Zeitgest, que te quero, Zeitgest

Já que estamos escrevendo sobre mulheres desperdiçadas me deixa falar da Vera.

Vera “Verminose” tempos depois, porém nesse momento ela será só Vera. Um nome como outro qualquer como veremos a seguir. Outro conto cotidiano que não sai nos jornais locais e muito menos em rede nacional. Ora. Porque sairia? Isso aqui é uma província que acha que é capital pelos motivos errados. Nada para se fazer com dinheiro ou não. Se você bobear não acha nem carrinho de cachorro quente depois das duas da manhã e talvez seja por isso que ocorrem coisas com a que vou narrar aqui.

Vera entrou para a PUC estudar Comunicações Sociais com 17 anos de idade. Filha única e paparicada e mimada da fina flor da elite local. Vocês conhecem o tipinho, claro. Linda, graciosa e gostosinha. Ingênua, sem sombra de dúvidas. Mas também sempre com mordomos, cozinheiras, empregadas e motorista particular desde a tenra idade. Filha de pai grande especulador imobiliário e mãe “psicóloga dos famosos”. Dizem que até vinha para cá um “grande galã televisivo” que contavam nos bastidores que não sofria de nenhum problema a nem se lidar com seu enorme ego inflamado e crepitante e apenas era chegado em bolinhas em geral e que nem perguntava o preço da consulta. Sabe lá, não sou repórter investigativo, muito menos especulativo. Desconfio do rótulo de “maldito”, mas que ele me cabe com uma luva impossível negar. Acostumada à alta roda desde o berço. Sempre foi amiga dos mais ricos, badalados e famosos babacas da cidade. Aqueles que pagavam fortuna para terem seus nomes e suas fotos publicadas na coluna social do jornaleco oficial dos escrotos endinheirados do estado. Dos ditos “formadores de opinião” que já estava falindo e vendendo a alma para o capeta. Nada de novo no front. Não sou eu que sou repetitivo. São as massas é que não assimilam suas derrotas cotidianas e não conseguem aceitar que nada evoluiu só piora e que transformam suas vidas em nada mais que merda seca por não terem sobriedade para aprender com seus erros. Que dúvida. Vera teve seu primeiro arroubo com um rapaz de outra família dita nobre com o consentimento das duas famílias aos 15 anos. Óbvio que essas relações arranjadas que ainda tendem a remeter o século XVII nunca foram para frente e o casal acabou ficando apenas uns oito meses juntos, mas que rendeu a Vera mais uma viagem para Bali, Indonésia, Nova Zelândia vai dizendo aí, algumas joias a mais na sua imensa coleção e a perda do seu cabaço.

Quando passou no vestibular mais pela amizade do seu papai com o reitor da universidade de que pelos seus méritos pessoais ganhou um carro do ano mesmo sem ter idade para ter a carta de habilitação. Sou o cronista oficial dessa cidade, amigo. Sei como banda toca por aqui posso garantir que quando os guardas paravam a moça numa blitz ela simplesmente molhava algumas mãos ou apelava para o jeitinho brasileiro que aqui se chama de “golpe do chapéu” e sempre saia ilesa, linda e leve. Óbvio que uma menina menor de idade numa faculdade particular de renome e com grana familiar infindável no banco iria se encantar com a “vida acadêmica”. Experiência de vida, nenhuma. Apenas um casinho fugaz e arranjado. Nada de muito sério. Nada de muitas justificações. Os ricos é que estão por dentro do sentido da vida: “Money Talks”, nenhuma novidade nisso. E Vera resolveu tirar proveito da sua situação. Bares da moda, novos amigos na mesma posição social que ela, festas de arromba, churrasco em coberturas e em beiras de piscina. A ao que parecia para aquelas moças e rapazes criados a pão de ló é que nunca havia pais ou responsáveis por perto. Ah, um delícia você assistir a todas as situações de fora para poder escrever depois. Esgueirando-me com meu sobretudo preto , meus olhos atentos e fumando meus mata ratos de filtro amarelo perambulo por todos os ambientes, dos bares até moda até os muquifos sórdidos administrados por coreanos taciturnos e indiferentes, pelas festas mais badaladas frequentadas pelos “mais mais” e pelos prédios de apartamentos com escadarias escuras e que o acesso se faz pela porta da cozinha, dos lançamentos de livros e mostras de artes plásticas até os cafés em que os velhotes sorvem suas xícaras com avidez que permite suas dentaduras, das livrarias chiques aos sebos vagabundos que acham que raridade é um exemplar roído pelos ratos e pelas traças, pelos shows internacionais concorridos até a banda mais desgraçada de garagem. Quando você consegue esse estranho equilíbrio você está pronto para sentar-se à frente do computador e escrever da forma, na métrica e com o estilo que você desejar. Enquanto isso, fico eu aqui me delongando e assim os leitores vão me abandonando Vamos aos fatos concretos.

Quando fez dezoito anos Vera resolveu desbundar, como se dizia no meu tempo. Conheceu alguns amigos que faziam o tal estilo “alternativo” (não me pergunte se caíram da balança quando crianças ou se essa gente é débil mental pura simplesmente porque essa é uma questão que foge complemente da minha compreensão ) e comprou alguns discos por indicação desse gentinha desinteressantes, descoloriu o cabelo e fez um corte maluco da moda e trocou suas roupinhas de marca por outras surradas e gastas compradas em brechó e passou a beber feito gente grande. Só das melhores marcas, bem entendido. Saia agora todas as noites e seus condescendentes genitores achavam que isso era uma “fase” ou “coisas da juventude e da idade”. Pois sim. Essa praia é quem tem sangue de barata ou passou pelas piores privações até os onze anos de idade. Ou seja, muito mais que fritar bolinhos ou se abanar com um leque vindo da China. A sua vida agora se resumia à faculdade, aos amigos e aos embalos. Parecia uma coisinha inocente. As aparências enganam? Mais que do que você imagina, meu xará. Renata tornou-se sua amiga mais próxima. Ela também era uma coquete de butique. Porém era alegre, desenvolta, bonita e sempre beijava os seus amigos mais próximos na boca e de vez em quando transava no primeiro encontro. Tornaram-se unha e carne. Andavam sempre juntas a ponto das pessoas pensarem que fossem irmãs ou primas próximas. Renata era dois anos mais velha que Vera. E bem mais experiente com a cerveja, o vinho argentino, o uísque e os coquetéis de frutas e com os garotos. Foi Renata que a apelidou de “Verminose” porque achava que todos deveriam ter uma alcunha descolada. Vera assumiu o segundo nome no mesmo segundo. Ouviam música o tempo inteiro e a sua nova amiga foi quem moldou suas preferências. Nem precisa dizer que nenhuma delas abriu mão das posses, do dinheiro e do sobrenome familiar. Apenas curtiam as suas pequenas loucuras com toda a pompa que a grana pode proporcionar. Aquela excelente sensação de segurança que vem quando a sua conta bancária está bem fornida e que você sabe que se alguém bater as botas seu estilo de vida estará garantido. Até que voltou de um pequeno intercâmbio pela Holanda, Bélgica e França um carinha que se chamava Otaviano que com os íntimos era tratado por Tate. Um jovem deus de longos cabelos louros e olhos brilhantes que falava cinco idiomas e estava sendo treinado para ser um dos caras mais bem sucedidos dos Brasil sem fazer nenhum esforço maior. “Profissão Herdeiro De Um Babado Lucrativo Qualquer”. Era vivido apesar dos seus vinte e dois anos e já era formado como não me pergunte. Coisa da vida. Sua família era tão endinheirada quanto qualquer outra daquele circuito. Posso dizer com certeza que os olhos de Vera e Tate se cruzarem imediatamente quando se conheceram numa festa de aniversário de um amigo em comum. Eu estava lá pela boca livre, sem dúvida, e também para fazer o meu número. Não sei por que todos continuam me convidando para seus eventos desimportantes e fúteis. Eu suspeito que seja para garantir a diversão deles. Uma mera atração circense. Um papel que aceito de bom grado se a bebida valer a pena. E sempre vale. Nunca fico até o final. Sou o adepto da boa e velha saída “à francesa” e quando faço isso é pelo fato de já estar saturado da superficialidade dos outros ou porque já estou de pé redondo de tanto álcool. Ou as duas coisas. Não se largaram o resto da noite e nos dias que se seguiram. Já perceberam que até esse trecho não houve menção de nenhum tipo de droga na jogada? Pois então agora é que começa mesmo a verdadeira história.

Maconha não conta. Isso era um fantasma na época dos meus pais e um pouco depois. O que é maconha? Essa é pergunta desse começo de século e os hipócritas agora podem afirmar que não é nada. Uma erva medicinal e inofensiva que não prejudica ninguém. Que deveria ser legalizada e coisa e tal. No meu tempo era um bicho de muito mais que sete cabeças. Hoje recreação saudável de todas as classes sociais. Não precisa queimar as pestanas para se dizer que o Tate já estava familiarizado com isso bem antes da sua temporada europeia e que seu retorno provocou uma nova onda aquele grupinho de amigos. Depois veio o LSD, o haxixe, os comprimidos e a o Grande E. Ectasy, babe. “A Droga do Amor”. Virar a noite dançando e pulando feitos selvagens em desenfreio. Transar a noite toda. Para essa geração o que importa é quantidade e quando se tem dinheiro do papai e de mamãe para esbanjar não tem tempo ruim. Todo dia na casa de um e o dia todo e mais a noite. Vera continua frequentando a universidade normalmente e suas notas que nunca foram grande coisa sempre garantiam que ela vencesse mais um ano e fosse levando com a barriga até a formatura. Para aquelas pessoas o futuro era garantido. E que perda de tempo esquentar a cabeça? Isso era coisa de pobre, de engraxate, entregador de pizza, funcionário público e escritor que morria de fome estirado na sarjeta e fedendo a urina. Eles eram os que estavam “por dentro”. Por dentro de que é a pergunta de quê? Não tinham pressões sociais ou familiares, pois apesar da aparência esquisita que tinha adquiridos ainda eram os filhinhos de suas mamães. E as mamães quase morriam de orgulho quando diziam que seus pimpolhos agora tinha formado uma banda de rock...Zeitgest, que te quero Zeitgest... Nada melhor que a mutabilidade das coisas já pregava os budistas. Será?

Claro que a aquela altura do campeonato o corpo se torna tolerante a um monte de substâncias e que essas já não fazem o efeito desejado. Eu como já fui parar até em clínica em virtude desse tipo de abuso fico hoje em dia bem na minha. Uma ervinha, muita bebida e um “papel” muito esporadicamente para ver o mundo luminoso até faz bem. Demorei em ter essa consciência e poder me presentear com esses pequenos deslizes. Isso leva tempo e pode desencadear reações de todos os tipos. Todo cuidado é pouco, querido. Você só adquire essa experiência depois de chafurdar no limbo. Mas falando em degradação.

Nem precisa ser muito esperto para deduzir que a cocaína e o crack viraram a “bola da vez” da noite para o dia. O dinheiro não é uma coisa maravilhosa? Você fazer o que te der na telha e nem pensar no dia de amanhã, no fim do mês ou da década? Esse papinho furado de “igualdade social” é para eu e você, caro leitor, que estamos do lado de cá da cerca. Do lado de lá é só uma montanha russa em que se pode passear o quanto quiser e até enjoar. Essa coisa sempre se torna perigosa. E o namoro da Vera “Verminose” e do Tate continuava de vento em popa com as bênçãos familiares. Durante algum tempo a impressão que dá é que você segura a onda. É formidável essa ilusão de controle. Essa ilusão de achar que para quando der vontade. Essa falsa sensação de segurança. Vera “Verminose” e Tate. Parceiros até o fim. Vai sonhando. Numa noite em especial eu estava novamente presente num boteco perto do Setor Histórico que era o ponto de encontro de toda a curiosa fauna curitibana. Talvez o bar mais eclético que eu já tinha estado. Gostava do proprietário, magrelo, alto e muito engraçado. Ele era uma atração à parte do seu lugar. Tinha terminado sua pequena pantomima e eu ainda estava dando gargalhadas com um grupo de escritores locais que então passaram a discutir se a literatura beat ainda era relevante nos dias de hoje eu tentava agora me esquivar desse papinho aranha chatíssimo e não teve jeito. Que queriam minha opinião eu lhes disse que enquanto houver gente interessada em comprar os livros desses loucos o movimento ainda estaria vivo por muito tempo. Pareceram satisfeitos com a minha resposta. Continuamos bebendo e falando amenidades sobre os trechos de um de outro quando eu deparei com o casal em questão subindo a rua. De longe parecia estarem cambaleantes, um agarrado com o outro. Avistaram-me e vieram direto. Percebi no ato. A famosa “crise de privação”. O Tate balbuciava perguntando se eu tinha um baratinho qualquer. Erva e só erva, informei. Fizeram um cara de desdém e tomaram seu rumo. Os meus amigos que estavam comigo ficaram bestificados com essa situação e começaram a falar ao mesmo tempo levantando todas as bandeiras contra esse mal. Como se falar e praguejar adiantasse de algo. Esse é outro sintoma dessa doença. Maconha e haxixe para esse tipo de usuário pesado acabam inevitavelmente virando “coisa para criança”. Coisa para bebês. Seguro morreu de velho. Isso eu aprendi. E ainda por cima aos 43 virei referência. Dylan dizia “que se você não está ocupando nascendo está ocupado morrendo”. Não precisa ser no sentido literal. Morre-se todos os dias e de muitas formas inclusive ainda com as funções vitais funcionando perfeitamente. Os jovens endinheirados não pensam em nada. Muito menos em consequências. Isso realmente é fora de cogitação.

O fim da história eu fiquei sabendo por terceiros e até pelos jornais sensacionalistas.

O que aconteceu depois daquela noite foi todo o previsto. Cadeia e fiança paga pelos pais. Afastamento um do outro. Recaídas Imprensa calada à guisa de altas proprinas. E retornos apaixonados. Novos afastamentos. Novas proibições que foram ignoradas pelo jovem casal. Internamentos com resultados pífios. Exílio forçado de ambos. A vida rolando normalmente para os humildes “mortais”. Minha rotina nada foi alterada e na verdade eu assistia tudo sem emitir juízos e opiniões. Já sei como termina este tipo de história. Escrevi várias para esse livro e outras mais ainda viriam.

Um tarde eu estava tomando um chope preto naquele tradicional bar do centro. Os times paranaenses continuavam a fazer vexame a nível nacional e esse era o assunto com os garçons. Pedi um cachorro quente completo e mais bebida. Fui até a marquise fumar um cigarro. Na segunda tragada esfreguei meus olhos com as palmas da minha mão. Quanto tempo haveria passado daquela noite maldita em que encontrei a Vera “Verminose” & o Tate naquele estado deplorável? Dez meses? Um ano? Não saberia precisar. Esfreguei meus olhos com as palmas diversas vezes. Olhei atentamente. Senti meus olhos crescerem e meu queixo cair. Fiquei boquiaberto com o que vi. Achei até que poderia ser efeito retardado das drogas consumidas nos longínquos anos oitenta. Mas, não podia ser. Eu estava enlouquecendo e tendo alucinações? Olhei bem. Fotografei a cena em minha memória para poder escrever com clareza e objetividade. Era ela. Vera “Verminose”. E desta vez não era uma moda ou um figurino ousado. Pode crer. Como diria aquele personagem do Laranja Mecânica. “No rigor da moda”. Nada disso. Era o mundo real como ninguém poderia prever. Vera “Verminose”, uma das gatas mais descoladas da cidade na sua geração estava apenas virada numa mendiga de rua suja e pútrida. Pés descalços pretos como piche até a região do joelho. Cabelos sebosos e desgrenhados como seu corpo todo castigado pelas intempéries desse clima maravilhoso do sul do mundo. Uma pedinte qualquer. Seus andrajos denunciavam que ela renunciara de todo um estilo cultivado de vida. Não acreditava no que meus olhos viam. Nem posso dizer que fiquei chocado porque nesses casos essas situações são puramente banais e corriqueiras. Acontece nas melhores famílias, bicho. Fatal. Toda uma vida de glamour e dinheiro e posses e facilidades jogadas pelo ralo por um motivo torpe e fútil. Por um breve momento tive a impressão que ela tinha olhado em minha direção e me reconhecido e estava envergonhada por eu vê-la naquele estado deplorável e irreversível, porém pode ter sido apenas uma breve e estúpida impressão. Gente que se vicia não mede muitos esforços, não é mesmo? Trocam tudo pela sensação da primeira vez mesmo sabendo que isso não será possível. Terminei meus cigarros. Minha mente totalmente vazia. Pedi mais um chope e comi meu cachorro quente. Pedi vodca e mais chope. Ela ficou alguns minutos a mais por ali arrecadando algumas moedas. Depois que ela saiu matei minha vodca, paguei minha conta e sai caminhando devagar em direção à Praça Osório...

.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 06/07/2011
Código do texto: T3079442
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.