SURDO

Surdo Surdo

Fila dos carros na sinaleira. Um barulho de aceleradas nervosas e um guarda no canto da esquina atrás da placa de propaganda da banca de bicho divulgando o resultado do sorteio das 14hs. Chamava a atenção dos que fizeram sua “fezinha” enquanto duvidava muito que alguém havia ganhado naquela milhar anotada como primeiro prêmio: 0012, borboleta na cabeça. Porém, o que vem ao caso é a cabeça do guarda. Única parte de seu corpo que os motoristas poderiam ver. Por causa disso, alguns mais nervosos avançavam o sinal e o guarda, na sua posição estratégica, já estava no seu segundo bloco de multas no primeiro período de seu serviço.

A cada invasão do amarelo, seus olhos brilhavam e ficavam em êxtase, lançando mão de uma comparação, parecia um torcedor que pelo seu time desaba em alegria ao ver um gol de placa do seu ídolo artilheiro. E para quem tinha tempo disponível, tal fato transformava-se numa cena hilariante, tal qual um teatro de revista, cujo ator principal nos faz chorar de rir principalmente na cena final que sai correndo para ver a placa do carro do contraventor e volta a se ocultar na sua placa do jogo do bicho. Quem está muito satisfeito com tal situação é o bicheiro, porque sua placa de divulgação é protegida como patrimônio da corporação. Mas isto tudo também não vem ao caso, que não é de jogo de bicho, tampouco de multas, apesar de nossa história ter começado nesta sinaleira.

O sinal estava aberto, a fila interminável. Todos procuravam aproveitar o verde acelerando nervosos. Inclusive a velha Kombi do surdo, de quem sou testemunha ocular e auditiva das aceleradas, que apesar de tão fortes, quando chegou embaixo do semáforo, este mudou para amarelo e na lerdeza de sua arrancada não deu tempo e ultrapassou no vermelho. O guarda altamente treinado para a ação, numa corrida e num salto estava na frente do elemento que invadiu o sinal com o bloco de multa em riste. Parecia Dom Quixote pronto para atacar o moinho.

-Documento cidadão! Disse calmamente o guarda, antegozando uma multa que jamais poderia ser recorrida porque iria fazer o infeliz assinar.

-Hã?

-Documento do veículo, sua carteira de habilitação e identidade! Repetiu o guarda, com uma cara disfarçada de James Bond.

-O senhor me desculpe, mas poderia falar mais alto? Pediu o motorista.

-O senhor ultrapassou o sinal vermelho, vou ter que multá-lo. Quero ver os seus documentos!

-Eu não estou ouvindo o senhor, sou surdo, o senhor poderia falar mais alto!

O guarda se aproximou do ouvido do motorista e gritou: Eu quero ver os seus documentos!

Berrou tanto que o trânsito parou e o buzinaço foi infernal. As pessoas que por ali passavam não entendiam o que estava acontecendo e o guarda repetia cada vez mais alto.

-Cidadão me mostre os documentos!

E o motorista repetia:

-O senhor poderia falar mais alto!

Virou gozação e as pessoas em volta gritavam em coro:

-Mostre o documento pro guarda!

Um vendedor ambulante que estava passando aproveitou a oportunidade para vender os seus produtos e seu grito passou a formar um coral de malucos:

-Olha a pamonha! Olha a pamonha!

-Fala mais alto!

-OLHA A PAMONHA!

-Não é você seu burro é o guarda, gritava o pessoal da assistência.

-Mostra o documento! Gritava o guarda.

-Tá carente é? Gritou um engraçadinho.

-Olha a Pamonha!

-É a mãe!

Foi a gota, o pau fechou, o vendedor recebeu o tabuleiro da pamonha na orelha, um maluco deu um pontapé na lateral da Kombi, um outro motorista pulou e tentava morder a orelha do chutador, o guarda correu e se escondeu atrás da placa do jogo do bicho, mas não adiantou, um careca pegou a placa e deu na cabeça de um dos dois que tentavam pegá-lo.

O guarda, quando viu que seu esconderijo estava preste a ser arrebentado na cabeça do elemento que vinha perseguindo o outro elemento, passou a mão no tresoitão e deu um tiro para cima. Todos correram, menos o motorista da Kombi porque não ouviu o tiro. A ordem foi retomada. O guarda olhou para o motorista e disse:

-Isto tudo foi por sua culpa, por favor, me mostre agora os seus documentos e o documento do veículo.

-O motorista não disse nada, através de gesto o conduziu até a traseira do veículo e lhe apontou uma placa verde ao lado da obrigatória e lhe disse:

Eu sou surdo, o senhor poderia falar mais alto?

Não se tem certeza, mas disseram que o guarda ficou internado trinta dias e no tempo que esteve em repouso estava tendo lições para falar através de sinais.