Nem todas as pipas são acrobatas...

Os longos cabelos avermelhados davam-lhe pelos ombros. A face sugeria uma ascendência européia, mediterrânea, quase de um cristo extemporâneo e urbano.

(...) Talvez tivesse parentes distantes no norte, no sul, ou, no coração verde da pátria. (...) Talvez.

Todos os dias lá estava ele, sentado à porta da escola pública, a acompanhar o movimento de mais um dia letivo do ano de 2002.

Do outro lado da rua, bem à sua frente, o vazio da parede era preenchido por uma placa, que, com todas as cores e com todas as letras, em silêncio, anunciava:

“Em breve, aqui. Empreendimento imobiliário. Dois quartos e uma suíte, duas vagas, salão de festas, playground.

Use seu FGTS. Fuja do aluguel. Mude já!!!”

Mas, enquanto o arranha-céu não surgia, a velha padaria, já quase massa falida, continuava a servir pães com manteiga, pingados, rabos-de-galo, e até doses de fogo paulista para esquentar as frias e úmidas manhãs de junho da metrópole paulistana.

Nunca aquele homem fora visto lá dentro. Estava sempre do lado de cá da rua, na outra calçada, amparado por um muro ainda tomado pelas pichações da última eleição presidencial, como se a extrair lições do cotidiano do asfalto, dos bem-te-vis, e de pedestres apressados, que se cruzavam, que mal se olhavam, que nunca se viam...

E ele ali, à margem geográfica da rotina social da rua, da cidade, do país, a respirar ares de caminhões e motocicletas... na solidária companhia de um saco sujo, roto e pesado, que, ora carregava nas costas, ora punha de lado.

(...)Talvez lá estivessem os seus bens materiais, os metafísicos, a sua história, os seus segredos, as suas senhas, a sua fé.

(...) Quem sabe lembranças de Aparecida, de Juazeiro, do Divino, da Senhora dos Navegantes. Valia-lhe ainda como apoio para o corpo maltratado pelas agudezas do dia e das noites sem estrelas e sem luar, que, se por ali passassem, até poderiam, em um gesto de pura generosidade, servir-lhe de telhado, fazê-lo deleitar-se com o céu a piscar luzes, a imitar presépios em noites de Natal...

(...) Parece que só lhe restava mesmo garimpar bitucas do meio fio, fazer figuras de fumaça e vê-las subir ao céu; algumas mais duradouras, mais estéticas, mais ousadas, até se dissiparem todas levadas pela brisa de uma já quase ensolarada manhã de inverno.

(...) Afinal, nem todos os galhos atingem as alturas, nem todas as sementes germinam alimentos, nem todos os botões florescem girassóis, nem todas as pipas são acrobatas.

Vieram outros dias, elegeram-se presidentes, derrotou-se o medo, renovou-se a esperança... e lá estava ele, como ontem e anteontem...

Vez por outra, levantava-se, murmurava frases truncadas, ininteligíveis, e, em curtas idas e vindas, caminhava pela calçada...

Observava-o por breves segundos. Primeiro pelo parabrisa, depois pelo retrovisor... viria a próxima esquina, a outra rua, até que de vez sumia da paisagem do vidro traseiro...

Era sempre assim... o mesmo destino, outros veículos, helicópteros, beija-flores, a mesma imagem, antigos amanhãs...

E eu... que tantos contos tinha para contar, lembrava-me apenas do velho casaco que precariamente o cobria, das alpargatas puídas, desbotadas e sem cadarços, dos pés imundos, da camisa rota, do peito aberto, e de um vira-lata que abanava o rabo para ele, fazia-lhe festa, mostrava-lhe a língua, dava saltos e mais saltos de alegria, depois espreguiçava-se e lá ficava, a vigiá-lo; parecia querer protegê-lo, animá-lo, consolá-lo, vê-lo contente, repartir com o homem aquele seu momento de incontida felicidade...

FIM

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 19/06/2011
Código do texto: T3044801
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