Papa-fígados

- Vô, vou dar uma volta na praça…

- É tarde. Não tem medo do papa-fígado?

- Que é isso, Vô? Mais uma de suas histórias?

Meu neto, de quinze anos, adorava ficar até mais tarde na praça de Alagoinha onde eu morava, conversando com as meninas. Ele só vinha uma ou duas vezes ao ano me visitar, e se divertia muito nestas ocasiões, entretanto sua mãe preocupava-se muito, e não gostava que ele saísse sozinho à noite, pois achava que a cidade era perigosa. Pura preocupação de mãe, pois Alagoinha, uma pequena cidade no agreste pernambucano, raramente tinha problemas com violência, e quando os tinha, era envolvendo bêbados em botequins sombrios na periferia da cidade ou eventualmente alguma briga entre famílias. Raramente ocorriam assaltos ou coisas desse tipo, tão comuns nas cidades grandes, e assim a população jovem do lugar aproveitava as noites quentes para conversar despreocupadamente na praça.

- Que nada! Aconteceu realmente aqui e nas regiões vizinhas. – disse-lhe eu. -O povo vivia apavorado. As crianças não podiam mais sair sozinhas de jeito nenhum…

- Me fala disso, vô. Tô ficando curioso.

“Aconteceu há muitos anos. Um dia um menino de uns quatro anos desapareceu. Os pais não tinham ideia do que tinha acontecido, até que guiados por urubus, um grupo de meninos encontrou o corpo numa capoeira perto da estrada, lá pelos lados do Sítio Sete Baraúnas. O estranho é que aparentemente só tinham tirado o fígado do menino. Um corte bem feito, quase cirúrgico. Uma semana depois de terem encontrado o corpo, outro menino desapareceu, e no dia seguinte foi achado na beira da estrada, ainda agonizando, sem o fígado. Tinham agido da mesma forma: apenas um corte na barriga para extrair o fígado. Poucas horas depois ele morreu. Três dias depois foi uma menina de dois anos. O povo ficou apavorado com esses acontecimentos inexplicáveis, e a partir daí tomavam imenso cuidado com suas crianças. Esse misterioso arrancador de fígados ficou sendo chamado de “papa-fígado”. Por duas semanas nenhum caso ocorreu em Alagoinha, mas no vilarejo vizinho, Socorro, ocorrerem quatro casos, e mais dois no Sítio do Magé. Perto de Pesqueira pegaram cinco crianças.

A polícia local pediu reforços à Capital, e mandaram alguns agentes para averiguar, mas o mistério não foi decifrado. Depois dessa onda de crianças atacadas, houve uma pausa, mas seis meses depois, um novo ataque do “papa-fígados” ocorreu aqui em Alagoinha, desta vez com um menino mais velho, que vinha do Sítio Lagoa Seca. Antes só crianças com menos de cinco anos, mas este tinha doze. Um mês depois, um novo caso em Socorro, e dois em Venturosa. Por alguns anos continuaram ocorrendo dois ou três ataques ao ano.”

- Que coisa esquisita! E ninguém nunca descobriu o que de fato aconteceu?

- Ah, sim… descobriram sim. Um padre ficou doente, e constataram que estava com Hanseníase. Como ele era muito querido, as pessoas se esforçaram para dar-lhe o melhor tratamento. Acharam uma casa de tratamento de leprosos…

- Que palavra feia, Vô! – interrompeu meu neto.

- É verdade, é uma palavra feia, mas era assim que falávamos da doença naqueles tempos.

"Mas como eu ia dizendo, acharam uma casa para tratamento numa cidade aqui perto, não me lembro qual era. Lá, o padre recebeu uma proposta estranha. Um curandeiro tinha um remédio muito eficiente para a cura da lepra… desculpe, da hanseníase. Dizia que era um remédio raro, e por isso muito caro. O padre ficou curioso, e foi conhecer o curandeiro. Conversou com ele, acertou o tratamento, e foi embora. No caminho decidiu perguntar se era possível conseguir maior quantidade do remédio, para dar a outros doentes da casa de tratamento, e resolveu retornar.

Antes de bater na porta, ouviu uma conversa que o deixou estarrecido. O curandeiro conversava com alguém:

- Preciso de dois fígados frescos, mas não me venha com fígados de crianças de mais de cinco anos, eles não servem. Tem de ser de crianças novas.

- Mas, Doutor… está difícil pegar crianças pequenas. O povo anda muito cuidadoso com elas…

- Dê um jeito! Vá até Pedra, ou sítios de Arco Verde, onde você nunca foi. Mas lembre-se de voltar rápido, para não estragar os fígados, senão vou arrancar o seu!

O padre saiu de fininho, escondeu-se numa cerca de avelozes e esperou até que um homem saiu. Marcou bem sua cara, e procurou a polícia em Alagoinha, que rapidamente repassou às polícias da região a descrição do homem. Prenderam o curandeiro, e duas semanas depois prenderam seu capanga. O curandeiro confessou que utilizava os fígados frescos das crianças para extrair um componente que ajudava no combate ao mal de hansen. Não passou muito tempo na cadeia, pois por uma infeliz (ou feliz) coincidência, um dos presos que estava na mesma cadeia era o pai de uma menina assassinada, e não teve dúvidas. Enforcou o curandeiro.”

- Que coisa, vô! Ainda bem que não sou criancinha. Não tem perigo de um outro curandeiro aparecer por aí e querer arrancar meu fígado. Eu tenho mais de quinze anos!

- É, mas ouvi dizer que tem um “papa-fígados” à solta que está arrancando fígados de adolescentes para fazer remédio contra AIDS. E sua mãe também ouviu isso. Se ela souber que deixei você ir sozinho à noite na praça, ele arranca o MEU fígado!

- Tá de mangação, né Vô?

- Se não acredita em mim, então vá. Bom passeio.

- Para com isso, Vô! Tá me deixando preocupado! Depois vou ter medo de vir sozinho, mesmo sabendo que essa história é conversa fiada.

Eu sabia que meu neto não era dado a valentias, ainda mais numa cidadezinha que ele pouco conhecia. Não era o medo das coisas fantasiosas (e às vezes reais) que eu lhe contava, era mais insegurança por não conhecer muito bem a região. Mas como eu gostava muito dele, não queria que ficasse aborrecido nem deixasse de se divertir enquanto estivesse me visitando.

- Vamos combinar o seguinte: eu vou com você. Vou ficar conversando com meus amigos. Quando você quiser vir embora, me chame, só não me saia da praça.

- Está certo, vô. Vou te apresentar umas amigas… – disse, feliz da vida.

- Não se preocupe, conheço todas elas. Algumas desde que nasceram… Aproveite a noite. Não vou ficar te vigiando, confio em você.

E fomos curtir a noite na praça, logo havíamos esquecido dos “papa-fígados”… Será que ainda existem?