O PRESENTE

Este será o décimo oitavo Natal de minha vida - os primeiros, com certeza não lembro, mas ainda garoto tenho imagens detalhadas dos outros meninos disputando a atenção das "tias". Quando cheguei no Abrigo, deram-me de presente uma caixa, enfeitada com papel verde-musgo, foi o primeiro presente da minha vida; minhas mãos rasgaram totalmente o papel e meus olhos infantis e curiosos abriram a caixa - era um jogo de dominó, nem sabia como se brincava, mesmo assim, guardei a caixa e não permitia que ninguém brincasse com o meu único presente.

As assistentes sociais organizam nossa festa de Natal que acontecerá no início da noite, pois no horário convencional, elas estarão com suas famílias, sempre foi assim. Ouço foguetes, pessoas nas ruas carregando garrafas; as lojas por certo, ainda estão vendendo muito, pessoas lembram, de última hora, do presente do cunhado, do sobrinho, do vizinho...

Nos supermercados, a multidão enche os carrinhos, sem esquecer do peru, do champanhe, das castanhas, do panetone e de muitas sobremesas.

Cresci no Abrigo, tendo pai e tendo mãe, mas diziam que eu era um problema, estava sempre em fuga. Preferia meus amigos de rua, ter como teto as marquises do que ver minha mãe submissa, tentando esconder os hematomas e meu pai envolvido com drogas, de viciado atingindo o grau de traficante. Deveria seguir esse destino?

- Rafael, por favor, venha nos ajudar! Organize os menores, para a distribuição dos brindes! - Quem fala é Helena, uma das assistentes sociais.

A gritaria é geral, tento colaborar com a organização, afinal os meninos são dos sete aos dezessete anos. Os pequenos vibram com esse momento, a Árvore de Natal é mágica, os encanta, ficam na expectativa aguardando o Papi Noel e eu penso que os sonhos dessas crianças são muito diferentes dos sonhos daqueles que tem uma casa e uma família. Muitos adolescentes se recusam a participar da festa, escondem-se para fumar ou para usar a droga tão bem escondida em seus quartos.

Certa vez, um repórter fez uma matéria sobre os Abrigos ou Casas-Lar e ele perguntou sobre nossa rotina. Temos horário para quase tudo, eu vou para o colégio pela manhã, depois do almoço, faço um curso profissionalizante porque meu gorande ideal é ter um trabalho, não depender de mais ninguém. Tem a hora do jantar, do banho, de ver TV. Podemos sair sim, não é uma prisão isto aqui, gosto, por exemplo, de namorar, jogar futebol e andar por aí.

Essa música de Natal me incomoda, é a mesma durante esses anos todos, eles falam de Jesus, mas tão pouco, nem parece ser Ele o grande motivo da festa. Até procurei ler e pesquisar sobre esse cara, foi e é realmente uma grande figura. Ele não selecionou os amigos -ladrão, prostituta, ricos, pobres, doentes, todos tinham valor. Ensinou também que a paz não está nos templos, que naquela época há haviam se transformado em comércio; a paz está dentro de nós, assim como Deus e o amor.

O brilho de mais um Natal está no fim, algumas crianças brigam pelos presentes, de tão simples, alguns estão em pedaços. Outros correm para a mesa, a comida natalina supera o gosto diário do feijão com arroz, quando tem, e hoje temos até refrigerante.

As luzes aos poucos vão se apagando. Sei que eu e outros garotos teremos que ir. Aqui foi nossa casa, até aprendi a gostar, as pessoas se esforçam tanto por nós. Porém, e agora? Chegou a nossa tão esperada maioridade.

Assim como entramos deveremos partir. Com a roupa do corpo e o presente que ganhamos na chegada. Meu velho dominó ainda está inteiro e eu terei um mundo a explorar e conhecer.

Ao sair, certamente verei algum menino num canto, inchado de tanto chorar e seu único brinquedo quebrado aos seus pés. O encanto do Natal poderá estar perdido para sempre. Segurarei meu dominó, minha infância apertada contra o peito; voltarei e darei a ele o meu sonho.

Rosa Dias
Enviado por Rosa Dias em 25/11/2006
Código do texto: T300689