Uma inesperada doação de vida

Eu era um homem saudável, acreditava. Tinha uma vida social e profissional agitada e intensa, mas sempre fora assim, não tinha porque reclamar.

Solteiro, independente, me vangloriava de ter uma ótima vida social e bem relacionada. Uma noite saí com uns amigos, no intuito de descontrair, talvez conhecer caras novas. E conheci.

Era uma bela morena, de uns 40 anos, soube advogada. Nos conhecemos ao acaso em um restaurante, começamos a conversar e a coisa fluía naturalmente. Claro que meus hormônios masculinos me ordenaram ir adiante. Eu obedeci.

De certo é que depois daquele dia começamos a nos ver regularmente, sair, trocar idéias, etc. E comecei a perceber seu gênio-cão, uma mulher extremamente possessiva se revelava a cada dia. Eu percebia que tinha de fazer alguma coisa, me afastar. Não era para mim, nem para meus propósitos de vida aquele estresse diário, com surtos de agressividade e cenas de ciúmes doentios, sem razão de ser.

Nessa mesma época eu comecei a sentir um desconforto renal, mas não dei muita importância. E isso repetiu várias vezes, até que um belo dia (ou negro dia), senti uma cólica terrível, enquanto estava na rua. Me lembro que não tinha condições de dirigir, então deixei meu carro estacionado onde estava mesmo e pedi socorro a um taxista, que me levou ao pronto socorro que indiquei. Me lembro que lhe paguei a corrida, quando o vi pela última vez. Medicado, fui encaminhado para exames cujo resultado foi confortante: Meus dois rins estavam comprometidos, não tinha mais como recuperá-lo. Minha única alternativa seria um transplante. E tinha de ser rápido.

Nos dias seguintes eu praticamente não sentia nada, não sei se por força dos medicamentos que passei a usar.

Voltando à namorada briguenta, eu a poupei desses detalhes (ou poupei-me), não a queria metida nisso, afinal era uma coisa minha, e dividia com quem desejasse. E definitivamente não seria com ela.

Na noite de uma sexta-feira, eu tomei a iniciativa de lhe convidar para sair, chegara a hora de botar um fim nessa história, não havia razão para continuar. Não estava sendo saudável para mim e acredito que nem mesmo para ela.

Nos encontramos no lugar combinado, um restaurante pequeno, simples, mas aconchegante, que já tínhamos ido lá outras vezes. Inicialmente me propus buscá-la em casa, mas ela preferiu não, tinha de ir fazer uma visita, desta forma preferia ir no seu próprio carro.

Antes mesmo de pedir nosso prato, puxei assunto sobre nossa situação, que não estava bem, que teríamos de encontrar outro caminho. Percebi em seu olhar e em seu jeito de se comportar, um certo descontrole, parece que eu lhe surpreendera. Então eu desfiei um cordão de descontentamentos, insatisfações, angustias e outros sentimentos que não condizem com os propósitos de um casal que se deseja felizes. Ela ouvia em silêncio, parecia que resignada, não sei explicar o que via em sua fisionomia.

Logo em seguida senti uma pontada no lado direito, como se fosse uma espada me penetrando. Foi uma dor insuportável, louca... e senti o mundo escurecer diante de mim, e diante do olhar apavorado da quase ex namorada.

Recobrei os sentidos. Estava em um lugar estranho, não o conhecia. Tudo muito branco, eu estava deitado, coberto por lençóis também brancos. Percebi dificuldade na respiração. Vi que tinha agulhas espetadas na veia em meu braço esquerdo, e uma magueira transparente que descia de suporte, onde havia um frasco de soro. Tentei me mover, uma dor intensa me impediu. A tal espada ainda não me deixara.

Nesse interim, chegou algumas pessoas, percebi que eram médicos ou enfermeiros, não sei bem. Conversaram comigo, perguntaram como me sinto. Claro, que respondi que sentia como se estivesse sido atropelado, e ouvi uma resposta de que “agora está tudo bem, vai ficar bom logo”.

Pouco depois entrou no recinto, que reconheci nele o médico com quem consultara poucos dias atrás, onde recebi o diagnóstico nada animador. Ele então me cumprimentou, pegou uma cadeira e sentou-se ao meu lado, e começou a contar toda a minha trajetória desde que dei entrada no hospital, a quatro dias atrás. "Quatro dias???"

Fui informado que tive uma crise muito séria e que fui encaminhado ao hospital. E que nesse intervalo de internação, encontraram um doador e tive um transplante bem sucedido. Se tudo desse certo eu estava curado, graças à bondade de uma pessoa que fez a doação em vida, de um de seus rins.

Procurei saber quem era a alma bondosa. Para minha surpresa, era a minha namorada, a mesma briguenta e possessiva. Sim, ela demonstrara uma grandeza imensa ao fazer essa doação. Eu nem sabia da compatibilidade, nunca falamos sobre isso.

Procurei por ela, onde estava, como poderia falar com ela. Então fui informado que ela estava em outra ala daquele hospital e não queria me ver. Não se sentia confortável em se encontrar comigo.

Pouco depois deixei o hospital e restabeleci a saúde. Daquele episódio, só me restou uma grande cicatriz feita por um bisturi, que a essa altura era insignificante.

Quanto à namorada, nunca mais a vi nem soube notícias dela. Tentei ligar, mas ela trocou seus números, endereço, tudo! Evaporou-se por completo.

Hoje, cinco anos depois, saudável, me lembro da doadora. Nunca tive a oportunidade de agradecer-lhe pelo inesperado gesto de grandeza e desprendimento. Nunca mais a vi nem tive notícias dela.

Me pego pensado: será que fui injusto? Será que eu não soube lhe entender e lhe conquistar? Será que eu não soube lhe transmitir segurança? Haveria outra alternativa para nós? São perguntas até hoje sem respostas. Me resta carregar comigo essa lacuna. Quem sabe um dia...

Faria Costa
Enviado por Faria Costa em 05/04/2011
Reeditado em 05/04/2011
Código do texto: T2890755
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