ELE DEIXOU TUDO EM ORDEM

 
                                                                                           IMAGEM - Google

Já fazia certo tempo que ele tinha ideia de fazer uma faxina nos seus pertences. Aposentado, a princípio, tempo não lhe faltava. Mas, como nunca fora de ficar parado, tinha lá suas atividades aleatórias que acabavam por consumir grande parte do seu tempo livre. E sentia-se útil com isso. Pensava sempre: “cabeça vazia é a oficina do diabo”.
 
Até que em certo momento viu-se numa situação favorável. A mulher ia viajar durante uma semana e os filhos também estariam ausentes. Coisa boa. Ficaria só, somente só, como disseram os Novos Baianos em Preta Pretinha.
 
Finalmente chegou a tão esperada semana. Segunda-feira, primeiro dia da decidida faxina. Fez o café, bebericou um pouco, pensativo: por onde começar? Optou pelas roupas. Afinal, tinha tanta roupa que já nem usava mais, que acabara por transformar o guarda-roupa que dividia com a mulher num depósito abominável. Levou um dia inteiro para isso. Separou o que servia daquilo que não servia, guardou tudo de forma meticulosa, cada peça em seu devido espaço. Camisas aqui, camisetas ali, cuecas acolá e assim foi. Missão cumprida e primeira etapa vencida. Antes de ir dormir, lembrou-se de que naquele dia não havia comido e nem bebido praticamente nada. Só a xícara de café pela manhã. E isso não era bom para ele. Tomou apenas uma xícara de chá antes de ir para a cama e, cansado, conseguiu dormir o sono dos justos. Antes de pegar no sono, porém, decidiu o que iria faxinar no dia seguinte: os papéis. E como havia papéis. 
 
Segundo dia, mais uma xícara de café pela manhã e começo da faxina nos tais papéis. Como tinha trabalhado em área técnica a vida toda, possuía uma infinidade de documentos, como normas técnicas, procedimentos, catálogos e apostilas, “n” apostilas. E a tudo isso se juntava muitos, muitos livros. Pensou: “na idade em que estou e fazendo o que faço agora, não vou mais precisar de nada disso”. Nem fez uma triagem, ensacou tudo e jogou no lixo, inclusive os muitos livros. Também não se deu ao trabalho de retirar os papéis das pastas. Foi tudo para o mesmo saco. Fim de mais uma etapa. Roupas e documentos técnicos estavam faxinados. Já começava a sobrar espaço nos armários. Neste segundo dia conseguiu comer uns biscoitinhos junto com o café que vivia preparando ao longo do dia. Não tinha paciência para preparar almoço ou jantar e muito menos para sair e comer fora. Começou a sentir falta da mulher. Mais um chazinho antes de deitar e... boa noite! Deixou para decidir o que fazer no próximo dia apenas quando acordasse.
 
Terceiro dia. O indefectível café e mãos à obra. Resolveu mexer com mais papéis, agora com todas as contas que já havia pago desde que se conhecia por gente. Ele sabia não ser necessário guardar aquela papelada inútil por tanto tempo; mesmo assim agia dessa forma. As pastas ficando abarrotadas e o arquivo cada vez menor. Pensou: “é hoje”. Fez umas consultas na internet, checou umas mensagens que já havia recebido sobre o tempo de guarda de documentos e não pensou duas vezes. Foi se desfazendo de tudo aquilo que não havia necessidade de ficar acumulando como lixo. Tomou um cuidado especial com a documentação do imposto de renda. Afinal, como cidadão comum, honesto e assalariado que fora por toda a vida, sempre estaria sujeito à malha fina. Assim como toda sua família. Nesse terceiro dia, parou para o almoço. Fez lá uma gororoba qualquer, tipo assim um macarrão instantâneo e umas folhas de alface já um tanto queimadas pelo frio da geladeira. Comeu com vontade uma comida nada saudável, a não ser pela alface. Uma coca zero sem gelo foi seu acompanhamento. Continuou até o fim do dia, mas não conseguiu terminar. Foi tomar uma ducha, ver um pouco de TV e comer um biscoitinho com... café. Dormiu no sofá com a TV ligada. Quando se deu conta, estava no quarto dia da faxina.
 
Já era quinta-feira e o povo estaria de volta no sábado, menos um dos filhos que estava pelo interior e lá ficaria. Mas a mulher e o outro filho certamente chegariam no sábado à tarde. Continuou com a faxina nas contas pagas até que conseguiu terminar, já no final da tarde. Nem percebeu que o horário de almoço já havia passado. Aí, para comemorar, resolveu tomar uma dose dupla de uísque puro. Resultado: barriga vazia de comida e cheia de álcool = tonteira, mal estar e... sono. Não tomou banho. Nem os remédios (de novo).
 
Acordou na sexta-feira com uma dor de cabeça brava e com um tremendo gosto de cabo de vassoura que passeava pela sua boca, babada. Levantou e foi fazer um café bem forte. “Isso vai resolver”, pensou. Tomou o café. Não resolveu. Até parece que piorou mais. Estava muito indisposto e decidiu que naquele dia não iria fazer faxina nenhuma. Os quatro dias anteriores haviam sido altamente produtivos e os armários e arquivos já estavam com um aspecto bem melhor. Desfez-se de tudo aquilo que não mais lhe interessava. As roupas, havia doado aos funcionários do prédio. Foi descansar um pouco, pois a cabeça ainda doía. E o enjôo também não o deixava, aliado a uma forte dor de estômago. “Foi o excesso de café”, pensava ele. Deitou-se no sofá e lá ficou quieto, tentando pegar no sono.
 
Já tinha dado a faxina por terminada, pelo menos o que se propôs a fazer nesta primeira etapa. Não teria pressa de se levantar no dia seguinte. Na verdade, estava exausto, mas, ao mesmo tempo feliz, pois tinha certeza que iriam elogiá-lo pelo trabalho feito.
 
Mais uma vez dormia o sono dos justos.
 
Estava ali, deitado, sem se mexer, respirando suavemente.
 
Missão cumprida. Arrumou tudo o que tinha para arrumar e, no seu modo de ver, podia descansar, pois deixara tudo em ordem.
 
Considerava-se quite com a vida, espiritual e material. E isso era bom.
 
Dormia tranquilo, tão tranquilo que nem respirava mais.
 
Nem ficou sabendo se o elogiaram por tudo o que fez naqueles quatro dias.
 
 
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Arnaldo Agria Huss
Enviado por Arnaldo Agria Huss em 25/07/2011
Reeditado em 17/08/2011
Código do texto: T3116727
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