O Executivo

Dr. Breno havia sido solicitado na sede da empresa. Gostava de ser chamado assim, Doutor. Not-book, celular, pen-drive’s, pasta de documentos, tudo no banco de trás do carro de luxo importado. Odiou ter que esperá-lo ser trazido do estacionamento. Saiu rápido até o acesso à rodovia que o levaria ao centro financeiro do conglomerado urbano da outra cidade onde haveria a reunião. Enquanto dirigia, arrumava os cabelos e o nó da gravata. Nem percebia as margens da estrada. Um acidente ali. Uma ultrapassagem acolá. A estrada que cortava as mudanças de paisagens era, literalmente, o meio pelo qual trafegava sem que nada lhe chamasse a atenção. O perfeito ar condicionado e os vidros escuros guardavam os naipes de violino das 4 Estações de Vivaldi e o protegiam da temperatura e ruídos externos. Por não terem lhe falado a razão da reunião, tentava imaginar o assunto, conjeturando situações nas quais fosse requerido ou mesmo inquirido. Entregava-se a esses pensamentos quando ouviu um estampido seguido de uma ligeira instabilidade na direção. Foi desacelerando a contragosto enquanto, pela primeira vez, interessava-se pelo cenário. Não havia um posto, uma borracharia muito menos. Uma casa... Nada.... Mesmo o trânsito da rodovia parecia de feriado no inverno. Praguejou e abriu o porta-malas. O estepe estava descalibrado. Murcho mesmo. O celular não funcionava. Pensou em ir assim mesmo, “comendo a jante", mas sabia que não iria longe. O carro ainda não estava pago e havia o plano de blindá-lo.

Decidiu olhar mais atentamente nas duas direções. Somente uma silhueta diminuta aproximava-se lentamente. O calor fora do carro era insuportável. Guardou o paletó e disfarçando o interesse, aguardou o lentíssimo pedestre. “Deveria ser um caipira local". Não saberia de que forma poderia lhe dar alguma ajuda. Mas... E se fosse um seqüestrador? E se tudo não passasse de um plano: Miguelito na estrada, trecho sem viva alma...” Sentiu um arrepio. “Não, não. É apenas coincidência!” Mudou o pensamento. Já fazia 25 minutos que estava ali. Imaginava que em mais hora e meia se iniciaria a reunião e ele, ali, fritando no sol.

- Bdia sôrrr!

- Bom dia!

- O oltomóve encrencô?

- Furou o pneu!

- Êêê... Sô qué ir comigo? Meu sobrin sabe mexer nessas coisa!

- Onde é?

- Há uns dois quilome em frente, mais um às direita...

Não havia outro remédio. Teria que ir. Não poderia se expor à margem daquela estrada.

Cheiro do mato, caminhos de formigas num frenético movimento, ipê florido de caule poderoso. Foi um alívio ter saído do calor do asfalto e ir caminhando pela aquela trilha, após empurrar o carro para um desvio discreto um pouco atrás. Logo, via-se seguindo aquele estranho como se fora um velho conhecido. Caminharam pela mata em silêncio, atravessaram o córrego com uma pequena cachoeira e continuaram até o sopé de uma colina com árvores mais esparsas e uma casinha com uma varanda acolhedora.

Sentou-se numa velha cadeira e se pôs a observar a paisagem ondulada que ia do verde forte, mais próximo ao azul acinzentado ao longe, dando um tom mais suave a cada contorno. Gaiolas, tarrafas e objetos de cerâmica anunciavam que aquela era uma casa em que se trabalhava muito artesanalmente. Nem percebeu a moça sustentando um pratinho de doce de frutas da região.

- Obrigado, mas não posso comer doces.

Ela retirou-se em silêncio cruzando a porta com um rapaz rosado.

- Boa tarde!

- Boa tarde?

- São 2 horas.

- Duas horas?

-Tenho que pegar umas ferramentas que o vizinho pediu emprestado.

- Lá no carro tem macaco.

- Vou pegar o carro de mãos, e um pedaço de madeira, tirar os pneus, trazê-los e ir à cidade no carro do vizinho para recuperá-los. O senhor tem a opção de ficar esperando aqui, ir comigo até seu carro e voltar, ou deixar o carro onde está e ir para a cidade comigo. Caso queira chamar o guincho poderá ligar de lá e eles vêm apanhar.

- Essa me parece ser a melhor solução.

- Acredito que faria o serviço mais rápido, mas a escolha é sua.

Dr. Breno e o sobrinho do caipira seguem até o carro, e de lá, até à casa do seu vizinho, isto é, a uns 4 km no total. Os trajetos são feitos quase em silêncio.

- Você mora e trabalha aqui?

- Já trabalhei muito. Na roça.

- E hoje?

- Vivo na cidade.

- Tem uma...

- Borracharia? Não... Já tive.

- Gosta daqui?

- Sim, muito!

O Doutor entendia pouco, a opção de se viver em um lugar como aquele. Mas existe gente com tudo o quanto é gosto. Ainda bem que ele vivia como queria e estava bem empregado.

Da casa do vizinho seguem direto para a cidade. Ao primeiro sinal no celular, Dr. Breno liga para empresa a fim de justificar sua ausência. Contata o seguro e o sobrinho do caipira retorna. Ao despedir-se, o Dr. Breno agradece e vai embora. Nem oferece uma gorjeta! Agora, é só ir a um bom hotel, refrescar-se, tomar uns drink’s e continuar imaginando estratégias de respostas para qualquer assunto que possam lhe trazer, oriundo da pauta da reunião à qual faltara. Fez simulações... Até adormecer.

- Bom dia!

- Bom dia! Pode entrar.

Seu chefe estava com o semblante de quem não dormiu bem. ...Ou será por causa de sua falta à reunião? Eram poucas as vezes que se sentia inseguro, e aquela era uma delas.

- O assunto para o qual o chamamos ontem, e que você não pode vir, é um assunto grave. Vou direto a ele: devido aos custos mostrados na última reunião de acionistas e diretoria, foi decidido reformular a estrutura da empresa com reduções e alterações. O senhor tem prestado serviços relevantes à organização nesses anos e tudo faremos para que permaneça no mercado de trabalho, mas a reunião de ontem era para lhe comunicar a decisão de desliga-lo.

- Já existe uma pessoa no... Meu lugar?

- Já. Peço-lhe que antes de ir efetivar o desligamento, converse com ele sobre o seu trabalho. Preparamos um plano de remuneração que lhe apresentaremos logo mais à tarde.

Dr. Breno saiu da sala como se não existisse chão. Não conseguia acompanhar os acontecimentos. A secretária da diretoria dirigiu-se até ele e o conduziu à sala de reuniões onde seu sucessor o esperava.

- Esse é o senhor...

- O borracheiro? Que é que o você...

- É uma pequena história dona Clara. Pode deixar que eu mesmo me apresento ao Dr. Breno.