Eu Bebo, Sim!

- Você não acha que já bebeu demais, Ernesto?

- Qualquer liquidez engolida que enfureça o raso caminhar da alma bipolar, merece meu alarmado incentivo.

- Vamos embora, Ernesto! A Soninha vai ficar furiosa.

- Ah é? E a raiva cambaleante e complacente, que oscila na imagem decotada do matrimônio promíscuo? E o sentimento encarcerado nas imundas barras frias da indiferença feminista, camuflado em trapos modistas?

- Pára com isso! Olha o que a bebida está fazendo com você!

- Ué? Nada além de despertar o labirinto encefálico, poluído nos odores sexuais passados e acariciado nas unhas afiadas do cafuné forçado!

- Pára, cara! O pior é que o garçom continua trazendo, mesmo sabendo o estado que você fica!

- Culpa do garçom??? É apenas um miserável elo entre a derrota sonhadora e a capacidade operacional de capturar sustento no esforço braçal. Abandonado ao lodo pelo sistema safado, vive a indecência da timidez esbanjando-se nos seios das prostitutas-amantes, enquanto avermelha-se na ousadia da metrópole faminta.

- Porra, Ernesto! Que saco!

- Deve ser mesmo “um saco” aturar a falência moralista neste palanque enferrujado, reservado aos copos mal-lavados e às lamúrias esperançosas. Tudo culpa do espalhamento da cretinice cotidiana.

- Traga a conta, garçom!

- Mas e a saideira? Último recurso para impedir a drenagem das atitudes valentes! Gordas gotas desfilando, com eventual desprezo, rumo às sensíveis papilas gustativas, encontrando, finalmente, o ápice alucinógeno das substâncias que a compõem. Só mais...

- Cacete, Ernesto!!! Você tá ficando branco, cara!!!

- Só mais...

- Se segura, Ernesto!!! Você vai cair...

TUM!

- Hum...

- Acordou, é?

- Han..hum...Soninha? Não me diga que...

- Isso mesmo, Ernesto! De novo!!!

- Mas...ai, minha cabeça...como...

- O porteiro te encontrou largado na porta do boteco, abraçado no Fumaça!

- Fumaça?... O vira-lata do bairro?

- É, Ernesto!!! O vira-lata...o vira-lata...

- Não chora, Soninha...

- Como “não chora”??? Esse vício vai te matar! Você parece outra pessoa!! Fica falando um monte de besteira, filosofando, parece um doido! E esse bafo, Ernesto???

- ... desculpa...

- Desculpa, o cacete! Vou dar um jeito nisso, já que você não é homem!!!

- Soninha....espera..o que você...

- Já volto!

- Mas...

Soninha atravessa a parede humana que se esmaga em frente ao boteco mirando, furiosa, o rosto do proprietário. Aos gritos, culpa o dono pelo inferno que virou seu casamento e pelas alienações do marido. Alguns motoboys esticam as cabeças e assistem, aos risos, a insana mulher apontar o dedo para o senhor de bigode. Ainda com o rosto vermelho e quente, Soninha sai do boteco, derrubando alguns copos no trajeto.

- Miúdo! Junta o pessoal do boteco.

- Beleza, Seu Joaquim... Unha Suja! Zarolha! Timóteo!

- Vocês sabem quem é aquela dona que estava gritando aqui, não sabem?

- Sabemos, sim, Seu Joaquim. É a esposa do Ernesto, que vem aqui toda noite.

- Então, já é a terceira mulher que vem fazer barraco aqui essa semana. Não vamos mais servir a especialidade da casa.

- Mas...

- Eu sei que é a bebida que mais sai...

- Mas todos os homens...

- Assunto encerrado! De volta ao trabalho.

- ...Ok, chefe.

Com as mãos apoiadas na gaveta da caixa registradora, Seu Joaquim lamenta o prejuízo futuro. Mesmo sabendo que a bebida saía aos litros, não podia deixar que o boteco recém-aberto ficasse mal-visto pelas mulheres da vila. Infelizmente, já estava decidido.

Manga com leite, nunca mais.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 29/11/2006
Reeditado em 21/06/2007
Código do texto: T304435
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