Vidas do mangue

Os caranguejos não eram mais vistos naquele mangue de lamas escuras. O inverno principiara uma debandada geral no primeiro gotejar daquela estação. Os problemas do bairro anfíbio estavam apenas começando. Trabalhar em alagadiços na chuva não garantia muita renda, levando-se em conta a escassez de alimentos e as dificuldades daqueles que não dispunham das pequenas barcarolas que os conduzissem ao mar de crustáceos, que não se aventuravam mais pertos dos humanos.

A fome rondava a passos largos. O bairro sentia o peso de sua presença constante. Um canto horrendo partia de dentro dos barracos, insinuando a precariedade dos víveres. O choro infantil encontrava coro nas mães que sofriam duas vezes: pelos seus rebentos e pelos seus estômagos vazios. Os pais ficavam encostados nas tábuas das portas dos barracos a espreitar melhores dias para as suas crias, trocando olhares vazios entre si, enxergando a vida no mangue bem distante de suas secas bocas. O verde do mangue molhado contrastava com suas angústias, com os seus medos.

Com as chuvas, poças d’água se formavam na frente dos barracos de tábuas, transformando-se em espelhos, refletindo a luz da miséria dos alagados. Por horas um magro senhor de feições sofridas, com a cor da pele do mangue, fitou-se naquele espelho das águas da chuva, não esquecendo também de aumentar o volume da lâmina do espelho com suas salgadas lágrimas. Ele era o próprio reflexo do bairro de madeira: magro, raquítico, esquelético. Para ganhar maior nitidez naquela imagem, ajoelhou-se e aumentou seu pranto. O homem transbordava nas tristezas do bairro. A mulher, que tinha conseguido saciar a fome dos oitos pequenos guris com um pouco do leite da própria mama, veio ao encontro do marido. Segurou-o carinhosamente por trás, entrelaçando seus braços na cintura do esposo e num único impulso colocou-o de pé. O velho homem naquele momento ainda enxugava as lágrimas quando num gesto de amor aquela senhora o abraçou. Era o conforto traduzido de todas as mulheres e homens de fibras que se reproduzem nos mangues da cidade, fazendo crescer uma esperança.

Nas vielas do bairro de madeira, a população busca ajuda no outro. A solidariedade é crescente quando trocam o pouco que tem, quando se doam aos vizinhos; ora acalentando a perda de mais um rebento que não suportou o rigor e as exigências do seu próprio corpo, de um estômago em fúria; ora cedendo um punhado de farinha de mandioca para saciar a fome companheira do bairro.

A emergência de encontrar uma solução imediata para a fome ceifadeira de vidas fez uma reunião acontecer. Os mais velhos trocaram sugestões sobre como poderiam tocar suas vidas, considerando que o inverno estava apenas começando. Resolveram desafiar o mangue em busca do crustáceo essencial. Saíram de andada como os próprios caranguejos, revirando os mangues da cidade na busca pela comida. O esforço teria sua recompensa. As crianças sentiram uma fome diferente: a fome de viver. Levantaram e seguraram forte nas mãos dos seus pais, num sinal de que não abririam mão de encontrarem também a vida nas raízes e nas lamas dos mangues.

A chuva nada podia fazer agora. O inverno era apenas algo que inevitavelmente aconteceria todos os anos. Sacos de náilon foram entregue àquele exército de homens. As mulheres, com seus terços faziam o terço, rezaram ali nos seus barracos, reunidas; irmãs na novena. Acendiam velas ao santo padroeiro dos pescadores. Muitas delas ficaram na beira do mangue com suas contas de rosário nas mãos esperando seus maridos anfíbios, suas crias e suas cordas e sacos de caranguejos, siris e aratus. Do outro lado do rio as crianças colheram ostras e até brincaram enquanto seus pais mergulhavam seus braços nos esconderijos alagadiços, removendo os enlameados caranguejos. A vida voltou a pulsar naqueles barracos, naquelas palafitas, naqueles seres que ficaram de andada por todo o inverno.

E assim, retornaram aos mangues todos os dias do inverno e foram ter com os caranguejos, com os aratus e com os siris. O grito horrendo não se fez mais presente nas bocas banguelas das crianças cinzentas, que sorriram pelo inverno, sorriram com o inverno, pois sabiam que a água que caía era semeadora de vidas.