Os Gatos de Madame M.

“Viver é o que há de mais raro neste mundo. Muitos existem, e é só”.

Oscar Wilde in A Alma do

Homem sob o Socialismo

Os Gatos de Madame M.

Levantei-me pela manhã com a mesma impressão do dia anterior sobre o corpo de Madame M. O que teria aconte-cido à pobre senhora que morava ao lado do hospital, sem que ninguém ouvisse nada no dia em que Madame morrera?

Nem eu, nem ninguém. Todos, im-passíveis, não escutaram nada, mas Ma-dame passara do mesmo jeito de sempre, puxando dois gatinhos vadios e com um casaco furado, como era de costume. Nin-guém mesmo perguntou, ou ousou per-guntar à Madame, as horas. Nem mesmo ousamos dar boa noite, ao que ela entrou faceira, mais uma vez, e fechou a porta da pequena mansão, onde mantinha, à custa de muitas rações, gatos e gatos e gatos. Felinos variados e de todas as espécies havia na casa de Madame M.

Eles sempre estariam ali, eu sabia, e pela noite, quando batesse às três horas – sim, às três horas – Madame mandaria os gatos se aquietarem e apagaria as luzes de dois abajures que mantinha na sala da casa, depois se levantaria.

Eu via o corpo branco de Madame M. percorrendo os corredores, porque duas outras luzes estavam acessas ali – e também via quando Madame se apegava à beirada da porta manchada pela repetição do gesto e depois ouvia mesmo a descarga do banheiro explodir turbilhões de gotas de água ao mesmo tempo, fazendo um barulho indecifrável. Que notas seriam? Eu não fazia, afinal, a minúscula idéia de quantas notas poderiam sair – em revoada – do sanitário de Madame M.

Ela também tinha hábitos noturnos e raramente – com a ajuda de um binóculo – eu enxergava o corpo de Madame sobre a cama. Ela estava ali, pastorando, com os gatos que criava, a casa e as paredes manchadas e com vazamentos, os abajures que há séculos não eram limpos, os quadros dependurados nas paredes, as lembranças do marido e da família, os sonhos sonha-dos e os sonhos perdidos, a vida e a morte próxima.

Madame nunca ligara mesmo para ninguém. Sozinha e viúva – o marido morrera durante a Segunda Guerra Mundial – ela se deixava levar, todo o dia, olhando os gatos que enchiam a casa e se espalhavam pela vizinhança. À tarde, assim, perto das 18hs, os gatos vinham, um a um, para a casa da mãe. Aglomeravam-se primeiro no portão, aos miados, e depois que pulavam o portão – sempre em bandos de cinco ou seis, se juntavam na porta da casa, com persianas da França e uma decadência bem brasileira. A velha saía, impreteri-velmente, às 18h15 e abria a porta para os bichanos. Enquanto eles corriam entre as suas pernas e depois iam para a cozinha, onde ela – sempre atenta e caridosa – lhes preparava a comida, eu ficava observando os gestos de Madame.

Contavam-se, nos últimos dias de vida de Madame, cerca de 100 gatos. O cálculo podia variar, já que Nelito nunca soubera, ao certo, o número exato de gatos na casa de Madame. Nem eu mesmo, que cheguei, muitas vezes, quando criança, a pular o muro da casa que julgávamos mal assombrada, não saberia contar, agora, o número deles. Apenas deduzíamos e esse número – escalado numa dedução – podia ser maior. Madame, também, jamais co-mentara conosco sobre os gatos, preferia, quando falava – era rara a prosa com a velha do casaco furado – preferia falar da guerra e lembrar da pistola do marido, que deixara sobre a mesa e que, um dia pela manhã, depois de despertar, não a encontrara mais. E, sempre que escutávamos a história da pistola do marido de Madame, os olhos dela enchiam-se de lágrimas e uma nuvem de tristeza pairava sobre nós. Conduzíamos, depois, ela para casa, sempre com cuidado em não batermos em nada. “Meus meninos, eu estou bem. Podem deixar, que daqui a pouco eles chegarão”, a velha dizia e recolhia-se na cadeira, fechando os olhos opacos e cerrando as pálpebras quase sem vida, cobrindo-se com uma manta cinzenta e olhando – as pupilas recheadas de saudade – pela janela afora. “Daqui a pouco, meus meninos, daqui a pouco”, e suspirava, afundando-se na cadeira e sumindo entre as tiras e a manta cinzenta.

Saíamos da casa de Madame sempre esperando o trágico. E nunca o trágico chegara. Somente os gatos chegavam, aos montes, a casa. Como se fossem informa-dos que ali haveria comida, água e mora-dia, eles se acumulavam pelos corredores e dormiam sobre as colchas de veludo de Madame, amarrotavam seu casaco com furos e arranhavam – sempre aquelas unhas rangentes – o sofá de Madame M. Também defecavam na porta da cozinha e espatifavam, pela casa, panos e tiras, bolas e rolos de linhas, papéis e objetos redon-dos. Madame, nos últimos anos, se recu-sava arrumar os pertences e sempre que eu – quando queria – me preocupava com Madame, a encontrava no quarto, olhando as fotografias antigas, onde aparecia, ora de pijama, ora de fraldas, com um bubu na boca, a olhar para a câmera assustada. “Veja, meu filho, eu era tão feliz, tão profundamente feliz”, e soltava um suspiro agonizante, fundo, fundo mesmo, e aquilo me surpreendia, fechava a porta de Madame, ia para a rua e me deixava levar, pensando os pensamentos dela. “Profundamente feliz”, eu dizia, e jogava uma pedra em algum gato, sorrindo.

Não sei dizer, ao certo, porque estou me lembrando, agora, da história de Ma-dame. Nem sei mesmo o motivo de sua morte, nem o que a levou a fazer – se o fez – o ato extremo, dando cabo a sua existência.

Há pouco a tínhamos aqui, a Mada-me da rua, com seus gatos a perambular pela cidade. Pela manhã, um passeio rápi-do com os dois gatos preferidos. “Isso, meu filho, não é acepção de pessoa”, ironizava, “é só porque eles dois – os gatos – são meus preferidos. Eu os privilegio. Eles têm mais valor que certos seres humanos”, falava e deixava-se ir pela calçada, se desviando dos postes e dos cachorros que encontrava pelo caminho.

Há um mês Madame faleceu. Há um mês não vejo Madame e seus gatos. Há um mês não me sai da mente a cena do seu sepultamento e os mais de 100 gatos que eu e Nelito pensávamos não existir dentro da casa de Madame, todos acompanhando o funeral, na beira da cova de Madame M., olhando, profundamente, a mãe sendo sepultada e a voz de Nelito, à beira do túmulo, me dizendo: “São mais de duzentos”.

(Conto extraído do livro O Suspiro do Inimigo, Prêmio Petrobras de Literatura - Coleção Mossoroense, 2009, Mário Gerson)

Mário Gerson
Enviado por Mário Gerson em 02/06/2011
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