No meio do quadro negro...

O sinal tocou. A aula estava encerrada. Eufóricos e apressados, os alunos guardam livros, réguas e cadernos, carregam mochilas, e, em pequenos grupos, saem da classe com a pressa típica da primeira idade...

Um deles, no entanto, permanece sentado, impassível. Agora, só o mestre e aquele aluno preenchem o silêncio da sala de aula. O aluno então levanta a mão direita, e dirigindo-se ao mestre, sem meias palavras, questiona-o:

“Mestre, por favor, diga-me: Quem é Deus ? É verdade que Ele mora no céu ? E que Ele está por toda a parte ? Como pode alguém estar em vários lugares ao mesmo tempo ?”

Enquanto procurava respostas para as extemporâneas e inesperadas perguntas, o mestre, sem dizer palavra, levanta-se, vira-se para a lousa, e, em letras garrafais, como se escrevesse em um caderno de caligrafia, vai, pausadamente, desenhando a palavra DEUS. Em seguida, volta-se para o aluno:

“Bem... dizem que Ele é onipresente” .

“Como assim onipresente?”, pergunta o aluno.

“Significa que ele pode estar aqui entre nós, do outro lado do mundo, ou, dentro desta gaveta”, diz o mestre apontando para a própria mesa, “mas o fato, meu rapaz, é que ninguém jamais O viu. As tão decantadas escadas que poderiam levar a Ele, na verdade, nunca alcançaram o paraíso.

Aquela torre, assim como as maquetes dos filmes de Hollywood, não passou de uma babel visionária e incompreensível para os que pensavam que poderiam conhecê-LO pessoalmente. Portanto, ninguém sabe se Ele é um astronauta, ou uma divindade celestial... Se Ele é homem ou mulher, menino ou menina, se é uma vaca, uma cobra, um elefante ou um primata... Ou, se Ele é todos fundido em uma única entidade...

O que realmente importa, meu jovem, é acreditar que para Ele nada é impossível. Ele é capaz de mover cordilheiras, secar mares e oceanos, de congelar fogueiras, incendiar geleiras, deter tsunamis e vulcões, de silenciar terremotos, e, depois de tudo, ainda presentear o céu e a Terra com apoteóticos arcos multicoloridos...”

“É verdade que Ele é brasileiro!?” pergunta o aluno, e emenda, “Ele deve ser estrangeiro.”

“Por que dizes isso, meu jovem!?” retruca, curioso, o mestre...

“É que vejo tantas maldades nas esquinas deste nosso belo e amado país. Infâncias perdidas, maltrapilhas, ao Deus dará... Ele deve ser estrangeiro, mestre, ou, vai ver deve andar muito ocupado com as coisas lá do céu...”

Nesse momento, o mestre sentencia:

“Ele é, sobretudo, um cidadão do universo. Eu sei que dizem por aí que Ele é brasileiro, mas Ele pode ser vietnamita, coreano, cambojano, etíope, norueguês, camaronês, ou haitiano. Talvez norte-americano, lituano, russo, filipino, croata ou esloveno. Isso é o que menos importa...

Ele pode até mesmo ser de outro planeta... um marciano, um habitante de Netuno, de Urano, de Júpiter, ou de Saturno...

(...) quem sabe não seria Ele um Nosso Senhor dos Anéis !?

O que realmente importa, meu rapaz, é sentir a Sua Presença no frescor e no cheiro das manhãs, nos longos e ensolarados crepúsculos, na vaidade cintilante das três Marias, no fundo de uma taça de vinho, no voo sereno de um Boeing prateado, na fidelidade dos vira-latas, nas acrobacias de uma baleia azul, nas teias das aranhas rendeiras, em uma cantata de Bach, na alegria dos palhaços e nas gargalhadas das crianças...

Mas, se precisares vê-LO para acreditar que Ele realmente existe, jamais acreditarás Nele, mesmo que O vejas. A essência de tudo, meu jovem, chama-se fé.”

O mestre ajeita os óculos, olha o aluno nos olhos, e, sem pestanejar, profetiza...

“Amanhã será outro dia, e se Ele quiser, será um lindo dia...”

Enquanto guarda livros e cadernos, o aluno agradece ao mestre, e, depois de acomodar a mochila nas costas, sobe na bicicleta, pedala sem parar até virar à esquerda na esquina adiante, e logo desaparece em meio a uma “multidão” de ruidosos e apressados automóveis...

O mestre, agora, está só. Tira a bata manchada de giz, acondiciona os diários de classe na surrada pasta de lona, volta-se para a lousa, fixa-a por breves segundos, e retira-se lentamente; senta-se ao volante do velho Fiat 147, dá a partida, acelera, e segue em frente, deixando para trás antigas dúvidas e densas nuvens de fumaça acinzentada.

O servente, como de costume, entra na sala. Varre-a, recolhe o lixo, arrasta cadeiras e carteiras, bate repetidas vezes o apagador contra a parede, espalha pelo ar minúsculas e intangíveis partículas de pó branco que logo formam simétricos caminhos à luz do sol do meio-dia.

Para por um instante, apoia-se na vassoura, olha para a lousa, e, com todas as letras, lá está Deus... Ele, então, faz o sinal da cruz, reverencia-O, curva-se ligeiramente, e, em monástico silêncio, vira-se, e sai, parecendo aliviado, de bem com a vida, de bem consigo mesmo...

No dia seguinte, o mestre, como sempre, é o primeiro a chegar. Abre portas e janelas. Uma brisa suave invade a sala de aula, agita as pacatas cortinas de seda bege e linho branco.

O sol tinha nascido para todos... As janelas semiabertas permitem que a lousa seja banhada por uma intensa e bem vinda luminosidade matinal.

E Deus, que ninguém ousara apagar, ainda reinava absoluto no meio do quadro negro...

FIM

Conto de Zizifraga

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 08/07/2011
Reeditado em 23/05/2013
Código do texto: T3082496
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