Diário de um coroa

Passou a escrever seu diário após aquele delírio:

Naquele dia, levantei cedo, olhei-me no espelho e comecei a dançar...

Ah sim!

No dia anterior havia assistido um documentário sobre os figuras de época.

Acordei com a música do documentário na cabeça:

Era Beny Bennassi, Natural Woman.

Não me pergunte o porquê da música, era essa.

Senti-me nos tempos de garoto, um cabelo meio estranho, os sapatos então...

No reflexo inclusive, a cena era essa, esfreguei os olhos, aí a cena piorou,

Estava agora vestido de abutre - um dos temas do documentário -, ao meu lado estava minha filha, aos 5 anos de idade, me olhava adorando a roupa preta e batia palmas junto ao irmão, bom, eles tem uma certa diferença de idade, mas juro eles estavam ali, lado a lado.

O menor apontava para o meu braço e também batia palmas, feliz como nunca.

No reflexo do espelho cada braço tinha a imagem de um deles tatuada, meu braço estava um pouco maior também, as crianças não paravam de me seguir, preciso lavar o rosto direito, ainda estou com sono, pensei...

No espelho do banheiro a imagem era a de todos os dias, as crianças não entraram, fechei – como de costume – a porta. Eu vestia o rotineiro pijama azul e ia fazer a barba, mas as crianças abriram a porta.

Nisso, meu reflexo começou a sofrer mutações, minha expressão ficava mais contente e a barba crescia fora de dimensão pelo rosto e as crianças continuavam a bater palmas, não adiantava lavar o rosto pensei, aceitei o sentimento que estava querendo me tomar.

Peguei a chave do carro e desci para a garagem, as crianças já haviam descido.

Quando cheguei à garagem o susto foi demais, senti que daquele dia não passava do hospício, as crianças estavam engatando em minha moto um assento lateral e já se sentavam nele...

Achei que era demais, resolvi voltar correndo para o apartamento e quando passei pelo “hall” do prédio, o espelho novamente mostrava uma imagem de um verdadeiro estradeiro, e ouvi em algum apartamento a música de Ray Charles...

Cheguei a colocar a mão na porta do elevador, mas a vontade de me entregar àquele sentimento era alta e as duas crianças lá fora gritavam como nunca a palavra papai!

No mesmo apartamento, acho que era do primeiro andar, começou a tocar Cazuza – Exagerado, meus pés perderam o controle e como num passo de Michael Jackson, andando de costas, passei em frente ao espelho novamente e a imagem agora era de um grande cabelo encaracolado e uma fita na cabeça, abri a porta do hall e as crianças vibravam como nunca ao me verem.

Minha esposa me chamou na janela, era pra jogar meu capacete, agora era ela quem estava vestida com uma regata de motociclista preta.

Aaaaaai! Eu só queria ir ao supermercado, mais nada, porque tudo isso?

Desfilei pela cidade com as crianças, todo mundo olhava; e as crianças no assento lateral riam como nunca; o menor, quando alguém o olhava de um carro, ficava sério e dava uma risada de sem graça, nem eu agüentei o sorriso estampado em meu rosto, era enorme.

Já no supermercado, quando saí da fila do açougue, olhei para trás para entregar aos meus filhos a carne, e um segurança vinha falar comigo reclamando que dois adultos estavam brincando no carrinho de supermercado e diziam serem meus filhos, corri, já não duvidava de nada a esta altura...

Ao seguir o segurança, quase fui atropelado por um carrinho que um rapaz todo de branco, médico talvez, próximo de seus 25 anos empurrava pelo supermercado com uma moça de seus 38 anos dentro, o segurança e o gerente falaram comigo que aquilo era proibido. Eu ia reclamar com, com, com as “crianças” mas reparei naquele instante que eles estavam velhos e que eu não havia reparado neles crescendo tanto, talvez não tenha dado a devida atenção, mas não quis me preocupar, corri atrás dos dois e joguei-me dentro do carrinho enchendo minha filha de beijos, enquanto ele, meu filho empurrando em alta velocidade o carrinho para fora do supermercado, olhava para trás o segurança de um jeito sério e soltava novamente a risada sem graça, exclusiva dele...

Olhei para frente, mal pude piscar, vinha um ônibus em nossa direção, só pude ler o destino, “felicidade”, a pancada foi grande, pois acordei todo dolorido em minha cama.

Fui acordado pelo meu filho pronunciando o nome da irmã, coloquei as peças de roupa preta que tinham em casa, peguei a moto estradeira na garagem e fui para a cidade próxima encontrá-la havia prometido uma conversa, não queria que crescesse longe de mim, não em relação à distância, mas em tudo, queria naquele dia conversar como nunca.

O restante não entra neste diário, pois não cabe numa página, é história pra uma vida inteira...