A Matemática já não era um bicho de sete cabeças...

Marquinhos, que sempre preferiu as letras aos números, sabia que, de agora em diante, teria um grande desafio pela frente; precisava dominar os números com a mesma habilidade com que dominava as letras.

Com as letras, Marquinhos criava personagens, descrevia lugares, inventava enredos, contava histórias, até poesia Marquinhos fazia...

Já com os números... bem... os números pareciam excessivamente frios e pragmáticos para os devaneios literários de Marquinhos. Aprender a tabuada foi um sofrimento. Que o diga Dona Urânia, a sua dedicada mãe, que, incansável e determinada, passava tardes e mais tardes tentando fazê-lo memorizar todas aquelas multiplicações.

“Marquinhos, quanto é 9x 9”

“81, mamãe.”

“Muito bem, Marquinhos. É isso mesmo”

“E 8x 8, Marquinhos ?”

“64, mamãe.”

“E 7X7 ?”

“49, mamãe ?”

“Muito bem, Marquinhos, parabéns!!!”

E para alegria de toda a família, valeu, e como valeu a dedicação de Dona Urânia, pois, Marquinhos, poderia, finalmente, com todas as letras, dizer que já sabia a tabuada de cor e salteado.

Mas nem tudo eram flores, pois, Marquinhos também tinha plena consciência de que superara apenas a primeira de muitas etapas na longa estrada do saber.

Agora, era chegada a hora da regra de três, das raízes quadradas, das cúbicas, dos “chises”, dos “ipsilons”, das equações de 1º. e 2º. graus. E, como se tudo isso não bastasse, ainda viriam os temíveis sistemas e os quase incompreensíveis teoremas.

(...) Como é infinita e surpreendente essa Matemática, pensava Marquinhos entre uma e outra lição...

“Seo” Zózimo, o pai, que sempre foi paradigma de otimismo e perseverança, a poucos dias do exame, chamou-o, e propôs-lhe um novo desafio:

“Filho, todos nós sabemos da importância das letras, o quanto elas nos fascinam e nos fazem “viajar”, mas o que seria delas sem os números!? Como contarias as sílabas dos teus versos, os versos dos teus sonetos, e como atribuirias idade aos personagens, dimensões às distâncias, valores às coisas, etecetera e tal !?”

Marquinhos, àquela altura, já nem piscava, como se, além de ouvir, também tentasse ver cada sílaba das palavras proferidas pelo pai.

E com seu jeito sereno, porém, decidido, “Seo” Zózimo pôs um ponto final na curiosidade do pequeno Marquinhos.

“Filho, se tirares boas notas em Matemática, a mamãe e eu, vamos dar-te, como presente de Natal, aquela bicicleta de liga leve, com 10 marchas, buzina, bagageiro e espelhinhos redondos.”

“Puxa, que legal, papai, mas não sei se vou conseguir, pois quanto mais estudo, menos entendo essa cruel Matemática.”

“Claro que tu vais conseguir. Querer é poder, filho.”

Marquinhos fecha os olhos, e, por breves segundos deixa-se levar pelos “pedais da imaginação”

(...) Parece deliciar-se com o vento a bater-lhe no rosto, a desalinhar-lhe os cabelos, a quase fazê-lo voar.

(...) Quem sabe Marquinhos em seu breve “devaneio ciclístico” tenha chegado a Tóquio, a Paris, a Dubai, a Bruxelas e Roterdã. (...) Quem sabe.

(...) Já pensou, então, quando Izadora me vir de bicicleta, já pensou!?

Izadora costumava tirar as melhores notas da classe, mas, não era isso que atraia a atenção de Marquinhos, e sim, o jeitinho meigo e o olhar distante, como se estivesse sempre a tentar descobrir o que se passava para além daqueles “óclinhos” redondos... E, aos olhos de Marquinhos, Izadora ficava ainda mais bonita de meias três-quartos, gravatinha azul e boina marrom...

Marquinhos faria qualquer coisa para conquistar o amor de Izadora, até mesmo estudar Matemática por horas a fio, ainda que pouco, ou quase nada entendesse...

Motivado como nunca se vira, Marquinhos “mergulha de cabeça” naquele mar de números e incógnitas, e, dia após dia, o seu trauma com a Matemática parece diminuir...

E não é que seu esforço valera a pena. Marquinhos quase tira dez no vestibulinho. Não fosse por causa de uma “vírgulazinha” na “questão quatro”...

(...) Mas tudo bem; nove e meio já foi uma grande vitória... Marquinhos jamais conseguira uma nota tão alta em Matemática.

Até que, finalmente, é chegado o grande dia. E aquela radiante manhã de dezembro passaria para a historia da sua vida. Era o dia da tão merecida premiação. Dona Urânia e Marquinhos iriam à loja de brinquedos para comprar o tal “objeto do desejo”, o terceiro veículo na vida de Marquinhos.

O primeiro fora um par de patins que Marquinhos ganhara quando ainda tinha seis anos de idade. Com ele, Marquinhos descobriu os segredos do equilíbrio; aprendeu a cair, a sacudir a poeira e a levantar-se... O segundo, já com nove anos, foi um carrinho de rolimã. E, no “cockpit” do seu “bólido” de tábuas e rodinhas, Marquinhos só queria saber de, a toda a velocidade, descer as íngremes, seletivas e imprevisíveis alamedas do “Planalto Paulista(1)”.

(sic) “Que perigo, Marquinhos!!!” Era o que Dona Urânia sempre dizia.

Como já era de se esperar, Marquinhos rasgou algumas calças, gastou muitas solas de sapatos, teve uma ou outra escoriação, mas nada de mais sério. Hoje, Marquinhos sabe muito bem que, apesar dos contratempos e das broncas de Dona Urânia, tudo aquilo lhe valera como um oportuno e bem vindo aprendizado.

O que realmente importava é que, agora, Marquinhos, poderia sair por aí pedalando a sua bicicleta “zerinho, zerinho”, fruto de uma conquista... digamos, intelectual.

Marquinhos recuperara de vez a autoestima, e, o mais importante, parecia ter, definitivamente, superado o trauma que a Matemática sempre lhe causara...

E naquela memorável manhã de dezembro, “Seo” Zózimo, tomado por uma indisfarçável sensação de alívio e bem estar, deixou Da. Urânia e Marquinhos no ponto de ônibus e foi trabalhar com a convicção de que, lá pelo meio-dia e meia, voltariam os quatro para casa.

Os quatro !?

Sim, os quatro: “Seo” Zózimo, Dona Urânia, Marquinhos e a bicicleta...

Como a maioria dos guris, Marquinhos gostava de sentar-se à janela do coletivo, de onde, atentamente, quase sem piscar, acompanhava o movimento das ruas e calçadas; os semáforos trocando de cores, o ir e vir dos automóveis, das motocicletas, e dos apressados transeuntes, que, “garimpando” espaços nas faixas de pedestres, corriam de um lado para o outro, tentando aproveitar o sinal que parecia sempre prestes a fechar...

Durante o caminho, Marquinhos também avistou muitas crianças pelos cruzamentos da cidade. Andavam em grupos, aproximavam-se dos automóveis. Algumas faziam malabarismos, davam piruetas, simulavam passos de capoeira. Outras engoliam fogo, cuspiam labaredas, provocavam clarões que, de tão altos, até pareciam intimidar a luz do sol e o calor daquele tórrido e sufocante verão....

Havia ainda as que simplesmente se aproximavam das janelas dos automóveis e esticavam a mão à espera de uma moedinha qualquer; outras nada pediam, pareciam contentar-se com o vidro aberto, um sorriso, uma palavra, ou qualquer gesto acolhedor...

O sinal, então, muda para o amarelo, e, logo a seguir para o verde; os automóveis partem, o ônibus segue o seu caminho, e a vida continua até o próximo semáforo, onde a mesma cena invariavelmente se repete...

“Olha mamãe, aqueles crianças lá fora. Parecem não ter ninguém para olhar por elas. Acho que nem mesmo Deus sabe que elas existem...”

“Não digas isso, filho. Claro que sabe, Deus sabe tudo.”

“Será, mamãe!? Acho que se Ele soubesse, elas não estariam ali, assim, daquele jeito, ao Deus dará...”

Por um momento, ouve-se apenas o pulsar constante do motor do coletivo em marcha lenta...

(...pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó pó...)

A nave sobre rodas, então, segue o seu caminho pelas estreitas e congestionadas ruas da cidade, até que, inesperada e repentinamente Marquinhos volta-se para Dona Urânia:

“Mãe, quanto custa a bicicleta que eu vou ganhar?”

“Custa 280 reais, Marquinhos.”

“Sabe, mamãe, pensando bem... até que a Matemática não é tão cruel assim, pois com ela aprendi que também posso dividir felicidade...”

“Como assim, filho !?”

(Marquinhos lembra-se dos outros presentes que há poucos dias vira na loja de brinquedos.)

“Quanto custavam os carrinhos e as bonecas, mamãe?”

“10 reais cada um, filho.”

“Pois, então, mamãe... se uma bicicleta custa 280 reais e um carrinho ou uma boneca custa 10 reais, com esse mesmo dinheiro, poderíamos comprar 14 carrinhos mais 14 bonecas.”

“É isso mesmo, Marquinhos. Muito bem. E tudo isso é Matemática...”

“Então mamãe, eu ficaria bem mais feliz se vocês comprassem 14 carrinhos e 14 bonecas. Alicinha ficaria com uma boneca, e eu, com um carrinho.”

(Em tempo, Alicinha, que só agora entrou na história, era a irmã caçula de Marquinhos. Contava então com cinco anos de idade... E, para alegria de todos, assim como Marquinhos, Alicinha também era uma criança meiga e generosa...)

E prossegue Marquinhos, “Sobrariam 26. Divididos por dois, teríamos 13 carrinhos e 13 bonecas. E faríamos mais 26 crianças felizes”.

“Que gesto nobre, Marquinhos, mas tu não querias sair por aí pedalando a tua bicicleta, subir e descer ladeiras, correr o mundo, dar muitas voltas na praça!?”

“É que com a Matemática aprendi que dividir faz bem à alma... E, além do mais... de que me adianta ser feliz sozinho !?

“Meu filho, a mamãe está tão orgulhosa de ti. Se é esse o teu desejo, quem somos nós para contrariar-te. Faremos a alegria de 26 crianças.”

No dia 25 de dezembro, ainda um tanto sonolento, Marquinhos abre a janela do sobrado. O céu estava azul como nunca estivera, e, com toda a sua magia, o sol já brilhava no horizonte distante. Uma brisa amena soprava da Serra do Mar, e pairava no ar um sentimento de romantismo, fraternidade e esperança...

Como se tivesse acabado de sair de uma tela de Monet(2), Izadora, linda e graciosa, passa pedalando a sua bicicleta de cestinha, aquela mesma que ganhara no Natal do ano passado...

Marquinhos acompanha-a com os olhos até perdê-la de vista... e, sem que ninguém o ouvisse, sussurra...

(...)“Um dia, meu amor, ainda vamos correr o mundo lado a lado...”

O que Marquinhos sequer imaginava é que aquele dia havia chegado, e o mundo, bem... o mundo já estava ali, do outro lado da janela, onde sempre estivera...

Marquinhos, então, desce as escadas, e, antes mesmo de pisar o último degrau, parece não acreditar no que vê. Ele esfrega os olhos para certificar-se de que o “seu sonho” apenas começara...

Ali, no meio da sala de estar, bem diante de si, uma bicicleta vermelha, igualzinha àquela que vira na loja; dez marchas, roda de liga leve, bagageiro e dois espelhinhos redondos...

“É tua filho. Parabéns!!!”

“Puxa, papai, você acabou gastando 560 reais.”

“Vejo que para ti, Marquinhos, a Matemática já não é um bicho de sete cabeças. Mas isso, agora, é o que menos importa. O que realmente importa é que... mais do que aprender a não temer a Matemática, tu fizeste com que este teu velho pai sinta-se cada vez mais orgulhoso do filho que Deus lhe deu. Nem tanto pelo que tu sabes somar, multiplicar ou subtrair, mas, sobretudo, por tão bem saberes dividir...

Obrigado por mais esta lição de vida, querido filho...”

Dona Urânia, que a tudo assistia, sem dizer palavra, deixa escapar um sorriso e uma lágrima de incontida felicidade...

FIM

Notas:

(1) Bairro da zona sul da cidade de São Paulo.

(2) Oscar-Claude Monet – Paris, 14/11/1840 – 05/12/1926. Considerado o mais célebre dos pintores impressionistas franceses.

Conto de Zizifraga

Dezembro de 2010.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 20/07/2011
Reeditado em 08/01/2012
Código do texto: T3106847
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