A MORTE QUE NOS SOBRA

A noite exalava odores fortemente carregados. O estreito beco estava solitário de pessoas. Ele mesmo só tinha as tábuas pra conversar. Num desses barracos de favelas de papelão uma cama é o móvel, que imovelmente passara dias na mesma posição, a reparar quão dura a vida de seu dono. Um candeeiro sem querosene, um palito de fósforo molhado, uma carteira de cigarros vazia, dezenas de filtros meio fumados e uma poça d’água bem no centro daquilo que poderia ser um aposento. Chuviscava ainda. O homem cheirava os dedos de nicotina num ato sórdido para saciar uma vontade imensa de fumar.

Olhou pela única janela de sua propriedade e tentou enxergar o vizinho. Só ouviu gemidos de dor. Há muito tempo que o moço da frente sofre de uma doença que dizem comê-lo por dentro. Às vezes as dores são tão intensas que não se pode dormir no bairro de tábuas. Foi solidário e bebeu a dor do outro. Lágrimas desciam, enquanto os pingos da chuva choravam junto com o único morador que se importava com o outro.

Chegou a sair de casa naquela sexta-feira molhada. Pensou em pedir socorro. Quem sabe até socorrer ele mesmo o pobre vizinho. Não seria grande trabalho, se não houvesse tanta lama na rua onde sua residência residia de vez em quando. Isso porque nas altas madrugadas o consumo de álcool mudava a casa de lugar. Às vezes ficava tão longe. Às vezes sumia mesmo de lá. Parecia não suportar a vida miserável e o miserável que habitava o seu interior. Mas o homem tinha bom coração. Bebia pra não ser bebido pela sociedade. Encontrava-se com o álcool quase que diariamente. Isso quando não estava catando papelão, ora pra vender, ora pra servir de cobertor nas noites raras de frio.

A luz morna da residência do enfermo de repente abre-se. Pareceu-lhe que o homem havia arrancado as últimas forças para se socorrer. O morador da casa da frente espreitava entre a brecha da porta e um móvel imóvel de igual magnitude do seu: era uma cama. Deu-lhe a impressão que só existiam camas dentro dessas residências. O que mudava eram os colchões. Nem sempre ortopédicos, nem sempre de palhas, mas todos igualmente velhos, fruto do descarte e da ação recicladora de sua gente.

Viu uma perna semi coberta com um lençol verde hospital. Pensou naquele momento que o homem havia se desprendido da enfermaria onde convalescia. Há meses internado, há meses pulando de coma em coma. Não teve dúvida e se compadeceu com aquilo. Lembrou do quadro retratando Marat morto. Deduziu um quadro de um Marat invertido. Em vez da cabeça inclinada e o braço jogado pra fora da banheira, apenas uma perna, uma magra perna de um homem que não iria entrar para a história, que não ajudou a fazer nenhuma revolução, que não incitou o povo a pegar em armas, não ajudou a decapitar o ilustre rei. A cena era verdadeira. Uma perna falecendo, agonizante e um barraco apertado como um coração pedindo ajuda, mendigando pelo mendigo. O vento havia aberto a porta, mas quem poderia ter ligado a morna luz? Novamente a dedução lhe foi generosa, tratava-se da união das últimas forças do vizinho. O bicho havia vencido a guerra e tratava de devorá-lo naquela noite sem lua, mesmo se sabendo cheia. As nuvens cinzentas estavam lá para cobrir o corpo.

Lentamente e com o coração em rebuliço o homem caminhou de sua pouca residência e deu as mãos ao barraco vizinho. Ali oraram pela alma do morto senhor. Nas suas costas, o seu barraco de uma cama só verteu no molhado uma gota diferente. Parecia não esconder a revolta por mais uma indigente morte. A impressão que dava é que estavam sós. O corpo, o vivo, os dois barracos, num luto dolorido, quase negro dos reflexos das nuvens.

Uma novena aconteceu ali.

Era muita chuva nos olhos daquele homem que ainda lutava por um pouco de dignidade para o vizinho falecido. Não tinha celular, não tinha telefone algum que pudesse ligar para recolherem o corpo. A rua estava deserta. Era sexta-feira treze. Nem o preto gato apareceu com seus infortúnios no velório.

O homem suportou seu vício e não bebeu. Um terço e muitas contas de orações dissipou a vontade até mesmo de fumar. O dragão havia matado São Jorge, seus pulmões não agüentaram quarenta anos de fumo consumido e mais vinte de fumo passivo. Tirou exemplos da cena e pintou um quadro na mente tão sórdido quanto o cheiro da nicotina nas mãos.