UM LADRÃO DE SENTIMENTOS

Ele sempre passava lá em casa para pedir resto de comida, dinheiro ou alguma roupa velha que a gente não usasse mais. Mal balbuciava as palavras, mas pelos gestos, a gente sabia o que queria. Apesar de não temê-lo, mantinha distância, sempre na expectativa de que algo inesperado acontecesse, coisa que agora, 75 anos depois, vejo que nunca aconteceu.

A roupa suja e o cabelo branco e desgrenhado compunham a sua figura. Além disso, ele exalava um cheiro insuportável e tinha um aspecto assustador, razão também de eu não me aproximar. Mas, apesar disso, era um homem de bom coração. Muito dócil, em contraste com a sua aparência temerosa e repelente.

Ninguém sabia de onde viera. Sabíamos que morava embaixo de uma gameleira, num cômodo construído com restos de tábuas e coberto de cacos de telhas e lonas.

Convivi com ele a minha infância toda; a sua presença na nossa porta de vez em quando. Certo dia, percebemos que fazia um bom tempo que ele não aparecia. De imediato, não demos importância ao fato, embora sentíssemos que aquela rotina havia, de certa forma, sido quebrada.

Passou-se uma semana. Nada de ele aparecer. Ficamos intrigados. Então minha mãe resolveu procurá-lo. Fui com ela. Ao chegar onde ele morava, tivemos uma surpresa. De dentro do casebre exalava um cheiro insuportável. Havia moscas e insetos sobrevoando ao redor. Arregalamos os olhos assustados, sem entender o que havia acontecido, mas mamãe, mesmo tapando o nariz, foi até a porta do casebre e puxou a lona para um lado, de maneira que vislumbramos o escuro lá dentro. Foi então que vi mamãe se contorcendo. Um som gutural saiu de sua garganta e seu corpo curvava freneticamente. Corri ao seu encontro gritando, procurando ampará-la, quando vi golfadas de vômitos jorrando de sua boca.

Ouvindo a minha gritaria, uma mulher que ia passando na rua veio correndo ao nosso encontro. Energicamente, segurou mamãe, enquanto a determinação saía quase que automaticamente de sua boca.

- Vamos chamar a polícia!

Quando a viatura do IML chegou com a polícia - homens de branco, com máscaras e lençóis para cobrir o corpo, a notícia já havia se espalhado e as pessoas estavam lá, querendo saber detalhes.

Na sequência, Peritos entraram e reviraram o casebre, espalhando coisas por toda parte. Pegaram um tapete velho e corroído e jogaram no quintal do casebre. Folhas de papel rabiscadas voavam livres ao vento... uma aliança de ouro rolou pelo chão. Reconheci uma fotografia dele - pelo menos havia certa semelhança na fisionomia - amarelada, quase apagada, acompanhado de uma mulher e duas crianças. Uma fotografia que o remetia a uma juventude perdida há muitos anos.

Como eu era uma criança em idade escolar e curiosa por todo tipo de escrita, saí correndo atrás dos papéis espalhados, lendo alguma coisa aqui e ali, sem entender muito. Eram coisas que falavam de amor, de namorada, de família... versos... livros de autores que eu nem sabia pronunciar o nome. Coisas pessoais que eram arremessadas, assim, sem cerimônia, para fora do cômodo.

Na época, não entendi muito bem o ocorrido e nem havia em meu coração de criança sentimentos maduros para isso. Hoje, muitos anos depois, sei que aquele homem era um poeta. Amara, sofrera... Deve ter tido os seus momentos de solidão, de alegria, de felicidade. Como qualquer um de nós. Os rabiscos em sua casa, no chão, sobre o caixote de madeira que servia de criado e espalhados por toda parte... livros, tudo, tudo denunciava que fora uma pessoa que tivera uma boa educação, que lera bons livros.

Naquele instante percebi porque não gostava que a criançada se aproximasse da casa, quando passávamos para ir jogar pelada. Ali ele guardava, como se fosse um tesouro, todo o histórico de sua vida: as alegrias, as tristezas e as fantasias de um coração que sonhava. Guardava todos os sentimentos que habitam um coração e talvez tivesse medo de que algum ladrão os pudesse roubar.

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