Encheu a Esposa de Bicuda & Montou uma Banda Death Metal

Para Ícaro Castilho ( de novo...)

Depois de um casamento fracassado e uma derrocada financeira, voltei a morar com pai.

Não que eu estivesse desempregado nem nada. É que o apartamento tinha ficado para a Jade e naquela altura eu nem poderia cogitar pagar aluguel. Simples assim. Sempre tive um relacionamento meio tumultuado com o meu velho. E não seria diferente dessa vez. Pelo menos estava localizado num bairro próximo ao meu trabalho e também dava para economizar na condução até a minha situação melhorar. Chef de cozinha é assim mesmo. Uma hora está por cima e outra no fundo do poço. Porque não escutei minha finada mãezinha e fiz faculdade de direito? Essa hora poderia não estar pagando nenhum centavo para a vaca da Jade e coçando o saco. Impulsos de juventude. Merda.

Vizinho de porta ao nosso apartamento morava o Marcos. Deixa-me falar dele porque é desse cara que essa história vai tratar.

Marcos era um arquétipo do cara certinho: 23 anos, estudante de Física da Universidade Federal do Paraná, casado com a Marcela ( um tesão de mulher por sinal ), funcionário concursado da Caixa Econômica Federa l e com um ótimo salário que cobria perfeitamente as prestações que estavam àquela altura quase quitadas. Tinha uma vida programada. Trabalho, faculdade, casa, supermercado & vídeo locadora nos fins de semana para passear com o lulu. Eu sou o perfeito oposto. Eu bebo. Fumo maconha de vez em sempre. Adoro sair à noite. Ouvir música no talo. Dormir a hora que bem entender. Meu pai sempre implicou comigo por eu ser desse jeito. E continuaria a implicar até o dia em que eu ou ele batesse as botas. Sem dúvida. Quase todos os dias eu tinha que escutar meu coroa me dizer:

-Porque você não tenta ser igual ao Marcos?

Eu dava de ombros, sorria maliciosamente e continuava tratando da minha vida. Ora, quem o Marcos? Apenas mais um conformado que já tinha feito as suas escolhas. Eu tentava não julgar, mas me era impossível. Então eu permanecia no meu velho esquema de coordenar a cozinha daquele maldito restaurante chique que eu trabalhava, me embebedando, ouvindo The Strangles & perambulando pela noite atrás de um rabo de saia para curar minha dor de corno. Sempre que eu saia para trabalhar lá pelas sete da manhã, lá estava o Marcos saindo para fazer a mesma coisa. Só que eu largava às três da tarde e me tocava direto para o bar enquanto o rapaz ia correndo para a faculdade pegar aulas de Física. Sempre ficava imaginando – entre um trago de cerveja gelada e outro – o que leva um ser humano a estudar Física. E não chegava a nenhuma conclusão lógica. Então eu apenas supunha que o Marcos era mesmo maluco. E outra coisa que me intrigava era como aquele nerd completamente dentro do esquemão tinha conquistado o coração daquela delícia da Marcela. O ordenado do cara deveria ser nababesco ou o caralho dele devia ser um ferro. Coisas da minha mente doentia embotada pelo álcool. E quando eu chegava em casa mais tarde do que o normal ou mais bêbado do que de costume aí é que eu escutava mesmo:

-Porque você não tenta ser igual ao Marcos? Põe na tua cabeça, moleque! Tente ser igual ao Marcos.

Droga. Essa ladainha parecia não ter mais fim. Como eu poderia argumentar com meu pai se ele estava obcecado pelo estilo de vida do nosso vizinho? E como não estaria. De verdade. Eu tentava compreender o lado do meu pai. Ele fora um funcionário público de médio escalão e tinha trabalhado trinta e sete anos para o governo do estado para poder se aposentar com uma renda um pouquinho acima da média. No tempo dele estudo não era uma coisa que contava muito, mas mesmo assim ele terminou o colegial. Eu também. Mas só para poder fazer o curso de cozinha que era a minha paixão desde o começo da adolescência. Sempre detestei todas as escolas que frequentei. Sem exceção. Uma vez fui expulso de uma e foi a única vez que vi a minha mãe ficar totalmente ensandecida por minha causa. Quando meu pai ficava puto comigo ela sempre me defendia. Quando ela faleceu eu quase surtei. E resolvi casar com a Jade que eu já namorava quase há dois anos. Claro que eu cometi um grande erro. Machuquei a ela e a mim. E agora estava de volta a casa do meu pai. E cada vez que eu abusava da bebida lá vinha o velho gritar para mim pela enésima vez:

-Porque você não tenta ser igual ao Marcos?

Era nessa hora que descia, pegava o jornal e ficava procurando imóveis para alugar nos classificados. Eu não iria suportar por muito tempo essa ladainha. Eu pagava o condomínio, a conta de luz, de água e fazia um reforço na dispensa. A única coisa que eu pedia ao meu pai era para me deixar ficar uns poucos meses para tentar economizar algum dinheiro para me manter quando eu fosse embora de lá. E toda hora a mesma conversa. Já estava pegando ojeriza do tal do Marcos. E ainda estava pegando os duzentos da pensão que eu tinha acordado com a Jade. Os motivos da minha separação parecem banais e realmente o são. A convivência comigo abriu os olhos dela. E eu dancei. Sem ressentimentos. Pelo menos da minha parte.

Num sábado – depois de ter ouvido a maldita frase do meu pai o dia todo – resolvi que não iria sair à noite. Fui até o mercado e comprei duas garrafas de vinho e guarnições. Passei na vídeo locadora e aluguei um filme europeu. Claro que o Marcos e a Marcela e o cachorrinho estavam lá. Fiquei de olho comprido na mulher do próximo. Decidi fazer um jantar familiar para tentar acalmar meu velho. Preparei um belo espaguete e abri uma garrafa de vinho. Comemos e brindamos com extrema camaradagem. Liguei para a Jade só para lhe dizer que estava sentindo sua falta e ela me tratou com a grosseria que lhe era peculiar depois da nossa separação e ainda me disse que precisava de dinheiro para não sei o quê. Desliguei. Continuamos bebendo e depois de algumas taças o velho foi dormir. Fui para meu quarto e comecei a assistir a película. Continuei bebendo na cama. O filme não era lá essas coisas. Terminou e ainda restava algo na garrafa. Tentei dormir e não consegui. Fui até a geladeira e abri outro vinho. Fumava cigarros sem parar. Quando ouvi o ronco do meu pai acendi um baseado e fiquei na janela do apartamento vendo a noite. Pensei na Jade, mas por pouco tempo. Iria demorar para a gente cogitar ser amigos e conversar civilizadamente. A convivência acaba com qualquer tipo de relacionamento. Esperava que aquele sábado acabasse logo. Domingo pela manhã um amigo me ligar dez horas convidando para ir à feira de artesanato. Artesanato nada, xará. Cerveja gelada e porções arregradas de aipim com pedaços de bacon e doses de estanho para rebater. Meu tipo de programa. Meu pai me viu saindo àquela hora e levantou o cenho esquerdo. Dizem que eu tenho o mesmo tique. Vamos lá. Consegui matar o domingo. Segunda feira chegou e com ela meu calvário diário. Fui trabalhar.

Dias mais tarde eu estava em casa por volta das quatro da tarde. Tinha havido um almoço no restaurante para um grupo de empresários alemães de uma multinacional qualquer e a gente tinha ralado até os ossos. Eu estava demolido quando cheguei ao apartamento e precisava de um banho. Abri a ducha e comecei a escutar um griteiro infernal! Parecia que alguém estava sendo estuprado ou espancado. Brados femininos de desespero e dor a plenos pulmões. Bem ao lado da minha parede. Não estava entendendo patavina. O que poderia estar acontecendo naquele dia de semana pacato de Curitiba? Meu pai bateu na porta do banheiro me chamando. Abri a porta. O velho estava com os olhos esbugalhados e assustados e uma gota de baba branca escorria por seus lábios. Pela sua expressão estava tão confuso quanto eu. Vesti as calças e uma sandália e fomos conferir o que estava acontecendo. Quase não acreditei no que meus olhos me mostravam quando saímos pelo corredor.

O Marcos estava realmente surtado e agarrava a Marcela pelos cabelos. Ela estava no chão sendo arrastada e espancada com uma violência pouca vezes vista! O garotão nerd com certeza não tinha aguentado e pressão de um emprego respeitável e uma faculdade mais respeitável ainda. Dir-se-ia que estava descontando na esposinha o estresse e a frustação acumulada em anos de servidão diante da vida e das responsabilidades. Tentei avançar para apartar aquela cena de horror mas meu pai me conteve. O coroa era da velha guarda e ainda rezava pela cartilha de que em briga de marido e mulher... O que poderia ter desencadeado aquela fúria insana num cara que sempre me pareceu o mais normal dos mortais e ainda por cima era o ídolo, o bezerro de ouro de meu paizinho querido? O que a Marcela poderia ter dito ou feito de tão grave? Não me ocorria. Começou a juntar gente. Ela apanhou mais um pouco, ele entrou em casa e apanhou uma pequena mochila que pôs nas costas e picou a mula dali.

O que vou contar agora é a pura verdade. Não vou fazer rodeios e muito menos tentar aumentar os fatos para criar uma história e sim vou afirmar categoricamente o que vi e ouvi depois desse ocorrido. O Marcos raspou a cabeça com a máquina zero, abandonou o emprego e a faculdade sem dar satisfação a ninguém e montou uma banda Death Metal com uns cabeludos desocupados e bebedores de vinho de colônia em tempo integral e assim caíram na estrada! Parece piada. Inclusive quando contei essa história uma vez em um bar a gargalhada foi geral seguida depois por olhares de desconfiança de que eu poderia ser o maior cascateiro de mundo. É o que eu disse até o último dia de vida do meu pai: - Tem certeza que eu tenho que ser igual ao Marcos mesmo?

Ele nunca me respondeu diretamente, mas eu via suas faces corarem um pouco & ele mudar prontamente de assunto. Até o mais duro e amargo fim. E eu prefiro pular de emprego em emprego até me firmar e tomar gim. Não é tão mal assim.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 28/06/2011
Código do texto: T3062745
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