O ladrão Inocente

Cheguei adiantado para a audiência, olhei no relógio e ainda era 13:00 horas. Conferi na pasta e minha audiência iniciaria somente às 14:00 hs. Era início do mês de dezembro, o calor estava insuportável. O fórum, como é comum, cheio de gente andando de um lado para o outro. Alguns adornos natalinos sobre os balcões, deixando os arquivos e mesas nos cartórios deslocados, face à realidade do fórum criminal. Mães, filhos e esposas aflitos, espremiam-se no corredor central quando alguma porta, que dá acesso às salas de audiência, era aberta, certamente no afã de verem seus “entes queridos”. Apesar de tudo, podia notar que o espírito natalino e a chegada das férias forenses causavam aquele ar de felicidade. A todo instante podia ouvir as frases costumeiras da época:

Feliz Natal !!!, e a resposta certeira... Pra você também Dr.!!!... O ano que vem tem mais...!!!

Na sala de espera, uma meia dúzia de pessoas. Testemunhas, réus soltos e alguns parentes que conseguiram burlar os seguranças e entraram naquele tão “sombrio” corredor que, para alguns, mais parece o “corredor da morte”. Entro e, por sorte, consigo sentar. O sobressalto é certeiro. Olhares aflitos. Abaixar de cabeças. Joelhos se juntando, naquela posição de submissão, certamente pensando, ao me ver de terno e gravata: quem será ???.

Observo novamente o relógio. Ainda falta muito... a chegada de um réu sendo conduzido à sala de audiências pelo escolta me chama a atenção.

Resolvo assistir a audiência - isso vai me distrair - Observo novamente o relógio. - Ainda falta muito...

Enquanto o réu é qualificado pela escrevente, entro na sala de audiências cumprimentando o Juiz.

Boa tarde Excelência !

O Juiz levanta os olhos em minha direção e, ao devolver o cumprimento, pergunta:

Essa audiência é sua ?.

-Não Excelência a minha é a das 14 horas, respondo.

- Ah tá, fique a vontade Dr.

-Obrigado Excelência.

Jovem ainda, de pouco mais de vinte e cinco anos, concentrava-se nos processos sobre a mesa, tentando em vão, talvez pela austeridade do cargo, mostrar mais idade com um ar sério e gestos medidos.

O escolta apresentou o réu ao Magistrado e pude perceber que certamente estava recolhido em algum estabelecimento que não fosse um Distrito Policial, haja vista que já vestia uma camiseta branca e uma calça cáqui, uniforme de algum CDP.

O Policial que o escoltava abriu as algemas que o mantinha preso com as mãos para trás e colocou-as de volta, desta vez algemando o réu com as mãos para frente, conduzindo-o para a “cadeira” dos réus.

Inicia-se o interrogatório. O magistrado olhou para o réu, confirmou seu nome e o local onde estava preso e após leu a denúncia:

- Sr. Carlos, o senhor está sendo processado porque no dia 03 de novembro último foi preso, em flagrante delito por Policiais, no interior de uma padaria, por volta das 2 horas da manhã, praticando um furto. São verdadeiros estes fatos ?

Respondeu o réu:

-Não senhor, não são não !

Ato contínuo falou o Juiz:

Então me conte o que aconteceu !

- Olha seu doutor, eu moro próximo da padaria e estava meio sem sono naquela noite. Estava na janela, vendo o tempo passar e observei que um balão estava caindo ali pertinho e resolvi pegá-lo.

- E depois, o que aconteceu ?

- Bem doutor, saí depressa de casa e fui seguindo o balão e o danado foi em direção do telhado daquela padaria, caindo sobre ele. Resolvi subir lá e pegá-lo, porque sou louco por balões.

O Juiz, já meio inquieto, pelos rodeios, interrompe: Tá, e depois ?

-O senhor acredita doutor, que quando eu subi no telhado, quase pegando o danado do balão, as telhas quebraram e eu caí dentro da padaria ? Aí chegou a polícia, pois alguém deve ter ouvido o barulho e chamou, e me prenderam me acusando do furto, mas não queria "roubar" nada não doutor, só queria o balão.

Pensei comigo: o crime trata-se de um furto tentado pois, se entendi bem, o sujeito fora preso, ainda dentro do estabelecimento, então não havia sido consumado o crime. Levando-se em consideração a pena aplicada para o furto e ainda, a diminuição pela forma tentada, o réu não ficaria muito tempo preso, embora as qualificadoras, pelo horário e pelo rompimento de obstáculo, o prejudicassem um pouco.

O que mais me chamou a atenção foi que ao ser perguntado se tinha advogado particular para defendê-lo, o réu respondeu que não e a sua estória estava razoável, pelo menos a princípio.

Mostrava muita calma ao falar, apesar da pressão da situação, imprimindo veracidade ao que relatava. Ainda, é comum, apesar de não aconselhável, alguns desavisados realmente subirem em telhados em busca de balões e pipas, sofrendo por vezes acidentes como aquele.

O magistrado fez uma pausa e levantando os autos do processo em sua frente começou a folheá-lo e disse, abaixando-os novamente:

- Estou vendo aqui no laudo da perícia a constatação do rompimento das telhas e que o Sr., inclusive, machucou-se no local. É verdade ?.

- É, me machuquei mesmo doutor, e apontou para a perna esquerda, percebendo que o Juiz acreditara na sua versão.

O magistrado dirigindo-se à escrevente, disse:

-Dona Fátima, chame o Promotor, vou mandar soltar o acusado.

A escrevente saiu da sala e enquanto o promotor não vinha.

Pensei.

Este ganhou o seu presente de papai Noel, vai passar o Natal com a família. Pude observar que o réu ficou inquieto na cadeira. Ficou com aquela cara de "o que está acontecendo, será que vou sair da cadeia" ?

Entrou o promotor cumprimentado a todos e, ao aproximar-se da mesa do Magistrado, foram entregues os autos. Folheou-os rapidamente lendo a denúncia, bem como o interrogatório que já estava impresso.

O Magistrado perguntou ao promotor:

-Doutor, vamos soltá-lo ? Trata-se de um furto tentado. Acho que merece uma chance e responder o processo em liberdade.

O promotor respondeu:

- Por mim não tem problema algum, vamos conceder-lhe o benefício da liberdade provisória.

O Magistrado porém, antes de deliberar sobre a soltura do sujeito, que já estava sentindo a brisa da liberdade na face, perguntou-lhe, folheando os autos a procura, presumo, das folhas de antecedentes, que já deveriam estar nos autos, mas não estavam:

-O Sr. já foi processado alguma vez ?

O réu então perdeu todo aquele ar de graça, abaixou a cabeça e respondeu com a voz quase inaudível:

-Já fui sim doutor, três vezes.

- Quais crimes o senhor respondeu ?

- Três "um cinco cinco", mas "paguei tudinho", respondeu o cidadão, percebendo que aquela informação mudaria tudo ali.

O magistrado, após trocar olhares com o Promotor, fechou os autos, olhou bem para o réu, que nesse momento já estava praticamente curvado sobre si e disse-lhe.

- Melhor esperar as certidões desses processos chegarem, não é Sr. Carlos ?. Balançou a cabeça fazendo um sinal negativo e balbuciou: Balão !!!!, e emendou para a escrevente:

- Próxima audiência dia 15 de janeiro.

Levantou-se e dirigiu-se para o gabinete, saindo também da sala o Promotor.

Saí dali após encerrar a minha audiência, pensando sobre todo o ocorrido. Atravessei a porta da saída principal do fórum, olhei para o céu que já não estava tão claro, dado o horário e pensei:

Será que caí balão hoje ??????