Ficaram apenas na memória...

Naqueles anos analógicos da década de oitenta, os fins de semana costumavam ser aproveitados com algum lazer cultural; uma peça de teatro, uma exposição de arte, ou, quando o calendário artístico da cidade permitia, assistindo aos legendados dramas estrangeiros da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Noite de sexta-feira. Ninguém sabe o mês. Ninguém sabe o ano. As sextas-feiras, estas sim, são às vezes, inesquecíveis...

No antigo Teatro de Arena, numa dessas noites, era encenada uma peça com o sugestivo título, “A República dos Mendigos”.

Já no saguão de entrada, alguns atores, devidamente caracterizados, maltrapilhos, fingindo embriaguez, euforia, e certa dose de insanidade, misturavam-se aos virtuais espectadores.

Diziam frases desconexas, gritavam, riam, gargalhavam, interagiam com o público, chegavam à portaria, depois à calçada, por onde passavam anônimos pedestres; homens, mulheres, e, de quando em vez, um ou outro mendigo.

(...) Naquele tempo, não havia tantos meninos e meninas pelas ruas.

Tudo parecia de acordo com o improvisado script, não fosse a presença de um personagem real invadindo a ficção; um pedinte de verdade entre tantos que se fingiam mendigos...

Juntou-se à turba, e despercebido, foi parar no interior do teatro, na primeira fila da plateia. Sem que o incomodassem, foi ali ficando, de onde... atônito, olhava atentamente para as cortinas estáticas.

(...) Talvez tentando imaginar o que estaria por vir, ou, simplesmente à espera de que nada mais pudesse acontecer.

Ledo engano.

Sirene, luzes, ação... Lentamente o palco surge. O espetáculo está prestes a começar. Em poucos minutos será proclamada mais uma república no sul da América;

A República dos Mendigos.

Cenografias, coreografias, pequenos dramas, as acrobacias do cotidiano, risos, gargalhadas, aplausos...

Desinibido, talvez deslumbrado com tantas alegorias, cores e holofotes, o intruso mendigo, indiferente ao roteiro, a tudo e a todos, como se fizesse parte do elenco, levanta-se e vai dançar no meio do palco...

Faz da muleta o seu par romântico. Abraça-a, acaricia-a, beija-a, de rosto colado faz-lhe confidências, depois... já cansado, ofegante, senta-se no mesmo lugar, de onde, sem pedir licença, lança palavras que atravessam o ar, invadem o texto, vão, pouco a pouco, tomando conta da ficção.

Diz meias verdades, meias mentiras. Manda recados aos políticos, aos santos católicos, aos arautos do Antigo e do Novo Testamento... Provoca risos, constrangimentos, inquietudes, alegrias e angústias...

Perplexos, os mendigos artistas veem a trama tomar rumos inesperados, ir além do programado, do exaustivamente ensaiado;

a ficção, agora, finge-se realidade ...

Era preciso muita diplomacia, muita discrição, e aquele imprescindível “jogo de cintura” para afastá-lo do palco, e, com toda a naturalidade, sem que ninguém desse conta, levá-lo novamente ao saguão de entrada, antes de devolvê-lo à calçada, onde luminosos cartazes anunciam strippers, gogo girls, drag queens e taxi dancers entre as atrações da vida noturna da cidade...

E assim... o falso ator, a contragosto explícito, equilibrando-se em muletas, é tirado de cena, conduzido pelo braço e, sem cerimônia, abandonado na calçada, ao relento, ao acaso, ao Deus dará ...

O espetáculo chega ao fim. O público de pé aplaude sem parar, pede bis .... um assobio aqui, outro ali, bravo, bravo!!!

Os atores perfilados, de mãos dadas agradecem, fazem reverências, curvam-se aos aplausos, dão breves recados ...

Aos poucos, as cortinas fecham-se, a plateia, agora, caminha sem pressa, retira-se em fila, as luzes apagam-se, silencia-se a música ambiente...

Ninguém, ali, parece ter notado a presença de um verdadeiro mendigo entre os personagens de mais uma tragicomédia paulistana naquela longínqua noite de sexta-feira...

Àquela hora, o sereno típico da terra da garoa prenunciava chuva. O dia parecia resolvido, a noite também.

Enfim, a chuva fria, fina e intermitente, como uma cortina d’água cobre ruas e calçadas, avoluma-se, leva restos de ingressos que parecem barquinhos de papel a navegar nos rios que vão se formando ao longo dos meios-fios...

(...) Ficaram apenas na memória como algumas poucas sextas-feiras.

Ao longe, em meio a tantos seres notívagos, ainda era possível avistar-se o caminhar solitário, anônimo e claudicante de um surrado terno azul marinho...

Cobria aquele mendigo, que, com uma autenticidade jamais vista, fizera o papel de ator...

Seguia pela noite; ora pela calçada, ora pelo meio da rua, equilibrava-se em muletas, conversava com elas, consigo mesmo, dizia frases truncadas, ininteligíveis, mandava recados ao mundo, dava ordens ao vento, desafiava a chuva... e lá ia, até virar à esquerda na esquina adiante, e, para sempre sumir do mapa, no silêncio da noite úmida, sem estrelas e sem luar...

Um som agudo, solene e metálico rompe o silêncio da ainda incipiente madrugada, ecoa por toda a cidade.

Eram os sinos da Igreja da Consolação a anunciar a primeira hora de um novo dia...

FIM

Conto de Zizifraga.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 01/07/2011
Reeditado em 21/01/2012
Código do texto: T3069408
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.