Pareidolia

Apoiando a mão no pilar da garagem e empurrando, faço a rede balançar rapidamente, mas aos poucos ela vai parando, parando, até ficar imóvel. Empurro novamente e por mais alguns minutos a rede balança, pra lá e pra cá. É uma sensação boa, balançar na rede, sinto-me como uma criança sendo ninada.

Aqui é tranquilo, e nessa hora da noite, não se houve o barulho dos veículos como lá no centro da cidade, nem a gritaria das crianças brincando na rua. Só ouço baixinho o zunzum incompreensível da televisão na sala.

Olho a parede em minha frente e noto uma grande mancha. Passo por aqui no mínimo quatro vezes ao dia e ainda não tinha visto a parede desse jeito. Será que ando muito distraído? Não, deve ser a correria do dia-a-dia.

É uma mancha de bolor com cerca de três metros na horizontal e dois na vertical, há também uma parte descascando. Deve ter uma infiltração no lado do vizinho ou pode ser água que vem do telhado. Quando chove muito, como neste mês, a calha entope com folhas trazidas pelo vento, enche, e a água escorre pela parede. O frio, o calor, o vento ajudam também a causar todo este dano. No próximo sábado consertarei, mas hoje ainda é domingo e a parede ficará assim por mais uma semana.

Balanço a rede novamente; o vento sopra, passa pela grade e refresca o ambiente; arrumo-me e tomo um gole de cerveja. A mancha da parede se move em minha frente; ela tem várias cores: o verde escuro do mofo; o branco da tinta da parede, já quase amarela por causa do tempo; o cinza-claro de um bolor já seco; o negro das sombras; a cor do reboco, um marrom claro com manchas brancas provindas da cal que não foi bem misturada com a areia; e outras cores, que nem sei como descrever. É um grande quadro; emoldurado por pilares nas laterais; por uma viga do telhado, na parte de cima; e pelo piso, embaixo.

Bolhas de tinta látex estouraram aqui e ali, deixando a tinta seca com um aspecto de escamas. Algumas pontas das cascas se enrolam parecendo lasquinhas de madeira que se soltam quando se entalha um tronco de cedro.

O bolor me enfeitiça. Apesar de estar muito feio não consigo parar de olhá-lo.

Prestando mais atenção na mancha do reboco vejo um rosto desenhado. Alguém se esconde no meio do bolor! Vai aparecendo aos poucos e se fixa em minha mente. A luz que vem da sala faz com que as cascas de tinta projetem pequenas sombras para a esquerda, dando um efeito tridimensional e deixando ainda mais real o que vejo.

É um senhor de barba comprida usando um chapéu engraçado. Ele tenta se ocultar na mancha, mas seu olhar curioso o denuncia. É incrível! É Interessante!

- O senhor quer uma cervejinha? – ofereço. Ele balança a cabeça negando.

Mais abaixo neste mesmo quadro insólito vejo uma imagem que se assemelha a um cão. Um poodle, para ser mais exato. Com as patas da frente o bicho segura um osso, cujo tutano, é sugado por uma boca enorme. É um osso comprido que sobe obliquamente a parede, vai afinando até ficar em curva, e uma mancha em formato de mão se apóia nele. As patas traseiras do animal estão desfiguradas. Ele é todo fofo.

Tomo o último gole da lata e chamo minha mulher.

- Estou vendo o filme, espere entrar o comercial, - diz ela lá na sala.

- Aproveita e me traz outra latinha.

É a mão do senhor de barba que segura uma bengala, que se transforma em um grande osso que o cão suga, concluo.

- O que é tão importante? Que eu lhe traga uma cerveja?

- Não! Está vendo aquela mancha na parede?

- Qual? – me pergunta desinteressada.

- Aquela na parede! - aponto.

- Aquele descascado?

- É! Desde quando está assim?

- Já faz muito tempo. Eu lavei para limpar, mas não saiu.

- Você lavou? Não pode. Destrói a parede toda.

- O filme começou. Tchau! – fugiu para sala. Lavou o bolor e ele aumentou.

A cerveja está geladinha. Tomo. O homem do quadro não bebe. Usa um chapéu de aba larga e segura sua bengala de osso. O cão tem um rabo comprido, não é rabo de poodle, é um rabo de raposa, longo, pomposo e desproporcional ao tamanho do cão. O animal balança sua cauda de um lado para o outro. É muito legal ficar ali observando, no entanto não me conformo com a destruição da parede. Vai ficar uma nota preta para arrumar tudo isso. Terei que comprar areia, cal, tinta... Que droga!

- O senhor e seu cachorro estão estragando a minha parede! - o homem ri.

Não aguento mais ver a parede toda encardida. Resolvo me virar na rede. Ponho o travesseiro do outro lado, me viro, tomo o resto da cerveja, balaço a rede novamente e fico ali olhando para a outra parede da garagem, que também tem um bolor enorme.

Fecho os olhos. Aperto-os. Abro-os e vejo que tudo ainda esta lá. Outro quadro se move em minha frente. Tem vida!

Fixo o olhar na mancha e vejo uma criança. É um menino sem camisa, com um calção esverdeado, cor de mofo. Parece que ele está correndo atrás de uma bola. Um braço jogado para trás, o outro para frente, as pernas abertas também para lados opostos, uma encurvada na altura do joelho, a outra esticada, com certeza ele corre. A bola não é redonda, é oval ou talvez esteja murcha. O olho do garoto é um ponto negro, é uma cabeça de prego, a boca fica aberta, ele grita, mas o som não sai. Tem canelinhas secas, peito raquítico, cabeçorra redonda, um nariz comprido e fino. Será o Pinóquio?

- Moleque! Moleque!

Ele corre no espaço, não há chão. Chuta e corre, chuta e corre. Vadio.

No mundo de bolor um sol brilha no céu. Aqui a noite é estrelada. Tenho vontade de entrar no quadro, chutar a bola do garoto e quebrar uma vidraça qualquer.

O velho de barbas e o cão, do outro lado da garagem, ficam vendo o menino brincar.

- Será que todo mundo resolveu vir ficar nas minhas paredes? Digo.

A cerveja acaba. Bebi bastante hoje. O sono chega. Balanço-me na rede novamente. O menino corre atrás da bola... Corre... Corre...

Não alcança!

Valdecir Ravazi
Enviado por Valdecir Ravazi em 25/07/2011
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