QUANDO EU CRESCER


O aviso do vôo 1833 ecoou pelo aeroporto lotado. Ela olhou o painel com olhos ardendo de sono e de cansaço. Duas reuniões pela manhã, dezenas de telefonemas e vários documentos para analisar na maleta pesada e desajeitada que descansava no piso frio de pedra. Era a terceira viagem naquela semana e ela se questionou até quando suportaria. O aviso para embarque ecoou novamente e ela levantou sentindo o corpo dolorido e desesperado por uma noite inteira de sono. Caminhou mecanicamente pelo corredor que levava até a porta do avião e respondeu com um resmungo o cumprimento da moça sorridente que aguardava os passageiros. O avião estava lotado, mas por um milagre estava sozinha na poltrona e aproveitou para se esticar um pouco. Fechou os olhos e segundos depois no balanço da decolagem embarcou em um sonho colorido.

Tinha dez anos de idade e ouviu o amigo perguntando:
- O que você vai ser quando crescer?
Não respondeu de imediato. Ficou olhando os grãos de poeira dançando serenamente sob a luz dourada do fim de tarde.
- Não sei – respondeu com um sorriso. Alguma coisa muito importante, eu acho.
- Como o que? – quis saber o amigo que olhava para a palma da mão onde uma minhoca se contorcia.
- Como uma daquelas pessoas de revista.
- Você vai andar com aqueles sapatos?
- Claro que não!
- Mas as mulheres da revista andam.
- Mas eu não vou – respondeu indignada.
- Eu vou ser astronauta – disse o amigo com seriedade.
- Deixa de ser bobo, não tem astronauta aqui na nossa cidade.
- Eu vou embora então. Vou para uma cidade bem grande onde tem bastante astronauta.
- Aí não vamos poder brincar mais.
- É verdade.
- Só seu eu for importante lá na sua cidade.
- Eu deixo você entrar na minha cidade.
Ela riu e continuou olhando a poeira dançando no sol.
Um sacolejo do avião a acordou momentaneamente. Tentou abrir os olhos e se localizar, mas voltou a dormir em segundos.
O piso encerado brilhava com os reflexos da tarde que entravam pela janela. Ela aspirou o cheiro dos móveis polidos à base de óleo de madeira e pensou em quanto gostava da casa arrumada. Andou na pontinha dos pés até a gaveta das “coisas de criança” e pegou duas revistinhas. Com mais alguns passos se serviu do suco gelado de cima da mesa.
Na varanda fresca e cercada de plantas, bebeu o suco e riu dos quadrinhos até que o amigo chegou.
- Vamos brincar?
- De que?
- De super herói.
- Tá bom. Só vou terminar o suco...
- Você já fez a lição?
- Já. E você?
- Ainda não.
- Mas tem que fazer, se quer ser astronauta.
- Outra hora. Vamos correr agora.
- Tô com fome.
- Eu pego goiaba para você, quer?
- Quero.
- Depois vamos pegar os bandidos.
- Tá bom.

A tarde foi curta, a brincadeira longa e quando o sol começou a dormir, eles se recolheram cansados e cheios de planos para salvar o mundo. Ela ainda ouviu a mãe irritada porque tinha se atrasado de novo para o banho. Entrou em casa, tomou banho e vestiu o pijama preferido. Na mesa de jantar a comida aguardava quentinha. Comeu com gosto e olhou a família reunida. O pai ria e brincava com o irmão mais novo e a mãe a olhava com ternura. Terminou o jantar e colocou o prato na pia. O amigo a esperava ansiosa na sala. Assim que entrou ele sorriu preocupado.
- Não entendi a lição.
- Eu ajudo você.
- Amanhã eu pego aquela manga madurinha.
- Tá bom. E devolve minhas revistas.
- Eu troquei pelas figurinhas.
- Mas eu não queria as figurinhas. Queria o anel.
- Eu queria as figurinhas.
- Então não estudo com você.
- Mas tem o super homem numa delas...
- Eu queria o anel.
- Mas nem é de estrela, minha mãe falou que é de plástico.
- Eu queria o anel.
- Tá bom, eu troco pelo anel.
- Então vem estudar – riu animada.
Brincaram mais do que estudaram e só pararam quando a mãe do Julinho chamou, exatamente no momento em que um aroma conhecido tomou conta da casa. O amigo foi embora reclamando e ela entrou pulando na cozinha.
- Que cheiro é este?
- É bolinho de chuva, seu preferido.
- Oba! E tem leite quente?
- Tem sim e depois vamos fazer um cineminha o que acha?
- Com pipoca?
- Com pipoca!
- Mãe...
- Sim?
- Eu tava pensando...
- No que filhinha?
- Quando eu crescer, eu quero ser alguém importante.
- Que bom, e qual é o problema?
- Ainda vai ter bolinho de chuva quando eu for grande?
- Claro que vai filha, que bobagem!
- E o Julinho vai brincar comigo?
- Mas que pergunta!
- E eu vou ter minha cama quentinha e poder brincar no quintal?
- Meu Deus minha menininha, que perguntas são estas?
- É que o Julinho disse que só as crianças fazem estas coisas.
- Ah minha filha... Vem cá me dar um abraço, vem.

O vôo chegou no horário. A mãe ainda a abraçava quando o avião correu pela pista. Ela abriu os olhos e piscou algumas vezes tentando manter a sensação de calor do abraço. Não adiantou. Em segundos, pessoas apressadas começaram a andar pelo corredor e a retirar bagagem dos compartimentos acima das poltronas. Ela ficou parada lembrando do gosto do bolinho e das goiabas tiradas do pé. Há anos não via o Julinho que nunca saiu daquela cidadezinha, tinha casado e estava com três filhos. Não tinham mais nada em comum e nunca mais se falaram. Ligou o celular e viu as nove ligações perdidas. Todas da empresa. Todas urgentes. Todas dependendo dela. Levantou da poltrona se sentindo com mil anos. O corpo doía e a cabeça rodava. Tinha duas horas para chegar em casa, comer alguma coisa e ler os relatórios que deviam estar entupindo o e-mail. No dia seguinte faria três reuniões importantes e precisava se preparar. Balançou a cabeça se sentindo tonta por um momento. Um homem que tentava fechar uma maleta a olhou com curiosidade e a cumprimentou quando reconheceu o rosto comum nas capas de revista. Fechou os olhos e respirou buscando forças. Estava exausta, impaciente e irritada. Queria sair dali. Queria correr para casa e num momento de nostalgia se viu pensando na cama quentinha da infância. A voz do amigo veio nítida e interrogativa.
- O que você vai ser quando crescer?
Sentiu o nó na garganta no mesmo momento que a lágrima se espremeu pelas pálpebras fechadas. Queria ter outra resposta. Queria que tivesse sido diferente. Queria ter tido forças para mudar as escolhas. Queria apenas ter tempo para brincar novamente.
Tempo para dormir.
Tempo para sonhar.
Que besteira.
Nada, nunca mais seria como antes.
Nem ela mesma.
Tinha uma noite cheia pela frente e nela não havia espaço para coisas tolas de criança.
Abriu os olhos, enxugou o rosto, cumprimentou brevemente o homem que ainda a olhava e saiu do avião.

Edeni Mendes da Rocha
Enviado por Edeni Mendes da Rocha em 06/07/2011
Reeditado em 31/08/2011
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