Z 30

Z 30

O sol se punha no horizonte. Pela porta entreaberta do boteco, porque estava quase na hora de fechar. Zé Trinta fazia para seu amigo Guto a previsão do tempo do dia seguinte.

Zé Trinta, com o nome de batismo José Tristão da Silva (recebeu o apelido por ser o primeiro pescador fichado da colônia de pesca Z 30, nas proximidades de Imbituba); e entre ser chamado de Zé Tristão, ele mesmo se apresentava como Zé Trinta. Arroz de festa, contador oficial de mentiras e piadas, conselheiro matrimonial, assador de churrasco na festa da igreja e ajudante oficial nas missas quinzenais, gozava com isto de grande privilégio no lugarejo, além do respeito e admiração adquiridos, pois por duas vezes ficara viúvo, virando pai e mãe.

Porém, o que mais lhe dava mais orgulho era sua esperteza e habilidade na pesca, atributos estes que davam o sustento de seus quatro filhos do primeiro casamento e dois do segundo.

Não parecia ter sessenta e cinco e ninguém lhe dava mais que cinqüenta. Forte como um touro, no seu lado da rede iam os mais fracos, principalmente no arrastão da tainha.

O tempo passava como maré mansa e a cada tormenta aumentava a certeza de bonança seguinte.

O lugarejo só recebia visita de estranhos em época de eleição de intendente, uma vez por ano. Repetiam as mesmas promessas de décadas anteriores, como colocar luz.

Nunca faltou, contudo, o feijão com arroz de cada dia. Nada faltava no lugarejo; pelo contrário, sobrava. Uma região de mata atlântica densa, onde até macacos tinham que ser enxotados do milharal.

Não era época de eleição. Um fora de estrada chega pela manhã. Zé Trinta estava no mar. Antes de desembarcar, já sabia do acontecido. Seu olhar vaga nas vagas que insistiam em virar a canoa de lado. Com uma estiva na mão, parou.

- Vieram dizer que a partir de hoje toda essa região está sob proteção, e que nossas tarrafas têm que ser de malha grossa. Só podemos pegar peixe grande, e o camarão ele vêm dizer quando podemos pescar.

A preocupação tomou conta da vila. O boteco já não fechava às sete, virava muitas vezes a madrugada. O padre não tomou partido, o intendente sumiu e os fiscais começaram a vir seguidamente. Apreenderam muitas tarrafas e redes e tocavam fogo na praia mesmo. Zé Trinta perdeu uma de vinte metros de roda e outra de trinta. A esperança agora era no tempo da tainha, mas não deu frio suficiente para ela encostar e o defeso do camarão estava em vigor.

Como onça pronta pro bote, a fome começou a rodar, a criação foi consumida, a tristeza e a preocupação começaram a ser abafadas com o liso de cada dia. Cada hora e a todo momento, principalmente quando os grandes barcos pesqueiros arrastavam fora, não permitindo que nada de peixe sobrasse, o boteco ficava cheio.

Zé Trinta não contava mais piada, não havia mais festa na igreja, o Padre não vinha mais.

- Por que será que estes empinados só vivem aqui?...

A resposta não tardou a vir. Numa área de onze hectares foi colocada uma placa, anunciando um futuro complexo hoteleiro. A placa foi colocada num dia e no outro os postes já estavam sendo colocados. Enfim, a luz chegara.

Com a energia elétrica vieram os veranistas, que construíram casas de alvenaria e os terrenos rodeados de muros altos, acabando na praia.

O lugarejo começou a receber turista, colocaram uma farmácia, um supermercado e uma delegacia de um órgão de proteção ambiental. As pessoas do vilarejo viraram elementos e quando um arriscava dar uma tarrafeada, os “home” chegavam vistoriando a malha. Jamais fizeram uma medida, o negócio era tocar fogo na praia.

Os veranistas tinham lanchas, o hotel levava seus hóspedes em barcos especiais para pesca em alto mar.

Zé Trinta, agora com seus sessenta e cinco, parecia ter oitenta. Fazia bicos e como só sabia pescar, quando aparecia algum, lhe rendia mais bolhas que rendimento.

Um dia de domingo, depois de raspar todas as latas de mantimentos, viu que não havia mais o que comer. Preparou um bule de café, misturou o resto da farinha e saiu antes que seus filhos acordassem...

Aos domingos os pavilhões são abertos. No refeitório é colocada uma toalha de plástico nas mesas, Zé Trinta agora é só conhecido por 472. O pior de ter sido condenado a seis anos de prisão é lembrado sempre aos domingos, dia de galinha ensopada. Seus filhos passaram fome naquele dia, porque não comeram o tatu que ele matara. Mas só faltam dois anos e duzentos dias. Vai voltar ao lugarejo como Zé Trinta e, com certeza, após o encontro com os ditos que o mandaram pra lá, ele volta a ser o 472.