O Nó do Enforcado

“As coisas duram mais que as pessoas”.

Jorge Luis Borges in

O Encontro, do livro

O Informe de Brodie.

O Nó do Enforcado

A vida pacata de Antonino Correia só fora mesmo alterada quando este aprendeu, com um caminhoneiro, a fazer o nó do enforcado. É certo que Antonino passou alguns dias numa peleja sem fim. Ora dava um nó mais apertado, ora confundia as pontas da corda e acabava por nada fazer, senão um emaranhado de nós sem sentido. “Bem que eu poderia ter prestado mais atenção aos ensinamentos de Nelito”, dizia, de si para si.

Antonino era um homem moderado, modesto e prevenido. Vivia numa casa simples, mas nem por isso denotava pobreza ou desconforto. Um sofá negro, esparramando almofadas pelos cantos, era a surpresa do visitante. Naquele tempo – lembra a crônica dos comuns – um sofá era raridade. “E ele tinha até rádio!”, disse, dia desses, dona Zélia. “Antonino, que homem bom!”.

Antonino merecia mais da vida. Não fosse a sua decisão repentina de aprender outros ofícios, nada do que me contaram estaria nesta crônica que reproduzo apenas como um mero contador de histórias.

* * *

O mês de outubro reservou para Antonino uma surpresa, segundo a crônica dos comuns. Ele era cogitado, por todos, para assumir, de herança do velho pai, coisa já acertada, uma pequena mercearia, sortida, até onde se sabe, de contas e fardos de feijão. “Antonino, meu filho, era o desejo de teu pai”, dizia a mãe.

No início, Antonino resistiu, resistiu de tal forma que antes mesmo de se declarar o bodegueiro do bairro, algumas compras já haviam apodrecido na dispensa. “Demoraste, meu filho”, reclamou a mãe, ao observar com que falta de prática e habilidade o filho conduzia os negócios.

Os dias se passavam céleres e nada mesmo, sequer um rompante de alegria, se via na face de Antonino, senão a tristeza reinante e a descortesia com que tratava alguns clientes. Daí que Antonino foi perdendo dois ou três fregueses, até que a velha o chamou e explicou-lhe, demoradamente, sobre a arte da venda. “O cliente é o senhor de tudo”, dizia, com uma sabedoria que ora oscilava dos almanaques de curiosidades, ora brotava de conversas matinais. “E, meu filho, teu pai era tão sábio”, repetia, todos os dias, enquanto Antonino levava à boca um pedaço de bolo. “Era tão sábio, meu pai”, e sorria, discretamente, conduzindo a mãe até a cozinha. “Meu pai era meu pai, mamãe”, repetia.

* * *

Passou Antonino a comentar, com os demais, de como era boa a sabedoria do pai. À noite se lembrava do velho: “Ele apertava as mãos alheias somente com a direita. Para sentirem como era homem, às vezes mais que os outros”, falava, como quem prega, aos domingos, numa igreja protestante.

Novembro, segundo a crônica dos comuns, foi um mês calmo. A venda voltara a ter os clientes de antes, todos, aliás, com suas cadernetas, onde Antonino anotava as compras e comparava-as. Para o bodegueiro iniciante, desacostumado às safadezas humanas, apenas uma caderneta bastava. Mas a mãe lhe recomendou que usasse duas: “Uma sua e uma do freguês. No fim do mês, você bate as contas, meu filho. Não há como errar”, orientava a velha, indicando, para o inexperiente comerci-ante, alguns macetes do ofício. “Não se esqueça, as pessoas são as pessoas”, dizia, como quem ensina na missa que a hóstia é, na verdade, o corpo de Cristo.

Em dezembro, de acordo com a crônica dos comuns, o jovem bodegueiro adquiriu uma tristeza. Bateu-lhe, então, uma angústia. Todas aquelas compara-ções, a mão do pai sobre a mesa da mercearia, somando contas e contas, a vida lhe indo devagar, lentamente, o desgosto com as pessoas, tudo resumia a existência de Antonino a um drama interior que ele jamais havia experi-mentado antes. “Meu pai era sábio”, pensava e, logo depois, queixava-se: “Eu não o sou”, dizia, de si para si.

Um dia, a crônica dos comuns revelou-me mais detalhes da vida de Antonino; ele pedira, mesmo, ao caminhoneiro Nelito que lhe ensinasse o nó do enforcado. Nelito não resistiu, pois que Antonino era homem incapaz de qualquer ato sinistro. “Antonino, o nó do enforcado é assim”, e lhe mostrou, passo a passo, como o fazer.

Pela manhã, quase alcançando o chão, os pés de Antonino balançavam ao ar. Ele aprendera, enfim, o nó que Nelito havia lhe ensinado.

(Conto extraído do livro O Suspiro do Inimigo, Prêmio Petrobras de Literatura - Coleção Mossoroense, 2009, Mário Gerson)

Mário Gerson
Enviado por Mário Gerson em 02/06/2011
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