A Musa do Metal 2007.

Esse texto reflete a moral e os costumes vigentes e o sistema de valores da atualidade.

Seja lá o que isso for...

(N. do A. )

Ela era a tal.

A verdadeira e inconteste rainha do underground. Tinha a agenda cheia. Stripper de boate da moda. Ganhava um bom dinheiro mostrando a tanga de oncinha para os coroas do jet set aqui da cidade. Namorou os caras das principais bandas de rock e metal da área. Sem compromisso com ninguém. Trocava seus homens como trocava seus casacos de pele de carneiro. Linda. Descendente de árabes pelo lado materno & e de alemães pelo lado paterno tinha herdado os melhores traços das duas etnias. Olhos castanhos expressivos, cabelo ligeiramente cacheado nas pontas, seios fartos e firmes, coxas bem delineadas, os pés pareciam sido esculpidos por um mestre assim como seu nariz que combinava perfeitamente com sua boca e com os óculos escuros que usava em qualquer ocasião. Ia a todas as festas. Todas. Transava no primeiro encontro. Saia com um e com outro no mesmo dia. Morava num apartamento maneiro no bairro das Mercês. Era conhecida em todos os bares e inferninhos de Curitiba. Inclusive, tipo catado os caras de uma banda nova-iorquina que tinha vindo fazer uma apresentação por aqui e saiu falando cobras e lagartos dos gringos. Que tinham pau pequeno, e o diabo. Seu nome era Liz ou coisa que o valha. Não deveria ser seu nome verdadeiro. Não importa. Uma boa história não precisa ter um nome. E ela era realmente a tal. Nada poderia dar errado. A vida para ela era uma festa em movimento e perene. Usava de tudo um pouco: ácido,ectasy,erva,vodca,vinho,cerveja,uísque,rum com coca, remédio para emagrecer, cocaína e o que aparecesse na noitada. Boates, bares, shows, discos, era tratada como rainha e nunca pagou uma conta. Inclusive, posou em fotos sensuais para uma revista de entretenimento local e para um site da internet bem picante e para adultos. Também tinha feito um filme pornô com uns malucos e era meio gang bang da pesada. Claro que isso virou clássico cult imediato e arrebatador na web e nos circuitos mais descolados. Liz estava com tudo. Vinte e quatro anos, vai dizendo aí . Estava no auge. Tinha fila de homens lhe presentando todas as noites com joias, flores, perfumes caros de fragrâncias exóticas, roupas das melhores casas do ramo, pedidos de casamento certinhos com aliança no dedo e tríplex no Juvevê com carro na garagem e motorista particular à disposição, lua de mel na Europa e em Bali e todo esse babado. Ria na cara dos pretendentes. Seu negócio era a turma do som, da pintura, da literatura. Dizia que gostava de conteúdo depois do sexo. De trepar despudoradamente e depois conversar sobre os Velvet Underground e o Fernando Pessoa. E o pior que a mina lia. Lia muito. Tinha assunto. Tinha levado para a cama todos os lideres de bandas da cidade. Todos. Tinha dormido com todos e inclusive levado um relacionamento meio sério com o guitarrista de um conjunto que tinha se tornado o “próximo Sepultura” com direito a capa numa revista canadense especializada. Ah, tinha esquecido mencionar que ela fora eleita “Musa do Metal 2007” no blog mais comentado do agito das “Araucárias” aqui. Foi no auge de toda essa loucura que ela conheceu o Mau.

O pior é o Mau era meu amigo. Se é que o Mau era amigo de alguém. Mas eu o considerava um. Seu nome verdadeiro era Mauricio Ricardo Amado de Oliveira. Vulgo Mau Rocks. Ele era sarcástico para caramba, tinha um humor negro fenomenal que desconsertava o interlocutor, os olhos verdes penetrantes como de um gato e ele tinha uma forma maliciosa de olhar. Um mutante, um camaleão. Ás vezes eu e o encontrava lá pelo bar da Tia Lila gordo e rechonchudo como um velho beberrão, semanas depois eu o vi magro de assustar. Tatuagens cobrindo seu tronco, braços e costas. Cabelo castanho claro batendo pela sua cintura. Vestia-se de um jeito louco e transado, suas roupas eram velhas e rasgadas, mas tinha estilo. E tinha queda por jaquetas & casacos & botas. Anéis em oito dedos. Sempre estava desfilando com umas camisetas inusitadas. Ia a todos os shows. Gostasse ou não. Ia para ver sangue, como ele sempre dizia.

Bebia bem. Nunca o vi muito alterado ou cambaleante ou vomitante ou desagradável. Pelo contrário. O álcool aguçava seus sentidos e sua ironia. Ficava te fitando com aquelas contas verdes de um jeito realmente provocador. Quem não o conhecia ficava apavorado com ele. Quem o conhecia também? Ele era dessas pessoas que se você dizia uma coisa realmente escrota e replicava com uma coisa mais escrota ainda e mais inteligente. Escrevia bem demais. Era tão nojento, doentio, estranho e psicótico que me fascinava. Tinha feito dois livros de contos urbanos e tocava baixo numa banda punk e ainda escrevia as letras. Tinha figurado num curta metragem de um cineasta e seu papel era representar a ele mesmo. Sempre tinha bagulho do bom.Rezava lenda que ele tinha sido internado numa clínica de reabilitação com 16 anos em virtude de picos de cocaína mas eu nunca tive coragem de lhe perguntar isso diretamente. Se fosse apenas cascata era uma cascata genial. Morava no bairro também. Sozinho. Ouvia musica o tempo todo enquanto escrevia suas histórias degeneradas. Saia todas as noites. Sempre tinha uma louca a fim de dar para ele. Vinha à minha casa de ficamos muito tempo conversando e rindo, mas nunca me mostrou seu lado humano ou vulnerável. Nunca descobri se era apenas seu numero ou tinham implantado um saco de leite no lugar do seu coração. A combinação dele com a Liz só podia dar merda.

Uma noite o Mau ia tocar numa boate eu fui com ele. Estávamos num camarote bebendo vodca e cerveja holandesa de casco verde, conversando e rindo. A Liz entrou com tudo. Irrompeu por ali em todo o seu esplendor. Os olhos dos dois se encontram imediatamente. Tramaram – eu diria – uma relação espiritual. Se é que algum daqueles dois tivesse espirito. Foi imediato. E eu fui testemunha ocular. Caralho. Parecia que um imã atraiu um ao outro. Não sei se já tinha se trombado em algum lugar. Curitiba é uma província, pode colocar fé. O fato é que ela já estava sentada ao lado dele e só tinha olhos para ele. Parecia que naquele momento o universo tinha se fechado naqueles dois e que tudo ao redor não existia. Eu ainda conversava, mas o Mau era todo da Liz e vice versa. Qualquer um que presenciasse aquela cena diria a mesma coisa. Alguém da organização do show veio chama-lo para tocar e ele foi. A banda entrou em cena e foi algo arrasador. Nem imagino o que o Mau disse para os outros caras antes de tocar mas eles pareciam ensandecidos e mortíferos. Rolou uma das melhores uma hora e meia que rock que eu já tinha visto na vida. A Liz estava embevecida ao meu lado durante toda a apresentação e ainda não tirara os olhos do Mau. Ele coleava pelo palco com seu contrabaixo parecendo um possesso. O guitarrista tirava acordes secos e duros do seu instrumento, o baterista parecia estar preparando a trilha sonora do Juízo Final, o vocalista transbordava emoção. A plateia reagiu à altura. Eles não disseram uma palavra para o público. Só conversavam entre eles e desfiavam as canções. Quando desceram do palco a audiência pedia “mais um” e eles não voltaram. Mau voltou para nosso camarote com um sorriso de beatitude nos lábios. Sentou-se ao lado da Liz e começou a papear com ela. Tinham umas garotas bem interessantes por lá agora e eu me entretive com duas delas. Vi quando aqueles dois levantaram e saíram juntos. Bebi o quanto quis e voltei para casa de táxi enganchado com uma morena muito gostosa. Foi uma boa noite.

Dois ou três finais de semana depois iria ter um show gringo aqui na cidade. Coisa de dois mil e quinhentos ingressos. O suprassumo do thrash internacional. Coisa grande que a gente só vê uma vez na vida. Claro que fui. Tinha um garçom enluvado servindo uísque estrangeiro na fila e eu peguei minha dose. Foi quando eu vi passar por mim o casalzinho. O Mau & a Liz. Era uma cena chocante. Os dois pareciam duplos. Parecia que tinha sido feitos da mesma forma, porém que o Mau cresceu e a Liz rachou. Pareciam gêmeos idênticos apesar de não terem nenhuma semelhança física. Pareciam que eram feitos um para o outro. Gêmeos siameses? Pareciam que tinham se encontrado novamente nesse plano espiritual de expiação e dor para resolver alguma coisa pendente de alguma encarnação passada. Roda de Samsara. Como dizem os esotéricos. Eu juro para você que a fila inteira ficou embasbacada olhando aqueles dois por ali entrando pelo acesso dos VIPs . Entrei na casa e escutei a voz cavernosa do Mau gritando meu nome do camarote onde eles estavam. Fui para lá e entrei. Ele me fez sentar. Estava fumando um baseado enorme refastelado num sofá de couro vermelho e com a Liz sentada no seu colo. Passou-me a “vela” que eu fiquei fumando e fazendo bater papo com a cerveja que eu tinha apanhado. O som iria começar. Fui para o parapeito do camarote e as pessoas que estavam ali me acompanharam. Os olhos do Mau brilhavam. Os olhos da Liz brilhavam. Aqueles gringos começaram a introdução e no segundo acorde o público todo estava batendo a cabeça alucinadamente. A sensação era que a música se chocava com seu corpo e o impacto te levava para trás. Uma loucura. Nos intervalos o Mau berrava loucamente e eu posso escrever aqui que o guitarrista polaco e californiano estava olhando o o cara com o rabo de olho e que também ficou espantado com a presença da figura, e isso não foi uma mera impressão minha. Tocaram duas horas e meia e gente aguentou firme por duas horas e meia. Eu tinha bebido antes, durante e depois, mas estava embriagado pela apresentação e me conhecia muito bem para saber que só iria dormir combalido no horário em que o povo começa a pegar no batente. Saímos juntos e o Mau convidou para ir a sua casa. Acompanhei-os com outra garota que era amiga da Liz. Bebemos até o sol raiar e acabei ficando por lá o dia todo. Nem me importei de ligar dando nenhuma satisfação no trabalho, foda-se. E uma coisa eu posso afirmar: eles foram para o quarto e parecia aquela cena do “Clube da Luta”. Que barulheira dos diabos. Eu também estava fazendo a minha festinha particular e não dei à mínima. Que noite alucinante!

Continuei a sair e sempre encontrava aqueles dois juntos. Não dava para acreditar que a Liz tinha largado a sua vida boa de estrelete local para ficar com aquele maníaco. Ela continuava frequentando todas as festas, óbvio, mas com o Mau a tiracolo. Ele entrava nos lugares e nas mansões dos bacanas com aquelas roupas loucas, sujas, apertadas, rasgadas, a camiseta preta com buracos de cigarros, os tênis com o dedão do pé para fora, os cintos de rebites, os braceletes que pareciam ter vindo do King’s Road em 1978, o cabelo solto descendo-lhe até a cintura e aqueles bacanas achando o cara o máximo. Sei lá o que dizer. Ele continuava com o senso de humor de sempre e acho que aqueles riquinhos achavam que era cool. Ou não estavam entendendo nada mesmo. Fico com a segunda opção. Numa outra ocasião eles adentraram em uma festa de aniversário que por acaso eu era amigo de uma garota da organização e fizeram uma guerra de comida dignados “Três Patetas” e ainda saíram ilesos e sem pagar um tostão da conta. Um sábado ele apareceu na minha casa sem avisar. Bem, o Mau sempre fazia isso. Foi atender e ele estava portando uma garrafa de uísque escocês legítimo. Fui buscar os copos e ele começou a me jogar todo aquele “papo cabeça” de que a Liz era a mulher da vida dele, que a Liz aguentava ele na cama, que Liz apareceu numa hora crucial da sua vida, que a Liz isso, que Liz aquilo e patati & patatá.- Sei. Foi minha resposta. Ele não gostou e disse que eu não estava sendo verdadeiro e eu retruquei que nós éramos porras loucas e que nunca iriamos mudar. Por mais que nosso sentimento fosse verdadeiro. Bebemos toda a garrafa e fomos ao bar do Sérgio beber cervejas. Às dez da noite me convidou para ir a algum lugar encontrar a Liz e eu recusei dizendo que já tinha bebido o suficiente. Resolvi ficar em casa naquela sábado, pedir pizza, procurar um filme na tevê à cabo e ficar na boa. Já tinha tomado muito uísque e fumado maconha sem parar, fora todas as ampolas que não foram poucas. Todos os dias eu estava fazendo isso e encarando oito horas de trabalho naquele escritório de advocacia de merda que me pagava para ser picareta em tempo integral. Foi o que fiz. Um fim de semana no paraíso. Claro que iria durar pouco.

No domingo, meu telefone celular começou a tocar cedo. Convites para ir à feirinha hippie do Largo da Ordem, para fumar erva no parque Barigui, para participar de uma marcha em prol do “liberou geral”, para comer barreado em Morretes & descer o velho Nhundiaquará de boia, para assistir a uma corrida de velocidade... declinei todos e no final a mesma ladainha: “você tá ficando velho, chato & careta”, claro que eu voltei a dormir e quando acordei preparei uma bela macarronada ao sugo e abri um belo vinho Merlot Argentino. Tudo tem limite, não tem? Acho que estou falando cedo demais...

Fiquei algumas semanas apenas trabalhando, bebendo pouco & aparecendo menos ainda nos bares. Para mim não tinha nada de interessante a fazer. Consultava todos os dias os cadernos culturais e a internet e nada me apetecia. Também parei de atender ligações antes & depois do meu expediente. Sempre que alguém queria sair eu enrolava uma desculpa qualquer. Parecia uma vida boa. Só que eu sabia que uma hora eu iria voltar com tudo. Apenas não tinha pressa e deixava rolar. Minha casa, meus discos, meus livros minha erva, meu chá inglês, meus vinhos, meu computador. Isso tudo estava realmente me bastando naquela etapa da minha vida. Quando ficava entediado andava uns quarteirões a mais e ia a um boteco frequentado pelos velhinhos aposentados dos arrabaldes e ficava jogando conversa fora, jogando general a duas pratas a rodada e me recolhia cedo, junto com eles. Sabe, que até era uma boa vida. Mas, maluco não para, maluco dá um tempo. Quando você arrebatado pelas delícias e as agruras da vida noturna e boêmia, dos shows de rock, da bebida farta, das drogas & do sexo fácil é muito difícil de largar. Só se acontecer alguma conspiração cósmica ou algum trauma grave de família & olha lá.

Uma noite deu vontade de sair. Pensei em tomar um porre do Bar Rubro Negro, a dois quarteirões de onde eu morava. Ali era meio fechado, tinha sua clientela, eu conhecia todo mundo. Tipos mansos, profissionais liberais, professores de universidade, aspirantes a escritores de best sellers, dentistas, artistas plásticos consagrados, juízes & delegados em gozo de suas licenças prêmio. Gente bem. Se é que preciso explicar mais. Ninguém me confrontava. Música ambiente. Se fosse para me embebedar eu queria voltar para casa tranquilo. Claro, era o plano original. Saudei o proprietário e o atendente do balcão e caí na esparrela de pedir uma garrafa de tequila, sal, limão e cerveja portenha. Óbvio que isso não dá certo. Eu não aprendo. Como diz um grande amigo meu que também escreve e até melhor que eu: “não é que não aprende. Não quer aprender.” Já estava pela segunda dose – lustrando o balcão de formica com os meus cotovelos – quando surge do nada o Mau. Veio em minha direção, parou de uma forma quase marcial na minha frente com seu diabólico e escancarado sorriso e me estendeu a mão direita que apertei. Como era do seu costume pegou a minha garrafa de deu um grande gole pelo gargalo e me devolveu. Servi mais uma dose para mim e ele me perguntou que seu queria fumar um baseado no seu carro. Macaco quer banana, sim. Fomos até lá e ele me deu a “tora” para acendi o que fiz prontamente acionando meu mini-isqueiro amarelo. Dei algumas bolas e passei para o Mau que após soltar um belo e intenso halo de fumaça começou a me despejar todo aquele papo sério: “que realmente estava apaixonado pela Liz e que pretendia levar esse sentimento mais à sério, que talvez pudesse desenvolver um relacionamento deveras maduro, que queria e iria se empenhar mesmo para dar conforto e segurança para seu bem querer, que precisava mesmo encaretar um pouco, não parar, dar um tempo assim como eu estava fazendo, para se centrar um pouco e levar uma vida à dois mais estável e convencional, que queria mesmo conhecer os pais dela e apresentar seu pai para eles e o que eu achava de que que ele cortasse o cabelo e montasse uma banda de blues?”.

Não respondi nada e ele me passou a maconha que eu traguei avidamente para me livrar de toda essa caretice. Fumei e fumei de novo. Não achei que ele precisasse ouvir minha opinião. Fiquei divagando no meio da nuvem.

-Basta da punk rock, cara!

-O que você disse? Perguntei por que não tinha entendido a colocação.

-Basta de punk rock, tá surdo? Replicou o Mau.

-O que você quer dizer exatamente com isso? Eu quis realmente saber.

-Exatamente o que você ouviu e pensou. Exasperou-se ele.

-Tá maluco, doidão? Tá cuspindo no prato em que come? Indignei-me.

-E você vai viver a vida toda tocando e ouvindo aquele bum bum bum simples e reto e cheio daquele discurso fascistóide disfarçado de libertário e aqueles nazistas escrotos que se dizem veganos batendo estaca! Quero evoluir, cara! Fazer alguma coisa agradável quero tocar música boa, ganhar dinheiro com isso. Quero ter e dar um futuro para a Liz. Quero gravar um disco. Tocar com músicos de verdade não com aqueles doentes que eu toco e que querem viver essa vida medíocre para sempre enquanto se entorpecem e vegetam.

Agora eu lançava para o Mau realmente preocupado.

- O que você tá usando agora pra falar desse jeito, bicho? Eu também quero. Foi o que reuni de forças para dizer.

- Porque você não vai à merda? Foi o que ganhei por falar besteira. Resolvi respirar fundo e dar outra bola no jererê. Fiquei pensativo segurando bem a fumaça e minha cabeça estava um turbilhão. Soltei o jato pelas narinas. E mandei ver:

-Já disse isso tudo para a Liz?

-Já.

-E aí? Fiquei intrigado.

-Ela disse que não queria nunca mais ouvir essa caretice. Falou o Mau, por fim.

-Pelo menos alguém ainda tem juízo nessa relação. Respirei eu aliviado.

-Tá. Vamos apagar esse bagulho e voltar lá para dentro beber. Daqui a pouco vou embora.

Concordei correndo. E voltamos para o balcão de tão acolhedor botequim.

No dia seguinte acordei tarde e cheio de ressaca. Maldita combinação de mexicanos e argentinos. Abusei. Por incrível que possa parecer o Mau tomou algumas e foi-se embora. Eu é que fiquei insistindo no erro. Não me lembro de como cheguei em casa. Mas cheguei. Como sempre. Eu tinha voltado com tudo. Aquela bebedeira da noite anterior acionou o processo novamente. Eu queria tomar um banho e beber mais, mas saquei que depois haveria uma apresentação dos Gritantes Garibaldos, que era minha banda brasileira preferida do momento e já tinha comprado as entradas e reservado uma mesa lateral perto do palco, portanto segurei minha onda e fui compensando com chá. Ducha, chá e erva. Tudo de bom. Fiquei perambulando de cuecas pelo meu apartamento. Ouvindo música no computador e navegando um pouco. Tinha que fazer hora. Resolvi dormir de novo.

Como eu queria assistir o show meio calibrado cheguei à casa pouco antes das onze. O barulho iria rolar lá pela meia noite ou uma da manhã. Entreguei os ingressos para o porteiro, entrei e começou o ritual de cumprimentar todos os presentes. Ô, provinciazinha mais safada está onde eu vivo e tiro meu sustento. Pra variar eu conhecia sessenta por cento do público pagante. Achei meu lugar, sentei e pedi bebidas. Queria beber que nem louco de novo. Perder o rumo de novo. Um mês bancando o bom menino já tinha me dado no saco. E os Garibaldos iriam embalar essa noite. Meu grupo preferido. Nem sei explicar por que. Começou a chegar mais gente exatamente quando o garçom colocou os baldes com gelo na minha mesa. Trago para dentro! Uma velha amiga chegou e sentou-se comigo e começamos a conversar quando irrompeu um tumulto de seguranças bem ao nosso lado. Quase nos derrubaram no chão os filhos da puta. Óbvio que fomos conferir o que era: O Mau e Liz na entrada da casa se estapeando e usando o linguajar mais chulo que você possa imaginar. Aprendi três os quatro jargões diferentes para elogiar a mãe de alguém naquele minuto. O caldo entornou mesmo quando a Liz – com os olhos esgazeados e parecendo tomada por algum demônio – fez um comentário desairoso sobre o desempenho de seu parceiro na cama. Tomou um safanão na orelha no ato e mesmo assim partir para cima. A “turma do deixa disso” interveio. Caos total. Os seguranças erguiam os dois pelas respectivas cinturas e agora eles tentavam se chutar. O guitarrista da banda do Mau tinha chegado num táxi naquele minuto e correu para apartar seja lá o que estivesse acontecendo. Ele era a única pessoa que eu conhecia que tinha alguma influência sobre o Mau. Pouca é claro. Mas exercia alguma.

Ânimos acalmados. O casal fitou-se, ofegante por alguns instantes e depois a coisa mais impressionante da noite aconteceu: eles deram dois passos e se abraçaram. Beijaram-se como se fazia nas películas antigas. Quando se desprenderam tinham os olhos rasos d’agua. Balbuciavam palavras doces um para outro. Ou foi que eu ouvi de onde eu estava. Vieram até mim e o Mau colocou a mão no meu ombro e deu um sorriso. Entramos. Sentamos. A Liz pediu mais bebida. Bebemos e brindamos. O show estava prestes a começar. Mas tinha virado atração secundária da noite.

Não é que Mau bate na minha parte duas semanas depois parecendo o último dos mortais? Quase não o reconheço .Suas madeixas coleantes estavam completamente raspadas.Sua cabeça parecia o bigode de um padre! Sua pele pálida estava mais pálida ainda. Suas olheiras mais profundas. Suas roupas pareciam três números maiores e já não eram tão bacanas. Trazia uma garrafa de 51 pela metade na mão direita e fumava um mata-ratos fedorento e barato. Fiz ele entrar. Ofereceu-me a cachaça que eu recusei no ato e então abri uma cerveja de garrafa de servi dois copos americanos. Batemos os copos e eu disse “salud”. Seus olhos se contraíram.

-Já soube da novidade? Perguntou-me.

-Não.

-A Liz e eu...

-O quê?

-Rompemos.

-Caralho! Fiquei realmente espantado.

-Vai se casar com um filho de papai.

-Não acredito!

-Claro. Cansou. Ou não. Não sei. Recebeu um proposta para fazer ensaios fotográficos e esse bacana aí é jovem e empreendedor empresário príncipe herdeiro do “Chá Verde” e o papai tem posto de prospecção de petróleo no Iraque e é o rei do prédios comerciais alugados de Curitiba. Pompa. Circunstância. Glamour. Não era disso que a Alessandra (fiquei embasbacado quando ele chamou a Liz pelo nome de batismo) precisa? Não é esse seu combustível? Eu não bastei para ela quando lhe disse que queria lhe proporcionar amor verdadeiro e uma vida mais simples. Agora entendo o que ela dizia para mim ser caretice. Não era o que ela queria. Ela precisa de Europa, Bali, Copacabana Palace, jóias. Esse papinho existencialista dela sempre foi balela. Sempre foi para ela fazer um número. Como fui tão burro e fútil por me enganar todo esse tempo com a Alessandra? Quando encontrei alguém que me deu algum sentido eu estava me enganando aferrado a toda aquela loucura, drogas e preceitos. Eu achava que era underground. Quando erra só pose? Eu achava que ela fazia a diferença quando ela estava galgando os degrau para chegar onde queria. Conseguiu. Aquele papo que me amava era dá boca pra fora, cara.

Eu ia tentar emendar um discurso sobre a “mutabilidade das coisas” para tentar acalmá-lo, mas me contive. Eu poderia piorar a situação. De boas intenções... O corpo todo do Mau tremia como que em pequenas convulsões. Seu rosto inchava a cada gole que ele tirava pelo gargalo. Os olhos se encheram de lágrimas. Eu estava muito chocado e espantado. E continuou a falar.

-Amor? Ego. Posse. Propriedade. Sufocamento. Castração. Interesse pessoal. Nada mais que isso. Apenas outra convenção social, xará. Demorei anos montando esse personagem. O MAU.

Onde andará o Maurício Ricardo nesse momento? Será que eu o matei? Será que eu o matei por uma ilusão banal e por não ter autocritica e ficar perdendo o meu tempo sacaneando meu próximo? Queria me reconciliar com o Maurício. Se ele estiver vivo ainda. Ou em algum lugar dentro de mim. Quero voltar a falar com meu pai com naturalidade de sem interpretar nenhum papel que foi o que fiz desde a minha pré-adolescência. Quero voltar ao normal. Se a Alessandra serviu para alguma coisa foi para me abrir os olhos de quão eu estava errado e do que as pessoas esperavam de mim. Um palhaço. Um bufão. O bobo da corte. O louco da aldeia. O punk de plantão. O baderneiro. Arruaceiro. Beberrão de uísque. Boleteiro. Nunca me viram como uma pessoa, amigo. Sempre como um número. Perdi mais da metade de minha vida fazendo o que os outros queriam que eu fizesse. Representando. Inclusive, acho que a Alessandra foi o que faltava para terminar a peça tragicômica que é a merda da vida que eu desenhei para mim mesmo e que neste motivo não tem de sentido de continuar. Eu só queria simplicidade e gostar realmente de alguém. Agora é tarde.

Acendi um cigarro. Senti tremor em minhas mãos quando fui acertar a chama. Agora eu não sabia o que dizer. Talvez ele estivesse sendo mortalmente sério na sua vida pela primeira vez. Talvez ele estivesse sendo letalmente humano pela primeira vez. Talvez ele estivesse sendo desbragadamente sincero com alguém durante várias décadas. Continuamos bebendo em silêncio. Por vários minutos. A fumaça azul enchia minha cozinha. Fui pegar outra garrafa e servi para nós dois. Talvez realmente estivesse em busca de algo, afinal? De algo realmente verdadeiro? Então ele me olhou nos olhos e disse:

-Você é meu amigo. Obrigado. E se foi porta afora. Fiquei paralisado alguns minutos, cigarro entre os dedos da mão esquerda, copo da direita. Não sabia o que pensar. Minha cabeça um turbilhão. Sentei-me numa cadeira e dei uma profunda tragada no cigarro. Não queria pensar.

De vez em quando a Liz manda mensagens para mim no meu correio eletrônico. Fotos com sua linda filhinha de dois anos & seu marido jovem empreendedor e príncipe herdeiro em algum lugar bem bucólico e ensolarado. Eu respondo, claro. Mantemos a comunicação fluindo mesmo pela internet. Só o nunca vou mencionar para ela é o que seu velho namorado, seu velho amante, meses depois dessa última conversa que tramou comigo sumiu por uns tempos e reapareceu vestido com um terno surrado desses que parecem sido doados por igrejas ou pelo Exército e com uma aparência impessoal. O que todos sabiam é que o pobre tinha se convertido a essas seitas estranhas que pregam que o apocalipse virá com a chegada de um tornado e que o anticristo virá disfarçado de um conciliador da humanidade e então todos os pecadores vão expiar suas falhas humanas no lago de fogo do tormento eterno e andava pelas ruas do bairro pregando para quem quisesse ouvir e não ouvir esses absurdos. Suicídio moral? Tempos depois nunca mais foi visto. Para o bem ou para o mal. Pena que às vezes o equilíbrio é ignorado.

Coisas da vida, amigo. Coisas da vida....

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 21/06/2011
Código do texto: T3048619
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