BOMBA RELÓGIO (Notas Sobre as Crianças Mortas hoje, Ontem e Sabe-se lá Quais Dias Mais...).

Desde criança de berço “Cabeção” tinha apelido de “Oreia”. Era Oreia de abanar, dumbo, “cabeça de pote”, “cocão”, “capacete”, onde inclusive lhe faltavam bonés que coubessem em sua cabeça, diziam..., diziam e riam, todos, às gargalhadas, em sua cara, que se enrubescia de vergonha...

Seus próprios familiares, quando o mesmo fora se ajuntando com a idade, foram lhe colocando todo tipo de cacoete.

Como sua barriga crescia desproporcionalmente a seu peitoral, era tido também como “barriga d’água, “pancinha”, “grávido”, “verme” e “bujão”.

Suas canelas eram muito grossas, o que alguns também lhe apelidaram de “canelas de elefante”, “tronco de árvore”, “perna de gesso”.

Com o passar dos tempos, foi ficando cada vez maior, bem maior que os coleguinhas de colégio, onde brotavam ainda mais todos os mais variados, sarcásticos e maldosos apelidos, “boneco de Olinda”, “vara de cutucar estrela”, “desconjuntado”, “mostro do Lago Ness”, e outros milhares que nem cabe aqui enumerar.

Não tinha amigos, era sempre o “burro” da sala, motivo de chacotas diversas, como “jumentão”, “ameba”, “acéfalo”, “maionese”, e como era muito emotivo desde a infância, devido aos pesares que a “genética” lhe proporcionara, sem que o quisesse, também chorava com facilidade, o que o apelidavam de “manteiga derretida”, “florzinha”, “sentidinho”, “mulherzinha”, etc...

Na saída do colégio era sagrado se ajuntarem várias crianças, meninos e meninas, a cantarolarem em uníssono:

“Gordo baleia, saco de areia..., gordo, baleia, saco de areia..., gordo, baleia, saco de areia, gordo, baleia, saco de areia..., vara de cutucar estrela, oreia de abanar, dumbo, ameba...”

E Assim se arrastava até casa com os ouvidos zunindo e a cabeça inchada de tanta vergonha, vexame, humilhação, solidão..., com os cânticos malditos a lhe azucrinar a vida, o apetite, o sono...

Sua vida foi ficando cada vez mais limitada, solitária, focada no fundo de seu quarto quente, úmido e escuro de sua típica família da classe “d” brasileira.

Seu pai era caminhoneiro, alcoólatra, e morreu de cirrose quando ainda era criança; sua mãe, sobrecarregada, lavava, passava e cozinhava pra fora; não tinha tempo pra nada; era filho único e não tinha amigos, ninguém, ninguém com quem compartilhar suas dores, suas agruras...

Sobretudo, por ser de classe econômica inferior a alguns alunos, era também tachado de “pobretão”, “miserável”, “pé-rapado”, e suas roupas puídas, repetidas três vezes por semana, eram motivo de sarro generalizado.

Conheci esse jovem, pessoalmente, calado num canto qualquer, e muitos outros “iguais”, vivendo dentro de suas desigualdades sociais, raciais, estéticas, psicológicas, sexuais, econômicas e políticas.

Seus professores, sem culpa alguma, num Brasil que não os preza e mal os remunera, não se atentavam, ou não tinham aparato algum para discernir sobre tais “deficiências”, e tratá-las, e amparar crianças assim, e, talvez, sequer conheciam o termo “bulling”.

Essa criança, desqualificada, desequilibrada, como não poderia deixar de ser, sem amparo algum da família, do ensino e do maldito Estado Democrático de Direito, cresceu, e, dentro de um corpo de homem, continuou criança, porém doente, se transformando num monstro, um monstro igualmente sem culpa.

Como era de se esperar, não conseguiu trabalho, muito menos freqüentar faculdade. Nunca teve mulher, amor, carinho, educação, compreensão, nunca teve nada, e mesmo já adulto, por onde passava, era tratado como “debilóide”, até que conheceu alguns “amigos” que lhe disseram ter a “cura” para seus males, desde que lhes fizessem alguns “favores”: uma substância injetável, que lhe causava uma força e um prazer tremendo, fazendo-lhe se esquecer de suas dores. E na Heroína se viciou.

Em pouco tempo estava mais doente do que já era, e visto como um mendigo, drogado, jogado pelos cantos, chutado, achincalhado, humilhado e ofendido, pedindo dinheiro e fedendo...

Emagrecia, definhava a cada dia, mas quando estava sob o efeito de tal substância, era o “super-homem”, e ninguém lhe aporrinhava. Se isso acontecia, não dava a mínima. As cores eram brilhantes demais para se preocupar..., sua cabeça, seu corpo, não pesavam tanto...

Houve tempo, porém, passados alguns meses, ou anos, não sabia mais contar horas, nem dias, nem nada, estava muito fraco, rasgado, cheio de feridas, até que uma boa alma o ajudou a se levantar do chão; uma mulher de branco, que nunca mais viu, e que lhe encaminhou a um posto de saúde próximo, para tratamento. Seu diagnóstico, além de todas as mazelas que até então havia sofrido, de todos os transtornos e distúrbios, foi que estava com HIV!

Explicado o que era, e que, devido a seu estado clínico, pouco tempo lhe restaria, e ainda era jovem, pensava, e ainda “sonhava”...

Perdeu as estribeiras...

Roubou a arma de um velho vizinho, que tinha trauma de bandidos adentrarem sua casa, e a guardou, pensando, pensando..., pensando...

Mas não conseguia pensar muito mais, ainda mais agora...

Escreveu uma carta, deixada no chão onde se drogava, no beco do bairro, pegou a arma e rumou para aquele colégio onde tanto, tanto sofreu...

Chegou com “sangue nos olhos”, dentes cerrados, magro feito um cadáver, pálido, dentro de suas estigmas, suas chagas, suas neuroses, e atirou, atirou, atirou, atirou..., incessantemente, enquanto via gente pela frente...

Quando não conseguiu enxergar mais nada, atirou na própria cabeça, quedando-se com seu corpo esquálido, enorme, disforme, desproporcional, humilhado, seu “cabeção” com uma bala infiltrada, vitimado, no chão da sala colegial..., enquanto o sangue jorrava, manchando documentos “importantes”, os quais se esvaíam ao vento...

Onze inocentes crianças se foram sem culpa, filhos do paraíso, onze anjos... Onze famílias choraram e clamaram por justiça. Aos prantos, pais, mães, tias e avós se ajoelhavam sobre os cadáveres ensanguentados de seus entes queridos...

A polícia encerrou suas atividades, dizendo que o que houve fora uma barbaridade, e que, como o “assassino” estava morto, nada mais poderiam fazer...

O colégio público, precário, sem segurança, sem preparo, sem fundos, renda, tudo desviado pelo Estado, sem sequer merenda digna, tudo desviado, desviado!, não tinha como indenizar ninguém, e o caso deu-se por encerrado, arquivado num velho arquivo enferrujado nos fundos da delegacia municipal local.

Noticiários vários brotaram num sensacionalismo surpreendente, angariando multidões de expectadores indignados..., enquanto seus gestores sorriam com o alto índice de audiência...

Enquanto isso, noutro canto da Nação, senadores no congresso nacional, após o expediente, às quinze horas, viam t.v. e tomavam chivas reagal, ao som de um clássico de Frank Sinatra, esparramados dentro da hidromassagem de uma luxuosa boate em Brasília, bem acompanhados por belas garotas, comentando o caso:

“E esses pais que não educam seus filhos?!”.

E, com o passar do tempo, tudo caiu no esquecimento...

Obs.: não é o caso de hoje, mas é mais um caso, ao acaso do Estado.

Até quando, meu Deus?

Crianças, descansem em paz!

Savok Onaitsirk, 07.04.11.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 08/04/2011
Reeditado em 08/04/2011
Código do texto: T2896046
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