Devaneio.

_Bom, já devo estar pronta.

Olhando no espelho não esperava se achar feia, sabia que era perfeita, seu cabelo com o corte moderno, seu peso perfeito, sua cintura bem talhada, tudo como a moda ditava. Tinha a impressão de ser toda correta, olhando seu corpo, tinha vontade de ser gorda, achava que deveria ser macio ter o corpo rechonchudo, mas logo afastava este pensamento, não se permitia nesse desejo, pois todas queriam ter seu corpo, seria uma blasfema querer remar contra a corrente.

_Falta uma bolsa.

_Qual?

_Essa está ótima.

Sabia que ninguém olharia para bolsa, nem mesmo as outras mulheres, era muito bonita para que pudessem desviar a atenção.

Enquanto caminhava sentia o vento entrar por seu vestido, sentia-se possuída, como se fizesse parte de toda natureza.

No ponto de ônibus a fila estava grande, mas não se chateou, gostava de filas, era um tempo em que tinha a possibilidade de analisar as pessoas, e fazia isso sem nenhum constrangimento, como se fosse um direito seu avaliar todos aqueles corpos, analisava com uma minuciosidade, encantada por cada diferença.

Desde que saiu de casa uma música não saia de sua cabeça, quando tentava cantarolar a letra não saía pela sua boca, mas a música era completa em sua cabeça e lhe dava uma sensação de muita paz.

Sentada no ônibus, sabia que aquela uma hora de viagem poderia mudar a sua vida, sabia que podia porque foi sempre assim, bastava estar só para que sua mente voassem além de todas as fronteiras, voava para lugares proibidos a qualquer outro, à ela mesma.

Sentara próximo a um rapaz, devia ter no máximo dezoito anos, um garoto, ela com seus vinte e seis anos e toda a sua beleza, despertava no rapaz o desejo que toda bela mulher desperta. Ela, por ele, sentiu saudade, saudade de um tempo que podia se apaixonar por garotos daquela idade, naquele tempo ela podia se apaixonar, coisa que hoje parece estar adormecido. Seu vestido curto deixava mostrar as suas pernas, não se preocupou em tampá-las, o garoto tentava disfarçar que estava olhando.

Reparou que a música de sua cabeça mudou, entrou uma música de igreja, das missas que sua mãe assistia pela televisão.

“...é morrendo que se vive...” e pensar que pode ser por uma laranja ou por um amém.

Há muito tempo ela sentia que não tinha mais sonhos, se perderam nos seus objetivos, que por si, se perderam pelos dias, só sabia das perguntas todas sem respostas.

_Se não tivesse sido uma brisa contrária ao vento não saberia o que é voar, não saberia que a ordem pode ser mantida por um estado de desordem onde o que se busca pode ser a próxima coisa a ser encontrada.

Sentiu um calor que veio do corpo do garoto, calor humano, um calor sexual, que se misturava com o calor do sol que entrava pela janela por um movimento brusco e contínuo, distraindo seu pensamento e elevando-o para um devaneio profundo.

_Não ter sexo...

_Ser livre...

_Descobrir um estado onde o ser ultrapassa a pele, sentir o sangue na boca, sem dor, sentir esse sabor com degustação, sentir esse sal de forma limpa. Voar, sentir um vento fresco que roça nas dobras de seu corpo. A boca seca, aquela sede que precede o primeiro gole d’água, não respirar, viver numa constante concentração.

_Acreditei que tinha um sonho e esperei um milagre, só assim teria certeza de que estava sonhando certo, o milagre não veio, tive que seguir a vida, sem nenhuma forma de magia especial, acordando, andando, respirando...

_Se eu fosse invisível andaria nua, olharia nos olhos das pessoas e buscaria seus sonhos, iria viver muitos milagres, os menores, porque não suportaria os grandes, iria beijar cada pessoa, sentir seus gostos, o sabor de cada sonho, assim como quem toma sorvete, experimentando cada gosto.

_”... é morrendo que se vive...”

_Personalidade.

_Se pode ser o que se deve ser?

_Abstrair de tudo que é material abrirá uma percepção para o que se cabe ao espírito.

_Manter uma personalidade é fechar as portas para o desenvolvimento? Manterei-me pronta para o conhecimento e não poderei aprender.

_Mas é a personalidade que mantém o sonho.

_Sempre vivi do meu sonho, mesmo que não tenha buscado, já preferi morrer se não fosse para viver um sonho. E se eu não tivesse personalidade? Desistirei do meu sonho para viver aquilo que ele quer que eu viva?

_Mas isso é fé ou conformismo?

_ E se o que for acontecendo não for para ser vivido e sim um obstáculo para uma possível vitória?

_Para vencer é preciso lutar, se não há luta não há vitória, mas com quem estarei lutando?

_Será que existe uma dosagem?

“... é morrendo que se vive...” A vida carne é toda de matéria. Se eu morrer de carne, estarei livre para viver de espírito. Não estou pensando em me matar, é estranho dizer isso, porque na verdade pensei, mas acho que foi uma sensação verbal.

_Jardim Alvorada!!!!

_Meu ponto, tchau garoto.

_Tchau.

Cobalto
Enviado por Cobalto em 04/07/2005
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