Um dia na vida...

A última vez que se viram, computadores não passavam de insólitas máquinas de filmes de ficção científica; telefones celulares e câmeras digitais ainda eram uma inimaginável utopia... Isto tudo sem falar dos fax modens, pen drives, MP(s) de última geração, IPhones, e todas as inovações tecnológicas a caminho... O tão decantado terceiro milênio finalmente chegara. O mundo não era mais o mesmo. Eles também já não eram os mesmos...

Encontraram-se por acaso, em um bar do bairro de Moema, famoso por suas casas noturnas, comércio diversificado e modernos edifícios que não paravam de subir e de povoar o céu ...

Aguardavam que o tráfego fluísse, e se dispersassem as invisíveis partículas dos motores “flex power”, "personagens" cada vez mais presentes no caótico, desumano e belicoso trânsito da cidade de São Paulo...

João, desde os tempos de bancos escolares, revelara-se inquieto, ousado e empreendedor. Otimista incorrigível, como bem gostava de frisar, vivia por aí dizendo que um dia a América ainda teria um presidente negro... João, mais do que ninguém, sempre acreditou naquele sonho americano, nos alquimistas da nova era, e nas escadas que diziam levar ao paraíso...

Já fazia algum tempo que João não usava lápis nem papel; tinha um lap top, um IPod, que de tudo era capaz, e aquele celular multifuncional, que só faltava mesmo pensar...

“Argonauta dos sete mares virtuais”, João não tinha a menor dúvida de que navegar era preciso, nem que para isso tivesse de enfrentar o temível Cabo das Tormentas, o enigmático Triângulo das Bermudas, ou, o remoto e frio Estreito de Magalhães. João, definitivamente, não saberia mais viver em um mundo sem Internet.

Já o bom José parecia sentir-se desconfortável diante de todas aquelas (sic) “engenhocas digitais”, assim a elas se referia, e, ainda hoje, em pleno 2010, ninguém o faria abrir mão de sua agenda com mapa mundi, planejamento mensal, tabela de pesos e medidas, aniversários, curiosidades etc e tal... E, claro, de seus preciosos manuscritos. Destes, então, nem se fala... Conservador convicto, José, decididamente, não confiava no desalmado pragmatismo daquelas máquinas digitalizadas; nem mesmo nos robustos, austeros e herméticos caixas eletrônicos ele confiava...

José achava que tudo, absolutamente tudo já estava escrito nas estrelas, e o que tivesse de ser, fatalmente seria... Com frequência, valia-se desses axiomas para justificar e defender os seus pontos de vista. Longe de ser pessimista, a verdade é que José sentia-se impotente diante das injustiças de um mundo tomado por profetas televisivos, que se arvoravam a expurgar demônios, curar enfermos e a vender felicidade a granel...

José era um sujeito metódico, que, sem o menor constrangimento, e, até com uma ponta de orgulho, dizia-se pertencer a uma hipotética ONG denominada “Últimos Românticos de um Mundo Ponto Com.”

Avessos a qualquer ideologia política, quer mais à direita, ou mais à esquerda, eram, sobretudo, dois humanistas; acreditavam na formação do caráter humano pela ética, solidariedade e amor ao próximo...

Haviam se formado em Administração de Empresas, mas, foi no comércio, que, coincidentemente, encontraram as suas verdadeiras vocações para, como atores sociais, adequarem-se, sabe-se lá a que preço, a um cenário cada vez mais capitalista, competitivo e impessoal....

João trabalhava em uma concessionária de automóveis no bairro da Aclimação, famoso por sua topografia de curvas, aclives e declives, e por abrigar um parque homônimo, para onde acorriam, e ainda hoje acorrem, moradores, não apenas do entorno, mas também de outras regiões da cidade...

João primava pela elegância, discrição e simpatia, era um verdadeiro “gentleman”. Que o digam as suas colegas de trabalho, ou, quem tivesse o privilégio de desfrutar da sua aprazível e inestimável companhia. Ainda que não pudesse fazer nada diante do impossível, do inexorável, João sempre “tirava do bolso do casaco” uma palavra amiga, um sorriso, um gesto fraterno e acolhedor...

José, por sua vez, era corretor de imóveis. Trabalhava em uma imobilária de renome nas imediações da Vila Olímpia, bairro de classe média, referência em lojas de vestuário, gastronomia, e que, nos últimos anos, tornara-se um importante centro financeiro da cidade.

José não tinha salário fixo. Recebia uma pequena ajuda de custo e comissões pelos negócios fechados, o que, mesmo não sendo muito, como era solteiro, garantia-lhe um padrão de vida razoável, e, não raro, um ou outro momento de lazer...

José tinha o hábito de folhear vários jornais. E fazia-o logo pela manhã, assim que chegava ao trabalho. Era preciso estar a par do sobe e desce do mercado financeiro, acionário e imobiliário. E por que não, deter-se por alguns minutos no caderno de esportes para saber das últimas notícias do time do coração. Mas, a bem da verdade, do que José realmente mais gostava, era de acompanhar os movimentos geopolíticos e antropológicos do mundo em que vivia, e, até por isso, as pessoas, com relativa frequência, surpreendiam-se com (sic) a sua inesperada, mas sempre oportuna e bem vinda cultura geral.

Ambos tinham alma de artista. João gostava de cantar aquelas baladas dos lendários Bob Dylan, Joan Baez e James Taylor. E fazia-o com muita propriedade, em especial, depois da primeira dose, afinal, era preciso lubrificar a garganta para poder soltar a voz que vinha do coração...

Já o bom José escrevia poemas e narrativas. Admirava a poesia dos tempos de exílio de Gonçalves Dias, a irreverência lírica de Drumond, e a prosa crítica e futurista de George Orwell.

Fazia um ou dois anos que José estudava inglês, e até já se virava razoavelmente bem no idioma. O seu grande objetivo, contudo, era aprofundar-se na vida e obra de Emily Dickinson (1830-86), poetisa americana, a quem admirava, não apenas por sua própria história, mas, sobretudo, pelo olhar penetrante e tridimensional nas mais elementares nuances da vida, da morte, do amor e da natureza...

Deviam estar agora a caminho dos cinquenta. José era um ou dois anos mais velho... Pareciam não acreditar que, depois de tantos anos, viam-se novamente frente a frente. Os dois quase não se reconheceram. Os primeiros cabelos brancos e sinais de calvice compunham as suas atuais fisionomias. Todavia, ainda guardavam o mesmo jeito de falar, de olhar, e, aquilo que mais os caracterizava, a mesma descontração, irreverência e senso de humor...

(sic)

“Eu não acredito que estou diante do meu velho e bom amigo José.”

“João!? Você por aqui!!! Há quanto tempo!!!”

Depois de trocarem os primeiros olhares e de se cumprimentarem calorosamente...

“O que v. tem feito da vida, José!?”

“Tenho andado por aí, amigo, atrás da felicidade, mas será que ela existe, João, será!?”

Sensitivo como poucos, João logo notou um quê de solidão no olhar perdido de José.

“Que tal brindarmos aos novos amanhãs !?

José e João erguem os espumantes copos de cerveja, e, fazem um brinde ao futuro.

“Veja, José !”

João aponta para o alto...

“Logo ali, bem ali, aquelas duas estrelinhas, tão perto uma da outra... Talvez, assim como nós, elas conversem, ou, vai ver... lá do alto, na imensidão do céu, nem se deem conta de que estejam tão próximas...”

“Onde !? Não as consigo ver.”

“Ali, José, bem à direita das três Marias. Está vendo agora1?”

“Agora sim.”

“E por falar em estrelas e em Marias, diga-me, amigo, você e a Dalva ainda estão juntos? Lembro-me de que você era apaixonado por ela, João.”

“É verdade, mas ela não era por mim, José, fazer o quê!? Isso já é passado. Se bem que às vezes ainda me pergunto se a minha Dalva, tal qual aquela da canção popular, ainda consegue deixar a lua tonta... E você, meu bom José, fale-me um pouco de você.”

“Bem, você quer mesmo saber, João!? Continuo tentando entender o amor...”

“Mas o amor é ininteligível, imponderável e inexplicável. Talvez seja ele a maior das incógnitas. Acho que nem mesmo Einsten, com todas aquelas fórmulas, o conseguiria decifrar...”

“A propósito, amigo João, você ainda anda com aquelas idéias de colher girassóis em Vênus e margaridas em Marte ?

(João, quando menino, ao ver pela televisão, o homem pisar na lua, ficou tão fascinado com aquela cena que vivia dizendo que tudo faria para entrar na Força Aérea Brasileira, e, quem sabe um dia, ainda se tornaria o primeiro cosmonauta jardineiro do Brasil...)

“Não, não, José. Agora só pretendo ter os pés neste chão nosso de cada dia, e ser feliz ao lado da minha pequena Emília. Ainda assim, por que não brindarmos também ao Capitão Kirk, ao Spock e ao menino Willy !?”

“E ao luar do sertão”, completa José.

“Bem lembrado, José, ao luar do sertão, por que não!?”

E olhando para o infindo vazio do copo, João não se contém:

“Você e essa alma de poeta, José. Foi tão bom encontrá-lo, recordar aqueles anos em que acreditávamos que os deuses eram astronautas, que a felicidade morava ao lado, e que até mesmo o céu podia esperar...”

Um trecho de uma cantata de Bach propaga-se pelo ar. Vem do bolso do casaco de João; ele atende o celular, e vira-se para José.

“É ela querendo saber onde estou, com quem estou, e se vou demorar. Bem, meu bom José, preciso ir.”

“Eu também. Parece que o trânsito melhorou...”

“Não vamos mais nos perder por aí...”

“Nem pensar, José, nem pensar!!!”

João e José trocam cartões e caminham até os seus automóveis. Depois de um caloroso e fraterno abraço, sentam-se ao volante, dão a partida, e, tomando rumos opostos, afastam-se deixando no ar da noite enluarada o suave aroma de uma hibrida mistura de nostalgia, esperança, etanol e gasolina...

FIM

Conto de Zizifraga

Janeiro de 2011.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 13/07/2011
Reeditado em 13/01/2012
Código do texto: T3093236
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