A felicidade morava ao lado...

Depois de consultar mapas e estatísticas, de correr os olhos por páginas coloridas, de atravessar rios, mares e cordilheiras, Feliciano Boaventura cada vez mais se convencia de que a felicidade morava ao lado... talvez um pouco mais ao norte, quem sabe mais ao sul, mas, sem dúvida, dentro do seu amado país.

(...) Pra quê, então, arriscar-se no inóspito deserto do Arizona, ou nas águas revoltas do Golfo do México !? (...) Pra quê tentar burlar os radares de última geração, os sempre atentos holofotes, que varrem o céu intimidando estrelas e luas cheias!? Pra quê tentar despistar a guarda costeira, a da fronteira, os temíveis rottweilers, bulldogs e pitbulls!?

(...) Pra quê !? (...) Pra quê !? Não. Definitivamente, não valeria a pena.

E assim, naquele longínquo e quente janeiro de 1982, a bordo do ônibus das vinte e duas e cinquenta e cinco, Feliciano deixa para trás a bucólica e aprazível Olhos D’água, ali, nas proximidades de Governador Valadares, estado das Minas Gerais, para tentar a sorte no caldeirão de múltiplos sotaques, na babel de todas as epidermes, sabores e folclores...

Ao longe, uma linha de concreto no horizonte causa-lhe um misto de angústia, perplexidade e esperança. Os primeiros raios de sol do novo dia fazem sombras no quase silencioso corredor, dissolvem minúsculas gotas de orvalho, que, lentamente, escorrem pela espessa e intransponível janela formando assimétricos caminhos e indecifráveis figuras geométricas...

Feliciano esfrega os olhos, acomoda-se na poltrona, afasta a cortina, e, tenta, em vão, medir de cima abaixo o mar de prédios à sua volta.

(...) Talvez valesse a pena uma oração a Nosso Senhor do Bonfim, antes de pisar aquele solo, que, a partir de então, sustentaria os seus passos e sonhos de migrante.

Feliciano Boaventura chega a São Paulo às sete e quarenta da manhã do dia 11 de janeiro de 1982, um dia que passaria para a história da sua vida.

Em um primeiro momento, assusta-se com o tresloucado tumulto, que, até então, só lhe fora dado saber através de filmes, documentários, e noticiários televisivos.

Logo, vem-lhe a saudade do cheiro de terra molhada, da grama aparada, dos mangueirais e das manhãs que, ainda há poucas horas, deixara para trás, naquele diminuto e quase imperceptível ponto do mapa.

O dinheiro era pouco. Era preciso agir com rapidez. Em questão de horas, Feliciano hospeda-se em uma pensão nas imediações da Estação Rodoviária Júlio Prestes. Ali, ele fica por nove semanas e meia, até que um dia, já mais adaptado às esquisitices da metrópole, passa a dividir uma casinha de dois quartos, sala cozinha e banheiro com mais quatro aventureiros. Todos tinham à época pouco mais de vinte anos. Conheceram-se no balcão do Bar e Lanches “Arcos da Alvorada”, onde, diariamente, quase sempre à mesma hora, tomavam o café da manhã, invariavelmente, “um pingado” e um pão com manteiga na chapa.

Depois iam à luta, e que luta!!! Até que outro amanhã os fizesse reencontrar...

Dois deles vieram da Paraíba; um de Campina Grande, e o outro, da capital, João Pessoa.

O pernambucano era de Garanhuns; o maranhense de Alcântara, aquela cidade de onde o Brasil lança ao espaço os seus foguetes.

Moravam ali, na região do Bom Retiro, reduto de migrantes e imigrantes, estes, notadamente latino-americanos, mas já se podia constatar a presença dos primeiros asiáticos, sobretudo, chineses, vietnamitas e coreanos.

Como todo o bom mineiro, Feliciano era um sujeito prevenido. Por mais azul e claro que estivesse o dia, por mais que o céu sugerisse uma ensolarada tela pós-impressionista, ele jamais abria mão da capa impermeável, e do velho guarda-chuva de lona, herança do querido e saudoso avô materno, Bonifácio Boaventura, com quem aprendera as primeiras lições de boas maneiras, fraternidade e cidadania.

Um dos paraibanos, Marcelo Abrantes, 21 anos, viera para tentar a sorte como jogador de futebol profissional, e o outro, Miroslave Paixão, era habilidoso com trenas, serrotes e martelos. Pretendia abrir uma empresa de serviços gerais no ramo da engenharia civil, que, à época, ainda andava a passos largos, não tão largos como na década de setenta, que vivera o milagre da multiplicação dos prédios, pontes e minhocões, mas, ainda assim, valia a pena arriscar-se pelos já cimentados caminhos da construção civil.

O maranhense, Divino Ribamar adorava o sol, o mar, os ritmos e as cores da Jamaica. Tinha bom ouvido para música e, de quando em vez, preenchia o silêncio da vida a dedilhar uma velha e solidária viola. Em tom de brincadeira, Divino dizia que um dia ainda iria ganhar o Grammy Latino, o “Oscar da Música Popular”. Otimista como poucos, passava os dias a cantarolar (sic) Everything’s gonna be all right(1).

O pernambucano, desde criança, sonhava em ser Presidente da República... Imaginem só... Presidente da República, e não havia quem o demovesse daquela ideia. Chamava-se Ruiz Evilácio da Silva. Tinha mais quatro irmãos, e, como dita a tradição nordestina, todos começavam com a letra “erre”.

Logo que chegou a São Paulo, Ruiz Evilácio foi trabalhar com o primo, Romildo, em uma oficina mecânica no bairro do Tatuapé, também reduto de imigrantes espanhóis e italianos. Conseguiu uma bolsa de estudos no SENAI(2). Formou-se Torneiro Mecânico, profissão promissora que logo lhe garantiria alçar voos mais altos na já consolidada indústria automobilística do ABC(3) paulista.

Jovem e cheio de planos para si e para o país, Ruiz Evilácio logo se tornou porta-voz dos anseios dos menos favorecidos. Não raro via-se Ruiz Evilácio de macacão e boné, sobre o caminhão da central sindical a discursar para seus pares, notadamente em épocas de dissídio da categoria.

Ruiz Evilácio também adorava futebol. Não demorou muito, e lá estava ele, na geral do Pacaembu, torcendo pelo seu querido Sport Club Corinthians Paulista. Foi amor à primeira vista.

Já Feliciano Boaventura fazia de tudo um pouco; trabalhou em feiras-livres, em parques de diversões, e, com o supletivo concluído, arrumou um trabalho temporário de serviços gerais em uma recém-inaugurada farmácia de manipulação.

Era à noite que, na escola, o bom Feliciano encontrava tempo para extrair dos livros e apostilas as lições que os mestres das ruas, dos templos e dos escritórios não lhe podiam ensinar. Feliciano sempre se encantou com os mistérios da vida; qualquer forma de vida; a dos seres humanos, dos animais e das plantas... e, ainda que timidamente, fazia planos para, assim que as coisas melhorassem, estudar Farmácia, Química ou Biologia...

Era 1984. Já mais adaptado aos desatinos da grande cidade, Feliciano ouvira falar de uma indústria farmacêutica em expansão que, à época, contava com algumas dezenas de abnegados funcionários. Levantou-se antes mesmo do sol raiar. Vestiu a sua melhor roupa, e com toda a esperança que cabia nos bolsos daquele terno de linho azul, saiu determinado como até então nunca se vira.

E a intuição não o trairia. Feliciano fora contratado para trabalhar no Setor Controle de Qualidade da FVM Alquimia S/A(4), setor estratégico, de importância vital, o derradeiro passo na linha de produção.

Sempre querendo aprender, e agora, mais motivado do que nunca, Feliciano Boaventura estudava sem parar;

(sic)“O saber não ocupa lugar.” Era o que Feliciano costumava dizer, isto, quando não varava a noite até adormecer debruçado sobre aqueles complicados tratados de genética e bioquímica.

Logo que chegou à empresa, Feliciano encantou-se com os olhos castanhos amendoados da bela recepcionista, Rosalinda. E havia uma história de amor escrita nas estrelas... Descobriram-se conterrâneos. Rosalinda do Amor Perfeito nascera em Três Corações. Namoraram, noivaram e logo se casaram. Tudo no espaço de seis meses.

Todos diziam que Feliciano Boaventura e Rosalinda do Amor Perfeito haviam nascido um para o outro.

Feliciano tinha algo de diferente, e não eram apenas os espessos óculos verde- garrafa que lhe corrigiam a miopia acentuada, mas sim, o olhar misterioso, perdido, sem rumo... como se a tentar descobrir o que havia nos cantos aparentemente vazios do edifício.

Feliciano jamais saberá que foi personagem de uma página em branco, que virou titulo e arquivo de uma pasta do programa Microsoft Word, e que, hoje, depois da rotina de tantos dias, meses e anos, um “escritor de brochuras” escreve sobre ele, atirando letras em negrito na tela de um já obsoleto computador.

(...) Vai ver Feliciano não se lembra mais daqueles dias úteis de 1986, do prestativo Etelvino da Contabilidade, ou, da quase sempre bem humorada Dona Geralda, e do seu tão aguardado café das três.

(...) Por onde andará Feliciano; será que ainda vive atrás daquelas espessas lentes de vidro, ou, já teria aderido às modernas lentes de contato gelatinosas!? Teria feito mestrado, doutorado!? (...) Quem sabe esteja lecionando na UFMG(5).

Às vezes, nas entrelinhas, Feliciano deixava escapar esses anseios acadêmicos. Ou, estaria agora trabalhando em um posto-chave da ANVISA(6)!? Não raro, via-se Feliciano a recortar editais e a fazer discretos comentários sobre concursos públicos. Onde quer que esteja, a verdade é que, no fundo, no fundo, Feliciano Boaventura só pretendia fazer jus ao nome com que seu bom pai, Jovino Fortunato Boaventura, um dia o batizara...

Um dos paraibanos, Marcelo Abrantes, tornou-se jogador de futebol profissional; era um artilheiro nato. Depois de tanto “bater na trave”, participando de peneiras nos grandes clubes da capital, acabou assinando um contrato milionário com uma equipe européia, o Hertha Berlim, e, pelo visto, tão cedo não retorna ao Brasil. Dizem até que Marcelo já tem um filhinho nascido em solo alemão, e que o menino teria puxado ao pai; aos oito anos de idade, já desperta interesse das “divisões de base” de algumas agremiações do velho continente...

Miroslave Paixão abriu uma pequena empreiteira na zona norte da cidade. Começou construindo “puxadinhos”, mas, hoje, no 4º. ano de engenharia civil, coordena uma competente equipe de funcionários. À entrada do seu estabelecimento, uma silenciosa placa, com todas as letras, anuncia :

Empreiteira Miroslave Paixão

“Aqui constroem-se sonhos de tijolos, cimento e alvenaria”

Divino Ribamar, o maranhense, casou-se com a doce Maria Alice, crooner de uma “banda gospel”. A última vez que deles se ouviu falar, parece que estavam morando em Kingston, a capital da Jamaica.

O pernambucano, Ruiz Hevilácio da Silva, aquele que tanto sonhava em ser Presidente da República, quem diria... ele quase chegou lá. Ruiz Evilácio há muito tempo abandonara definitivamente a metalurgia para ingressar no ramo de serviços de hotelaria e similares. Casou-se, descasou-se, tornou a casar-se, e, hoje, mora confortavelmente com mulher, filhos, dama de companhia, motorista e mordomo em uma mansão às margens do Lago Paranoá, na asa norte de Brasília, de onde, a ferro e fogo, administra uma enorme e sofisticada rede de pizzarias, a maior do planalto central do país...

FIM

Conto de Zizifraga

Maio de 2010

Notas:

(1) ) (Trad.) Tudo vai dar certo.

(2) Serviço Nacional da Indústria.

(3 Referência aos municípios de Santo André, São Bernardo e São Caetano, estado de São Paulo.

(4) Faça Você Mesmo Alquimia S/A

(5) Universidade Federal de Minas Gerais.

(6) Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 18/07/2011
Reeditado em 13/01/2012
Código do texto: T3102371
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.