O Apostador

O Apostador

Sopapos, chutes, cusparada e “nome da mãe”. O pau comia solto na hora do recreio.

De um lado, cinco garotos; do outro quatro, e pra compensar um pequeno do outro grupo. Numa folga dos xingamentos, uma pergunta:

-Quer apostar?...

Era Aderbal que, segurando os dois líderes tomados de surpresa, intimou:

-Querem apostar?

-Apostar o quê?

-Que vocês dois vão ser os que mais vão apanhar?...

...Adivinhem quem apanhou mais!

Mochila nas costas, Aderbal caminhava dois quilômetros pra chegar em casa. Uma confusão no trânsito lhe chama a atenção. Um fusca perde o freio e bate na traseira de um Omega.

-Quer apostar?...

-Sai pra lá, guri! Que apostar o quê?

Sendo afastado, mesmo assim ele grita:

-Quer apostar que o senhor não vai receber nada? Dizia ele ao dono do Omega.

O portão da casa era alto, precisava ficar na ponta dos pés para alcançar o trinco. Sentiu cheiro de comida e num ato reflexo:

-Quer apostar que sei o que vou comer?

Como, obviamente, não obteve resposta, se deu conta que queria apostar consigo mesmo.

Cheiroso feito bebê depois do banho, lá estava ele em um baile de debutantes. Sentado em uma mesa com amigos, era só anunciar uma nova menina moça a desfilar, que ele perguntava:

-Quer apostar?

-O que, Deba?

-Que essa vai tropicar na escada?

-Que a próxima o vestido tá descosturado?

-Que essa que vai desfilar tem aparelho nos dentes?

De repente, Aderbal se viu sozinho na mesa.

Descobriu o jogo do bicho. Apostava no grupo, na centena, no milhar, na cabeça e na corrida. Arriscava semanalmente uns ternos.

Quando recebia seu ordenado no final do mês, comprava um bilhete inteiro da Loteria Federal e aproveitava pra jogar na Sena, na Quina, e antecedia o prazer de chegar em casa, sentar em frente à TV e raspar as raspadinhas; porém, segurava a ansiedade porque antes passava no bar do Zico pra jogar Pinball.

Durante sua vida apostou em tudo e de tudo. Jogou a bicicleta contra um rádio portátil. O primeiro carro, que não chegou a ser o seu amor, contra uma carroça carregada de banana. A televisão contra um par de tênis com amortecedor. Chegava a ponto de parar as pessoas na rua, porque os conhecidos já o evitavam:

-Quer apostar?

-O quê, rapaz?

-A cor do próximo carro que vai passar.

-A cor da calcinha daquela mulher que vem ali

-E como eu vou saber? Ela não vai te mostrar!...

-Eu dou um jeito. Escuta, você desmaia na hora que ela passar; aí você vê a cor. Confio em você, cara!

-Tá louco, é?

Não podia ver batida de carro. Andava com um caderno pra anotar as placas dos envolvidos. O caderno já estava quase cheio.

Um dia sonhou com dentes. Disseram-lhe que sonhar com dentes significava morte de parente. Jogou tudo na data de nascimento da avó.

Outro dia sonhou que estava pescando. Foi até a peixaria e jogou no número do prédio, na data de nascimento do peixeiro e na placa da caminhonete do homem. Só não jogou no CPF dele, porque o desconfiado peixeiro não quis lhe dar.

Sua vida era apostar. Fez algumas amizades; porém, a mania de apostar fez com que andasse só.

Gastava praticamente tudo o que recebia e, como funcionário público de carreira, ganhava muito bem. Casou-se porque Marina estava encalhada e ela arriscou. O relacionamento durou pouco, apenas um ano. Aderbal infernizava a vida dela com apostas.

-Quer apostar que sua mãe vai ligar daqui a quinze minutos?

-Quer apostar que você vai menstruar?

-Quer apostar que a mocinha vai fugir com o outro? (assistindo novela).

Ela cansou de vez, quando ele começou a pegar o dinheiro dela pra jogar.

Com seus cinqüenta e três anos não conseguia se curar do vício de apostar. Só tinha ganhado até ali dívidas e desprezo.

Quando surgiram os bingos, fugia da repartição. Nunca usara terno, mas usá-lo se tornou indispensável. O paletó servia pra marcar a sua presença. Cuidadosamente o colocava no encosto da cadeira e só retirava próximo ao final do expediente, quando chegava do bingo.

No dia do seu aniversário, estava só. Ouvia os foguetes estourando no céu, pela janela de um quarto de pensão.

-Quer apostar que a cor do próximo é azul? Falava sozinho.

Acabaram-se os estouros e foi dormir para não mais acordar.

O féretro caminhava lentamente. Passou pelas lojas, pelo supermercado e padaria. Respeitosamente, todos ficavam em silêncio. Em frente à casa lotérica, um homem chorava copiosamente.

Na Plaza Del Toros todos gritavam Olé, mas no meio da multidão, alguém grita: -Obrigado, Aderbal!

Era o peixeiro realizando o seu sonho de conhecer a Espanha. Ele havia jogado na cabeça a data de nascimento de Aderbal. 1951.

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