Descanse em Paz!

- Nessa mesa não!

- Essa é a última mesa não-fumante disponível, senhor.

- A gente espera outra mesa vagar.

- Sem problema, senhor. Fiquem à vontade.

- Carlos!

- Que foi?

- O que deu em você? Estamos esperando há 45 minutos e você desiste da mesa?

- Eu e a Carlinha costumávamos nos sentar naquela mesa.

- Que Carlinha? Sua ex?

- É...

- Desculpa. Não sabia.

- Tudo bem.

Carlinha, que fora namorada de Carlos durante 5 anos, havia falecido em um trágico acidente de automóvel. Madrugada embaçada, pista lambida pela chuva torrencial e alguns jovens embriagados ziguezagueando nos carros dos pais. Perturbado, ele sempre evitava repetir os hábitos vividos ao lado da ex-namorada. Além de respeitar a memória da antiga companheira, evitava o enjôo depressivo que a lembrança estimulava.

Isadora, a nova namorada, dizia aceitar as manias sentimentais de Carlos:

- Vocês sabem, né? Foi muito traumático pra ele. Somente o tempo pode curar tamanha dor. O importante é que a gente se ama.

Mas, protegida pela confidencialidade da inseparável amiga, desabafava:

- Absurdo! Já disse pra ele parar de remoer o passado! Vai deixar de viver por que alguém morreu? Eu, hein!

O que mais preocupava era a invejável memória de Carlos e sua capacidade em vincular tudo às lembranças do antigo amor.

- O que é isso, Isadora?

- Torta de frango. Eu quem fiz, experimenta.

- Mas você colocou milho...

- E desde quando você não gosta de milho, Carlos?

- Eu gosto.

- Então, qual o problema?

- A Carlinha detestava...

Mais uma briga. Mais pratos arremessados contra o azulejo bege. Mais uma noite separados. Ela, no restaurante da esquina. Ele, em casa, jogando as latas de milho no lixo.

- Atende, por favor! Atende...

- Humm... Alô?.

- Amiga! Sou eu, Isadora!

- São duas da manhã... O que aconteceu?

- Foi a Carlinha de novo!

Isadora desabafava soluçante. Desde o início do namoro conhecia os traumas de Carlos, jurando, inclusive, suportá-los. Mas à medida que o namoro avançava, suas neuroses surgiam mais escancaradas.

- Faz o que te falei, Isadora.

- Você acha que vai dar certo?

- Claro que sim! Ele precisa enxergar você como mulher.

- Vou tentar! Brigada, amiga. Desculpa a hora.

- Tudo bem, Isa. Beijos...

Noite seguinte. Isadora veste a calcinha vermelha nova, encomendada especialmente para a ocasião, e aperta o sutiã, da mesma cor, aumentando o tamanho dos seios. Perfuma-se por inteira e alisa as coxas bronzeadas com loção de amêndoas.

Carlos ainda está na cozinha quando é agarrado. Os braços quentes da namorada alisam suas costas, enquanto seu pescoço recebe mordidas fortes. Dominado pelo desejo, Carlos aperta a cintura de Isadora por trás e...

- Parou por que, Carlos?

- Sua calcinha...

- Porra, Carlos! Que foi?

- É que...

- Já sei! A defunta também usava calcinha vermelha, é?

- Não... ela usava azul-piscina, com detalhe de florzinha e...

- Já entendi!!! O que foi então???

- As iniciais da sua calcinha... “CC&S”.

- É o nome da loja! “Carícias, Calcinhas & Sutiãs”

- Ah...tá....

- Desembucha, Carlos!

- Carla Castro Souza. Nome completo da Carlinha...

- Chega!!!

Ainda na cozinha, Isadora alcança a segunda gaveta, agarrando a primeira faca cujo cabo pareça confortável à mão.

- O que você vai fazer, Isadora??? Larga essa faca!

- Talvez assim você aprenda a gostar de mim!

- O que você está dizendo???

- Te encontro no meu enterro...

- Mas...

A lâmina afunda, silenciosa, na altura do estômago de Isadora, que sofre a dor em voz baixa. O vermelho grosso contorna seu corpo, já largado ao chão, misturando-se ao rubro da calcinha. Abraçado ao corpo, Carlos soluça um choro infantil, carente. Com um beijo na testa despede-se. Ao caminhar em direção à saída de serviço decide negar o último pedido de Isadora.

Seu enterro o faria lembrar de Carlinha.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 15/11/2006
Reeditado em 15/11/2006
Código do texto: T292265
Copyright © 2006. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.