Nonagenário Hedonista.

Tentei fugir de casa ontem, mas me pegaram pelo braço logo na esquina.

Estou com noventa e sete anos, e não quero mais fritar dentro de um apartamento, monitorado por netas solteiras neuróticas.

Minha vida sempre foi de muito trabalho e suor. Fui trabalhador braçal durante mais de sessenta anos, como carpinteiro.

Construí o madeiramento de muitos imóveis que se vêem por aí até hoje, mas ninguém quer saber quem fez o madeiramento de casas, prédios ou sobrados, querem mesmo é saber quem foi o engenheiro ou o arquiteto.

Depois de tantos anos, nem me preocupo mais com isso. O que vale mais é minha consciência, quando me recordo que tenho uma, e, como estou quase morto, não dou a mínima por quaisquer tipos de convenções dos homens, os quais pra mim hoje em dia não passam de odientos consumidores “hedonistas”.

Pra dizer a verdade até pouco tempo nem sabia o que significava a palavras hedonista, até que um bisneto que cursa filosofia um dia disse, na hora do almoço, para todos, que “a maioria dos capitalistas ocidentais só se preocupam com prazer, bens, sexo e dinheiro”, e disse mais: “que são todos uns “filhos da puta hedonistas”.

Pedindo desculpas pelo palavreado de revolta, o pobre garoto, supondo a ignorância dos ali presentes, e tinha razão, definiu hedonismo, em termos filosóficos, que só eles sabem e gostam de se gabar e exprimir, como “a tendência a dar valor à vida com base em prazeres imediatos”, ou seja, o agora é o que importa e faça de sua vida o que mais gostar no momento presente. Enquanto ele terminava suas divagações filosóficas, fiquei quieto ali, tentando dissolver um pedaço de batata na boca e pensando nos meus mais de sessenta anos trabalhados, trabalho surrado, vivendo de segundas a sábados num suador total, cheio de calos e estrepes nas mãos, sujo e impregnado de todo tipo de material corrosivo, thíner, tintas, colas, pregos e vez por outra um cigarro de palha, como meu hedonismo do momento, rápido e seco.

Nos domingos tinha algum descanso, mas nada de hedonismo, tinha que cuidar da casa, dos filhos, agüentar a mulher me atazanando devido à falta de dinheiro, o atraso nas contas, o leite das crianças, etc...

A televisão era nossa fuga, isto é, quando surgiu no mercado, e somente depois de uns quinze anos podemos ter uma, de segunda mão; aí tivemos alguns programas idiotas para assistir.

Antes era o caos, um pito no fundo do quintal, uma cachaça escondida na mercearia da esquina, algum jogo de baralho, um futebol no campinho de terra batida, onde eu era o goleiro, e olha lá...

Depois a TV acalmou por nos acalmar um pouco. Reuníamos todos num sofá mofado e ali as horas ia passando, até que desse a hora de dormir, onde todos iam de uma só vez, era a regra.

A hora era outro problema; ela nunca nos deixava em paz; tinha hora pra tudo.

Nunca vivi um dia sequer sem um relógio a me ditar o tempo e o que tinha que fazer. Nunca tive hora de sobra, sem que pudesse de fato me despreocupar das coisas da vida: era acordar, trabalhar, comer, assistir TV, quando a tivemos, raramente algum aconchego junto à patroa, dormir, acordar..., acordar, trabalhar, comer, assistir TV, algum aconchego junto à patroa, dormir, acordar..., e por aí se iam passando os tempos, os ventos, as estações, os anos..., até que me encontro aqui agora, no alto de meus noventa e sete anos, tentando fugir de casa, meio sem pernas, que andam bambas há uns quinze anos, a cabeça se esquecendo de tudo, dando uns surtos, uns apagões, sem dentes pra mastigar um bom pedaço de bife, uma costela, sem respirar direito, sem sentir o cheiro das coisas, mas querendo fugir de casa para ser um pouco hedonista na vida..., se é que a hora ainda me permite...

Savok Onaitsirk, 01.04.11.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 31/03/2011
Código do texto: T2882016
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