Mendigos

A noite estava muito fria para o clima de nossos invernos tropicais. Um vento frio zumbia maciamente nos meus ouvidos enquanto caminhava apressadamente rumo a minha casa. O cansaço do trabalho não tapou os meus olhos para aquela cena monótona. Não pude deixar de riscar minha pele naquele momento sombrio, de uma noite que parecia comum, como tantas outras, para uma cidade sem brilho e quase desacordada naquele momento. Parecia que ela se arrumava para dormir. Era tão cedo que ainda me pegou acordado. E agora mais acordado ainda com aquela cena de cinema mudo. Engasguei. Não pude falar nada. Naquele momento fiquei sem palavras. Era um personagem de um filme que ainda não deixou de rodar na minha cabeça.

Descrever o que vi seria simples se não doesse tanto. São cenas de um cotidiano amargo, que amargura tanta gente. Estava lá o meu ator principal. Estava lá o ato principal. Aquele poderia ser meu ídolo, se não fosse tanta a miséria que o acompanhava, que desfigurava suas qualidades ao contracenar com a penúria, o deplorável e o descaso. Sufocou-me a sensação de abandono, enquanto o filme rodava, girava mesmo, que me deu a sensação de tontura e desconforto. Pensei em me aproximar e clicar mais de perto a íris. Impossível. Tremia tanto que a cena ficou fora de foco. Um clique não aconteceu, porém o cérebro reservou-me uma cópia daquilo tudo para que eu pudesse rabiscar e montar a cena depois.

Sentem-se! Preparem os olhos e a mente. Sintam também o gosto amargo das cenas do cotidiano. Elas são suas também.

Uma marquise de um banco, as luzes dos caixas eletrônicos, um enorme saco sujo de roupas sujas que servia de colchão, uma roupa rota, igualmente suja; um infeliz. Sonhava sabe-se lá com o quê. Aí estava toda a minha angústia. Um desvalido dormindo. Uma cena muito comum poderia dizer alguns. Já vimos isso antes, sempre se repete, poderiam dizer tantos outros. Mas estava lá, tudo bem escrito. O roteirista não errou. Era no sono daquele indigente que poderia expor as mazelas de uma vida de abandono, como tantas outras.

Sem companhia, como há muito tempo o observava, ele não podia contar a sua condição, rabiscar tortamente letras tortuosas que descrevesse um pouco de sua condição humana. Doía-me olhar aquele homem dormindo ao relento. Perguntei a mim mesmo o que era aquilo tudo. Rodei a cena e procurei salvá-la em casa, agora com menos detalhes, ofuscada pelo tempo perdido da máquina, pela falta de zelo de um clique, que agora começa a ganhar sons e tons que as tornem palpáveis. A câmera homem começa a rodar a roda da vida. Expor as dores de um ser sem nome, sem nome, sem dono. Um filme em preto e branco, com a clareza de detalhes e o negro sujo de quem está afeito ao chão.

Embalado pelo sono, aquele ser não viu sua própria cena. Quisera eu poder contemplá-lo justamente em sua companhia o que se passava na sua cabeça. Sentaríamos no banco da praça e faríamos um recorte daquele curta metragem se passando sobre nós. Ele poderia ver com seus próprios olhos um quão é frágil a sua vida. Quem sabe ele não se indignaria com aquilo tudo que passava com ele e daria um grito de horror para todos os cantos da cidade? Quem sabe isso tudo não ficaria gravado para sempre na cabeça dos abandonados e daqueles que os abandonam? Quem sabe pudessem estes últimos reverter os seus crimes e não visse os seus velhos partirem e minguarem para além dos muros de suas antigas sobrevivências. Embalassem seus sonos, velassem seus vivos corpos enquanto descansavam numa gostosa e fria noite de inverno tropical.

Mas naqueles dias que se seguiram, abandonei a máquina com todos os meus sonhos. Percorri todos os caminhos que o mesmo velho fez naquela praça, diariamente, incansável, repetindo as mesmas e monótonas idas e vindas. Pelo próprio aparelho percebi que tudo estava como antes. Outras dormidas ao relento, outras marquises de bancos, outros sonhos, outras agruras. A velha máquina embaçou a lente. Procuro, mas não vejo as cores nítidas de uma cena passada, que custou tanto para ser filmada. A íris capturou umidamente o que quis filmar e derramou um mendigo que existe dentro de mim.