O Suspiro do Inimigo

“Justo é ter caridade com todos”.

Tomás de Kêmpis

in Imitação de Cristo

O Suspiro do Inimigo

Elias nem olhou para trás quando lhe disseram, na porta de entrada, que Teobaldo Barreira havia morrido. Apenas ouviram, é o que se comenta, um suspiro profundo, uma espécie de alívio, quando meneou com a cabeça, em sinal de constrangimento.

“Simplesmente suspirou”, disse dona Odete, ao referir-se ao episódio. “Seu Elias sempre foi assim, calmo, calmo... nunca revidou aos ataques do Teobaldo”, completou, olhando o corpo dentro do caixão, entupido de rosas brancas e aguadas. “Borrifa, minha filha, borrifa, senão as rosas murcham”, dizia Inácia, vendo o marido esticado dentro do ataúde, o terno cinza lhe assombrando ainda mais a fisionomia, a gravata tantas vezes usada, a barba sebenta e rala que formava um caminho de serpente em seu rosto. Nos pés, um par de meias, para entrar, no céu ou no inferno, assim, meio que elegante, mesmo que em vida, segundo Elias e os comentários do povo, Teobaldo tivesse sido sempre “aquele ca-nalha escondido por trás de um sorriso familiar”.

Na entrada da pequena capela, ainda umas pessoas choravam. Apenas ali, uma mensagem de agradecimento pela vida do infeliz se via escrita numa das grinaldas. Afinal, acrescentava um dos presentes, um canalha desses!, e sorria, meio que indeciso, depois voltava-se para o caixão e, sem ninguém por perto, o desconhecido lhe soltava um riso de escárnio: “Ah, biltre, onde estás?!”.

Na família, a moda não se media. Teobaldo fustigava a um, molestava a outro. Seu papel, pois, no mundo, fora perturbar a um cristão. Atravancar, como um tranca-rua, a vida alheia. Mas morrera, agora, o Teobaldo e deixara nada mais que umas lembranças ralas. Na notícia do jornal se lia que fora algo parecido com... ninguém se lembrava.

Quando a edição do dia apareceu so-bre as mesas da cidade, nos cafés e nas livrarias ninguém se lembrava do pobre infeliz. Seu nome não estava ali, pois, es-crito numa página de jornal? Como que por displicência, naquele dia todas as pes-soas pularam a informação fúnebre. O que lhe sobrava? Num recanto de página par, um retratinho mesquinho deixava transparecer certa dolência. “Os parentes de Teobaldo Barreira, ainda contrariados com a sua perda, convidam para a cerimônia fúnebre que acontecerá hoje, 20 de novembro de 1995, na Capela de Nossa Senhora dos Impossíveis, às 15h. Os familiares agradecem por este ato de fé e caridade cristã”.

Ainda dentro do caixão, o corpo de Teobaldo aguardava o início da cerimônia, quando seria, enfim, encomendado por todos. “Ora, pois, não há de vir ninguém!”, disse dona Odete, olhando para a porta principal da capela. “E publicamos no jornal!”, acrescentou um dos que estavam presentes, mas sem ter certeza se vira, mesmo, algo publicado. “Passei todas as páginas e nada, nem mesmo a foto da cara do Teobaldo!”, murmurou. “Grande filho da mãe”, disse, trincando os dentes.

* * *

Mesmo vestido numa roupa nobre, Teobaldo não escapou dos escárnios. De um lado a outro da igreja, entre as seis pessoas da família que dividiam o peso monetário do sepultamento e o levantar do corpo, não houve sequer um momento em que não citassem negativamente o morto.

Teobaldo era, realmente, desses in-desejáveis. Nada na vida fora conquistado por ele de forma honesta; sequer sabia distinguir entre um gesto de caridade e um favor. Tudo nele respirava um interesse, uma falsidade, uma manipulação. Teobaldo era o protótipo do canalha que nasce e morre como tal. “Esse Teobaldo, que grande cretino”, resmungaram, quase unânimes, duas sobrinhas. Nem mesmo entre os familia-res sua fama diferia. Da rua, ninguém tinha notícias de sua morte, afora os leva-e-trazes de plantão. “Vai tarde”, disse o bodegueiro, ao saber que Teo-baldo finalmente morrera. “Odiava aquela cara”, falou o comerciante. “Vai, vai, vai”, suspirou.

Apesar das velas que iluminavam o salão da capela, os pensamentos de todos os seis ali presentes eram plenos de escu-ridão. “Mas, meu Deus”, pensava uma sobrinha, “nada de bom fez este homem em vida!”, concluiu.

Os cachorros, que sempre entravam nos velórios da Capela de Nossa Senhora dos Impossíveis, não quiseram adentrar ao recinto. É certo que um deles ensaiou uma entrada, colocou a cabeça entre o primeiro batente e o segundo, mas sentiu um cheiro estranho e saiu, aos latidos. “Até os cachorros avisam quando se morre um indecente”, frisou dona Odete.

Nem os pássaros pousaram sobre o velho ipê da praça da capela. Debandaram por outras partes e foram para a árvore da Bodega do Osvaldo. Um silêncio se fez no céu e, de repente, duas rasga-mortalhas anunciaram, no fim da tarde, o que alguns já sabiam. Ainda uns anuns pretos chegaram a pousar sobre o fio de energia de um poste. Mas quando perceberam a cena, voaram e expulsaram os pardais... “Nem os pássaros, nem eles”, replicou um bêbado.

Do outro lado da rua, passos lentos e medidos, o rosto pleno de segurança, com a mão enfiada no bolso do paletó e a consciência de um monge, Elias se aproximou do batente da capela, retirou o chapéu em reverência, suspirou profundamente, puxou uma caneta e, discretamente, escreveu, na tábua do caixão, como que por caridade, em letras miúdas, mas legíveis: “Ó Deus, receba este infeliz!”.

(Conto extraído do livro O Suspiro do Inimigo, de Mário Gerson, Prêmio Petrobras de Literatura - Coleção Mossoroense, 2009)

Mário Gerson
Enviado por Mário Gerson em 02/06/2011
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