de delegado serve?

-Tem fotografia?

-Tem.

-Então serve.

Pegou a carteira policial num estojo com as armas da república e entregou ao magrelo, que usava um conjunto verde com gravata.

-Imagine o Senhor de carro novo, hein, Sr. Reginaldo!

-Preciso mesmo. O meu já está velho.

-Que carro o senhor tem?

-Um Fusca 74, 1500.

-Não senhor. Agora o senhor tem um carro zero!

-E aí?

-Aí o que, Sr. Reginaldo?

-Cadê o meu carro, a minha moto e a minha coleção de livros?

-Está aqui!

-Onde? Lá fora?

-Não senhor. A coleção de livros está aqui. Abriu a pasta e apareceu uma coleção de “Brasil Ilustrado”. Quatro livros coloridos e obviamente ilustrados, disse o baixinho gordo.

-E o carro, e a moto?

-Bem, Sr. Reginaldo. Lembra-se que pedimos a sua identidade?

-Sim.

-É para que possamos lhe trazer o carro devidamente legalizado no seu nome, assim como a moto. O senhor deve saber disso, né?

-É, é preciso tudo em dia.

-Então o senhor também deve saber o valor de IPVA, seguro e tal.

- De carro zero eu não sei.Vou perguntar ao pessoal do transito.Disse o delegado .

-Por isso estamos aqui. Nós sabemos!

-O valor é dez por cento do valor do carro, assim como a moto. E também o seguro dos dois. O senhor quer seguro normal ou total?

-É melhor total, né?

-Estou vendo que o senhor é um homem da lei, prevenido!

-É, a gente aprende todo dia. Mas me diga, quanto vai custar tudo?

-Vejamos. Taxa de despachante, IPVA, etc... etc.... Vai dar tudo em torno de sete mil.

-Sete mil?...

-Sim. Pra ser exato, dá sete cento e trinta. Os quebrados a firma paga.

-Eu não tenho esse dinheiro agora.

-Infelizmente, teremos que procurar o segundo colocado, disse o homem, fechando a pasta da coleção.

Cabo Juvêncio, que calado assistia tudo, levantou-se.

-Dr. Delegado, posso falar com o senhor em particular?

O magrelo engravatado e o baixinho gordo sem pescoço entreolharam-se desconfiados. Cabo Juvêncio saiu da sala acompanhando o delegado. Dois minutos depois, Reginaldo volta sorridente.

-Senhores, nada como um bom amigo.

-Como?... Disseram os dois ao mesmo tempo.

-Está resolvido. Aguardem uns minutos que já vou lhes passar o dinheiro. A dupla respirou fundo e o magrelo abriu a pasta de novo.

-Então, vamos adiantar o negócio. Falaram a palavra mágica do Reginaldo, que com os olhos brilhando, acompanhava os dois retirando documentos da pasta.

-Assine aqui nesta folha. Duas vezes, Sr. Reginaldo. Estas o senhor só rubrica. Este é o seu recibo e aqui está sua coleção.

-Não querem esperar primeiro que eu lhes pague?

-Que é isso doutor? Com pessoas como o senhor se faz qualquer negócio!

Na verdade, qualquer coisa interessava ao Reginaldo. Uma honestidade ímpar e uma verdadeira anta. Sua fama de otário vencia as fronteiras municipais. Desnecessário dizer que perdeu sete mil, correspondentes a dois anos de trabalho. O cabo Juvêncio, nas horas de plantão, foi quem leu todos os quatro livros, e estão nas celas, fazendo rodízio quando a lotação está esgotada.

Mas, voltamos ao interrogatório, lembra onde estávamos?

-Entrou em minhas terras e eu o confundi com um ladrão!

-E você sabe como é um ladrão, ô sabichão!

-Só de olhar doutor. Só no olhar!

O juiz decretou a prisão preventiva de Aguinaldo Antônio Félix.

Numa salinha ao lado da delegacia, uma pequena placa. Campos & Félix – Negócios Associados.