Cotidiano III. A Vida é uma Ordem.

São Paulo, 06 de abril de 2.000 – 10:21.

“Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida, apenas, sem mistificação”. Carlos Drummond de Andrade.

20:25.

Vou-me embora. Saio da biblioteca, um bom programa, após prova, lúcido, ou melhor, embriagado de poemas que sei que não enchem barriga, mas elevam o espírito. Rimbaud e Baudelaire, descobri-os, lindos, rebeldes e malditos. Caminharemos...

07.04.2.000. Tarde.

Olha, já estou de saco cheio de algumas coisas, fatos, atos e comportamentos de minha vida. Já estou farto de coisas, relógios, hora marcada... Quanto menos peso, melhor. Basta o peso da consciência.

08.04.2.000. Madrugada.

Por um mínimo tudo alivia, incursões mórbidas, transbordamentos, o mundo abdicado. Eu, bêbado pela madrugada, louco pelos cabarés da Lapa, neurótico, arrastando meu ser sem cérebro...

10.04.2.000. Manhã.

Hoje é aniversário de meu pai, homem digno, raridade hoje em dia, ou melhor, os dignos sempre foram raridades, quando não assassinados.

No céu de São Paulo não se vê uma nuvem sequer. O ambiente prevalecente é o barulho, principalmente uma britadeira ali embaixo que não pára nunca. Não sei como consegue arranjar tanta coisa pra furar. Desse jeito vai acabar varando o Planeta. Preciso avisar o sujeito para que pare um pouco, descanse ou esqueça essa máquina, pois ela fura a rocha, rocha mineral, sem vida, agora, o coração é de carne, e carne é frágil, mole, e com tantas sacudidelas pode pifar.

Avisarei o cara. Avisarei, mas com medo de que ele, revoltado e com a mulher doente em casa, filhos passando fome, meta a britadeira no meu crânio, perfurando com prazer.

Também hoje, além do trabalho, do sono, do calor e das tentações, tenho prova de processo civil, prova que enjôa; fico com vontade de vomitar tudo, botar no liquidificador com vodka e beber novamente de um só gole.

Um súbito silêncio ocorreu lá embaixo. Imagino que mataram o operário. Algum executivo, médico ou advogado, cansados e intoxicados pela poluição que abafa São Paulo, saiu do veículo, pálido, e já com o olhar demente, socou a caneta na nuca do sujeito, causador de tantos tormentos.

Vou descer. Enfrentarei tudo, pois nada tenho a perder. Fumarei um cigarro, ligarei para meu amor e assim, suspenso no mormaço da megalópole, flutuarei até novos mundos e pensamentos.

Tarde.

Saí aquela hora, correndo pelas calçadas da cidade atrás de um orelhão e um cigarro. Liguei, fumei, almocei e vou trabalhar. O trabalho é tédio!

Eu vejo, vendo os anos passarem nos demonstrativos de recebimento de salários, sinto fortes angústias.

Uma pequena dúvida nestes fracos instantes de minha vida: devo ou não fazer a prova? Devo ou não trepar? Devo ou não me embriagar? Estrangular alguém, ler poemas? Ou, quem sabe, não seria melhor me estrangular? Não, tenho mãe, pai, irmãos, cães... Ah, os cães, como os amo! Restam-me livros, Drummond, Sartre, Hesse, Voltaire, Nietzsche, todos, ao mesmo tempo, alegram-me e distraem-me, pouco a pouco, sentindo... Uma mulher interrompeu bruscamente meus devaneios. Droga!

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 13/06/2011
Reeditado em 14/06/2011
Código do texto: T3032105
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