Mais Um Conto de Bar

Quando nego amador começa a beber demais e ficar de pé redondo, saia de perto.

Sempre dá “zica”. Tenho vinte anos atrás do balcão e posso relatar histórias e mais histórias dessa gente. E, às vezes, tomo calote. Faz parte do negócio, não tem como negar.

Desisti do emprego na polícia militar para não aturar ordem de filho da puta nenhum. Dez anos justos. Consegui chegar só até cabo porque sempre fui boca dura. Nunca deixei baixo quem gosta de zoar o plantão dos outros. Não tem erro. Sou daquela velha filosofia que diz que “escreveu não leu é analfabeto”. Vim do interior do Paraná, amigo. Sou sujeito honesto e trabalhador. Inclusive, terminei o científico que hoje a molecada chama de ensino médio e servi o quartel por dois anos e meio. Tentei concurso na polícia militar e passei de primeira. Um ano e meio de treinamento! Hoje em dia tem uns que saem para a rua com nove meses... Como isso é absurdo. Aí chegam abordando qualquer um na rua, arma na cabeça e coisa e tal no cidadão honesto e tomam carteirada de médico, advogado, serventuário da justiça, delegado, promotor e os cambaus e tem que pedir desculpas, corar e ficar com o rabo entre as pernas. Comigo não, violão. Só dei achaque em marginal. Tive até que em começo de carreira ficar de segurança em estádio de futebol em dia de clássico. Já cheguei com a equipe descendo chumbo grosso em favela e sempre com as mãos firmes. Na hora que você escuta o grito enfurecido das torcidas organizadas pode crer que você fecha o cu. Quarenta mil malucos bêbados dentro de um campo de futebol realmente é aterrador! Resolvi sair da polícia por um motivo bem simples: não me corrompo e sempre questionei ordens. Nem precisa dizer que eu era visado lá dentro e quando apareceu a oportunidade de promoção para a parte de segurança do Governador do Estado, me deixaram na “geladeira “ e chupando o dedo. Ora, não quando eu era criança eu fui criança, porra! Criado na roça, cheguei aqui para a Capital com 13 anos. Morei até em pensionato de puta. Mas não reclamo. Trabalhei de tudo um pouco para custear meus estudos. Queria entrar para a Polícia e no fim me desiludi e sai fora. Eu estava recém-casado e minha patroa grávida do meu primeiro garoto. Não tinha mais estomago para arriscar minha pele todo dia por aquela miséria que salário que me pagavam. Ah, o Estado sempre foi um péssimo patrão. Resolvi mudar de ramo e abri uma pastelaria para começar. Fiz uma clientela rápido e eles exigiram que eu vendesse bebida alcoólica. Então comecei a virar escravo do meu publico. Que dúvida. Até que era legal. Tinha médico conceituado, advogado picareta cheio da grana, investidor de bolsa de valores, reitor da universidade técnica federal, promotor de justiça, delegado de polícia, fiscal de receita federal e até um escritor maconheiro maluco que na época estava começando e que hoje vende cinco mil livros de contos e fica com o burro na sombra. Achei que eu estava com tudo e ganhando um bom dinheiro decidi então expandir o negócio. Conheci também um cara que lidava com muamba do Paraguai e vendi uísque do bom, legítimo e por um precinho camarada. Aumentei meu estoque. Freguesia cresceu. Fui pegando experiência. Mas sempre tem um que quer bagunçar seu coreto. Cansei de expulsar gente inconveniente que quer falar alto e dar golpe na conta. E outra coisa que eu aprendi é que quanto mais humilde o cidadão mais honesto. O cara chega de terno e gravata impecável de três mil paus e quer ser dono da situação. Já cai nessa esparrela bom ter um coração bom e sei que a melhor faculdade é a vida. Claro que tomei uns tombos. A gente pega o jeito rápido. Ou você fica ligado ou toma trambique.

O malandragem chegou ao meu bar numa sexta à noite. Noite de sexta é dia de todas as criaturas que você imaginar saírem às ruas. Dá de tudo mesmo. É o dia que você não pode abaixar as antenas. E eu abaixei. De puro vacilo e um pouco de cansaço muscular. Pensa que é mole encomendar mercadorias, verificar estoque, atender o povo sedento que saiu do escritório num humor de cão, lavar chão de banheiro, esfregar privada, trocar rolo de papel higiênico, lavar copos e pratos, verificar se tem cigarro para vender, preparar o rango e atender povo somente com um barman e ainda por cima cobrar e fazer troco? Posso afirmar que não é para qualquer um. Então, como eu ia dizendo, o malandro chegou cheio de marra no meu estabelecimento. Carioca e com sotaque de tal. Bem vestido. Guri de tudo. Não tinha trinta anos nem a pau. Cabelinho na moda. Mocassin invocado no pé. Jaqueta boa. Parecia chapado de algum barato. Pelo menos meus dez anos de samango me fizeram aprender na marra. Só olhar nos olhos e dizer qual é o produto. Vamos em frente. Chegou e recostou no balcão. Essa treta que eu estou narrando para você aconteceu na última sexta feira. Perguntou qual era o melhor uísque eu tinha na casa e fiquei que orelha em pé. Com a minha idade e a minha experiência você já fica de ouvido em pé quando querem saber sobre isso. Resolvi arriscar e foi aí que eu baixei a guarda. Não aprendo mesmo. Informei ao garoto. Ele pediu uma dose dupla que servi. Pediu cerveja para rebater. O movimento estava razoável. Era cedo ainda, nem dez da noite. Depois da onze a coisa começa a ferver. Tomou a dose de um gole e sem cara feia e ficou bebericando sua gelada. Perguntou a seguir pela conta e pagou em dinheiro. Voltei troco. Ele disse para eu guardar na casa que ele iria consumindo durante a noite. Foi até o banheiro e demorou um bom tempo lá. Começou a chegar a minha freguesia. A turma do happy hour já estava pedindo a nota. Acho interessante essa mudança de pessoas depois de certa hora. Cada um sabe do seu. Eu tenho meu limite. Também tomo meus porretes. Dono de bar também é gente e filho de deus. O meninão carioca voltou e pediu mais uma dupla. Informei-lhe que o dinheiro que ele tinha me passado cobria todos os pedidos feitos. Ele sorriu e fez um gesto com a mão que realmente não consegui interpretar. Tocou seu celular e ele atendeu falando alto e ficou onde estava. Parece que estava dando o endereço do meu boteco para alguém. Não prestei atenção, estava somando uma despesa qualquer. Meu empregado atendia as mesas. Ele ficou ali bebendo por umas duas ou três horas. Já estava loucão. Pediu sei lá quantas doses agora, mas foram muitas. Quase uma e meia da manhã foi ao banheiro de novo e dessa feita pude perceber que já estava prá lá de Teerã. Tinha um brilho estranho no olhar. Pediu a conta. Somei e lhe entreguei a fatura. Para quê? Começou o escândalo. Falou que não tinha bebido tanto, que nunca tinha gastado tanto, que meu ganha- pão era uma espelunca, um pé sujo de quinta categoria, que eu era um explorador, um ladrão!

Essa palavrinha mágica me coloca maluco. Desce uma cortina vermelha sobre meus olhos e como sou descendente de poloneses não costumo levar desaforo para casa. Ainda tentei ponderar e argumentar, porém o garoto ficava mais abusado, ousado, ensandecido e falastrão. Levantei meu tom um pouco. Ele estufou o peito. Que erro. Quem é bom na pancada toma a atitude numa velocidade recorde e não abre a boca. Ele veio para cima de mim e levou uma mão em concha no meio do ouvido esquerdo. Nem sei quantas vezes fiz isso na Patrulha. Você pega o jeito e nunca mais esquece. Os joelhos do maluco vergaram e ele colocou a mão sobre a orelha. Agora tinha o olhar aparvalhado e apavorado. Dei-lhe uma joelhada no saco e joguei o bicho porta afora. Ele saiu praguejando dentro da noite e me fazendo ameaças. Verifiquei a pistola embaixo do balcão. A melhor pica dura que um homem pode ter. Fiquei esperando ele voltar com a sua turma por uma ou duas horas e nada aconteceu. Vendi bem naquela noite e os clientes disseram que tinha sido um ótimo espetáculo. A gente aprende. E se aprende...A vida ensina, é o que eu sempre digo. E mais uma para vocês: tenho mulher e filhos crescidos para adiantar e quando eles entram na faculdade é que realmente começam as despesas.

Agora estou aqui tomando minha primeira cerveja na madrugada gelada e me perguntando se aquele escritor maluco e maconheiro ainda irá aparecer para um trago e se essa história lhe poderia ser útil para alguma coisa...

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 18/05/2011
Código do texto: T2978511
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