Como em uma fábula de Hans Christian Andersen...

Desde o tempo em que ainda vestia calças curtas, Frederico não conseguia pegar no sono sem o inseparável "radinho de pilhas".

Todas as noites, ano após ano, Frederico viajava nas ondas do rádio até ser acordado pelos noticiários matutinos, que, invariavelmente, iam ao ar muito antes dos pássaros anunciarem o alvorecer, e dos primeiros sinais de claridade surgirem no horizonte distante.

E ainda hoje, em plena era digital, em que as novidades tecnológicas se multiplicam; MP(s), IPods, Smart Phones, Pen drives, entre outras, Frederico não vai para a cama sem o seu “velho e fiel companheiro” AM e FM made in Taiwan (1).

E entre uma e outra notícia do "Jornal da Manhã", Letícia, a moça do tempo, informa ter sido aquela a madrugada de temperatura mais baixa dos últimos dez anos na região sudeste do país, e dá como certa a presença de cúmulos-nimbos na atmosfera e chuvas de fraca intensidade no decorrer do período.

Letícia fala das “zonas de convergência” formadas no Atlântico Sul, e alerta sobre uma nova frente fria vinda da Patagônia, que faria com que os “termômetros despencassem” de vez.

O dia prenunciava-se nublado com raras e tímidas aberturas de sol aqui e acolá. A máxima não deveria passar dos nove graus centígrados. Com a costumeira informalidade, Leticia aconselha aos ouvintes a retirarem dos armários, capas, pulôveres, luvas e cachecóis.

Lá do céu, o repórter aéreo, a bordo de um helicóptero amarelo, orienta motoristas e motociclistas, recomenda atenção aos pedestres, relata que alguns acidentes, ocorridos nas primeiras horas da manhã, bloqueiam as principais avenidas da cidade, e provocam recorde de lentidão para o horário. Paciência e precaução são as palavras de ordem...

Frederico tenta retardar ao máximo a realidade de mais uma segunda-feira na vida. Conta mentalmente até dez, depois até vinte, e, por último, Frederico conta trinta soldadinhos de chumbo.

Ao seu lado, Beatriz parece sonhar.

(...) Talvez esteja vivendo a sua noite de princesa, e, como em uma fábula de Hans Christian Andersen, passeie por bosques encantados, ao som de cachoeiras espumantes e corredeiras de águas cristalinas, ou,

(...) quem sabe, sob a luz do luar, caminhe Beatriz por trilhas mágicas à procura daquela caixinha de surpresas e de seus bem cuidados sapatinhos vermelhos.

Antes de beijá-la, como era do seu feitio, Frederico pondera.

(...) E se ela estiver mesmo a sonhar!?

Que direito tinha Frederico de decretar um fim àquela onírica jornada !? Frederico hesita, mas logo conclui

(...) melhor deixá-la seguir em frente, não interromper o seu caminhar, talvez a fonte dos amores esteja logo adiante.

Feito “dragão da independência”, Frederico volta a observá-la, cuidando para que nenhum lobisomem se aproxime, e ela possa chegar sã e salva ao amanhã... Ele, então, ajeita-lhe o cobertor sobre o corpo adormecido, e logo vê Beatriz reagir com breves e pontuais sorrisos de Monalisa...

Ameaça passar-lhe a mão nos cabelos sonolentos e desalinhados

(...) melhor não; se o fizesse, fatalmente a acordaria e, além do mais, aos olhos de Frederico, Beatriz nunca dormira tão serena, tão em paz com o seu travesseiro de linho azul e branco.

Com toda a cautela, para que os ruídos do velho transistor não a assustem, Frederico diminui o volume do radinho, e tenta, em vão, retomar o sono.

Não consegue. Como se pisasse em nuvens de algodão, Frederico, agora, caminha pelo quarto, aproxima-se da janela, afasta a cortina... Lá estava o dia, acinzentado e frio, tal qual Letícia previra...

Já diante de um obsoleto Windows XP, versão 2003, Frederico abre e fecha janelas virtuais, depara-se com jornais digitais.

A tela é logo ocupada por semideuses midiáticos, desastres ambientais, escândalos financeiros, avanços tecnológicos, recordes olímpicos e mundiais. Tudo parecia igual a ontem e anteontem, não fosse aquele, o dia trinta de julho de 2009.

Uma manchete de primeira página faz com que Frederico, num piscar de olhos, vá parar no pré-analógico ano de 1969.

(sic) “Faz quarenta anos.”

A lua, enfim, também era dos astronautas...

Frederico, então, minimiza o “jornal pontocom”, abre o programa Word, e, quando ia clicar no ícone da pastinha amarela, entre a folhinha branca e a telinha azul, um profundo suspiro rompe o silêncio da casa, invade a irrepreensível quietude da manhã.

Beatriz acabara de despertar...

Sem perder tempo, Frederico desliza o mouse pelo céu azul da “almofada”, tangencia montanhas, vales e enseadas, dribla pipas, parapentes e zepelins, posiciona o cursor novamente na barra superior, salva tudo que devia ser salvo, e, como se o paraíso fosse logo ali, corre escada acima para afagá-la e dar-lhe aquele beijo de bom dia...

Sob o travesseiro, ao lado de Beatriz, o "radinho de pilhas" ainda toca uma canção do século vinte,

“You’re the sunshine of my life...” (2)

FIM

Conto de Zizifraga

Outubro de 2009

Notas:

(*) (1805-1875) Autor dinamarquês de vários contos de fadas, pelos quais tornou-se mundialmente conhecido. Entre eles destacam-se, O Patinho Feio; A Caixinha de Surpresas; O Soldadinho de Chumbo; Os Sapatinhos Vermelhos; e muitos outros. As suas histórias visavam a passar padrões de comportamento à sociedade da época. Caracterizavam-se por entender a mente das crianças; e seus personagens, embora vivessem em um mundo imaginário, estavam sempre sujeitos às emoções da vida real.

(1) Ilha montanhosa, de vegetação densa a leste, localizada na costa sudeste da China. Antes, denominada Formosa pelos navegadores portugueses. A partir dos anos 60, Taiwan passa por um período de sólido crescimento econômico, notadamente no setor industrial. Um dos “tigres asiáticos”, Taiwan, desde 1949, reivindica independência da República Popular da China.

(2) Composição musical de Steve Wonder. (Trad. ing.) Você é a luz da minha vida...

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 16/07/2011
Reeditado em 06/09/2012
Código do texto: T3099497
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