2.229 Palavras ou Fluxo de Consciência do Carlo

Eram dez e cinco da manhã de uma terça feira, mês de junho quando o meu celular tocou.

Ou melhor. O aviso de mensagens do mesmo tocou. Deveria ser aquelas merdas que a sua operadora te manda – no melhor estilo “Você Sabia Que?” – e que acabam consumindo todos os seus créditos. Para minha decepção era um recado do contínuo daquele pasquim indecente que odeio e teimo em continuar por pura falta do que fazer. O que dizia era bem sucinto: “Carlo. O jornal está um pandemônio. Sei que é seu banco de horas, mas venha já. Valeu”. ““Eddie”.” Bom e velho Eddie, pensei, o único ser humano que se importa com aquela merda de jornal além da abnegada da Leda”. O que levava aquele garoto de 20 anos transformar em possíveis pessoas completamente intratáveis e impossíveis acatando suas ordens absurdas nos mínimo detalhes e tornando todos esses malditos possíveis? Talvez essa fosse uma questão filosófica bem interessante para ser debatida, porém ele Eddie era um bom guri e na verdadeira acepção da palavra. O que o levava agir como agia? Dinheiro, com absoluta certeza, não era pois tudo mundo lá ganhava uma merreca. Altruísmo? Humildade? Gana da Vencer? Berço? Herança Genética ou Cultural? Vai pensando você aí só para ver se não ganha inteiramente grátis uma cela acolchoada num hospital psiquiátrico com direito a quantas doses de torazine o seu “terapeuta” resolver ministrar. Que dúvida.

Ele era um menino legal e já tinha quebrado um ou dois galhos para mim e por ele eu tinha consideração e respeito. Pelo Eddie e por outro redator fodido como eu, o João Mendes. Mas esse aí deixa pra outra vez. Esse é chapa. Pelo menos eu quero que seja. Esse e mais um ou dois. O resto é resto. Eu já estava relativamente vestido e esperto lendo Nic Sheff e meio que apenas esparramado pelo meu apartamento. Pelo menos já tinha tomado banho e um copo de suco de tomate. Tinha bebido pouco na noite anterior e me recolhido cedo. Apenas umas três cervejas no bar Eslavo e umas doses de vodca. Nada grande ou espetacular. Pelo menos para mim. Iria fazer uma semana que eu tinha ido assistir a aquele show do suprassumo do thrash internacional e ecos ainda reverberavam na minha mente. Tinha sido de foder aquele negócio. Pena que essa nova geração vem com um parafuso a menos na cabeça e eles acabam me irritando por seus maneirismos decorados e suas gírias mais antiquadas que se possa conceber. Se acham todos descolados e alternativos mas as competição é a mesma de qualquer outro lugar. Um não vive sem querer anular e outro e a energia é desperdiçada em nada construtivo. Eu realmente tinha convidado a Layla para ir comigo e estava disposto a pagar o seu ingresso, porém uma tarde que ela estava em minha casa coloquei o som para ela ouvir no meu computador e ela ficou tão abalada e horrorizada que apenas fazia uma careta estranha quando eu insistira que ela fosse comigo e desconversava. Mandou-me ir sozinho e me divertir bastante. Só a vi três dias depois ainda radiante por tão grandiosa apresentação e ela só perguntou se tinha legal para mim. Foi demais, eu respondi-lhe! E ficou por aí. Ora, sempre ficam me dizendo que meu gosto pessoal é “doentio, degradante, degenerado, desagradável”. Porra, essa gentinha me dá no saco! Desde criança que eu sempre curti “Cripta”, Edgar Alan Poe, Lovecraft, “A Família Adams” e depois de mais grandinho meu barato era Henry Miller, Georges Battaille, Charles Bukowski, Pedro Juan Gutierrez, Ferdinand Céline “O Perfume”, “Laranja Mecânica”, o “Metal Music Machine”, a trilha sonora d’ “Dança dos Vampiros”, muito “grind”, H.R. Giger. Então minha gente, até onde isso me consta é OBRA DE ARTE respeitada e aprovada universalmente pelos séculos e séculos amém, certo? Então vamos parar por aí. Ou será que eu bati a cabeça muito forte quando caí do balanço no jardim da infância? O grande problema é que o dito público em geral gosta de prato feito e mastigado ainda por cima e quando não entendem picas ficam com aquela atitude nula de apenas seguir a manada sem ter a mínima ideia de que isso é um erro fatal que leva apenas a ser inserido num contexto escroto. Simples assim. Era nisso que eu pensava enquanto escovava os dentes e jogava meu velho e surrado casaco de couro preto comprado há mais de dez anos em um brechó safado e barato do centro velho de São Paulo. Aqui na província nunca se sabe. Está agradável e de repente esfria e chove que é uma beleza. O clima da cidade é igualzinho aos moradores da cidade: babaca. De manhã frio, à tarde tem calor de rachar, à noite frio e garoa fina e vento cortante, de madrugada gelo total. Essa é a nossa Curitiba. Fechei o apartamento e resolvi ir a pé até o jornal. Eles que esperassem. Afinal, não era o Juízo Final? Ou era?

Comprei um maço de cigarros daqueles mata ratos de filtro amarelo que eu fumo a mais tempo de deveria e pedi chá para a atendente do balcão da primeira padaria que me deparei. Pedi que ela colocasse num copo de plástico que eu iria caminhando tive que dizer isso duas vezes. Rompi o lacre do cigarro, coloquei um no bico, cavouquei meus bolsos e encontrei meio isqueiro que acionei acendendo o pito e dei duas belas tragadas que soltei pelo nariz, um gole do meu chá, paguei, peguei meu troco e me piquei dali. Estava na Rua Paula Gomes que é muito estranha durante do dia. Á noite os bares estão abertos e é um movimento só. De dia você vê as touceiras de coroas-de-cristo, os grafites punks com bastante nitidez e entende algumas palavras, o casario antigo e decadente da tão falada parte histórica da cidade e passa batido pelo “O Torto”. Em algum momento você se pergunta: “Onde está o Torto”? e vira a cabeça instintivamente e lá está ele com aquela pintura do Mané Garrinha executando sua clássica jogada e continua andando. Minha relação com essa capital é de amor e ódio. Pode crer. Eu sei que tem paisagens boas, mulheres bonitas, comida digerível só que isso é ínfimo. O que suplanta tudo de bom são as pessoas sempre com aquela expressão dura e ao mesmo tempo fútil no rosto que a meu ver estão em desespero e apenas ordenando que você as socorra. Os nativos são arrogantes demais para pedir então simplesmente não recebem a ajuda que tanto necessitam e isso não vai mudar. É o DNA desse lugar. Fiz mais uma parada no bar do Sílvio que fica bem no final dessa rua. Reza a lenda que tem gente do mundo inteiro que vem saborear o pastel de queijo do “Portuga”. Pedi dois e uma garrafa plástica de água mineral sem gás. Terminei meu chá que aquela altura já estava morno, e me atraquei no rango. Realmente ficava delicioso quando você adicionava umas colheradas de molho de pimentão à massa. O “Português” tomava uma média do outro lado do balcão, sorria, perguntava para mim como iam as coisas e tirava um barato com seu empregado jovem e simpático. Terminei de comer, paguei minha conta, acendi um cigarro, me engasguei com a fumaça, joguei o toco longe e lembrei que deveria tem uma bela “beata” em algum bolso do meu casaco. Achei no interno do lado esquerdo. Olhei para os dois lados e depois discretamente para trás. Parecia tudo limpeza e tasquei fogo. Como é bom um fuminho para fazer a cabeça, acalmar, desanuviar, relaxar, caminhar. As pessoas que defendem que a erva é uma fuga da realidade vão ter todos os motivos para me fuzilar nesse exato instante. E você incauto leitor? Já perdeu o fio da meada? Vai sonhando.

Cheguei à praça do “Homem Nu”. Se você conseguiu chegar até aqui é porque realmente é perseverante. E deve estar se perguntando se eu não fiquei maluco. Não, meu amigo, minha amiga. Quando você der as caras por aqui venha ver o monumento gigante de um homem pelado em pé e de uma mulher pelada sentada com as pernas cruzadas. Quando eu era criança eu subia na mulher e ficava fitando aquele vão. Eu era inocente. Todos nós fomos um dia. Atravessei a praça e a mesma cena triste de sempre. Homens e mulheres largados pelos bancos, esfarrapados, sujos, fedendo, drogado ou alcoolizados à qualquer hora do dia ou da noite, os policiais parados fora das viaturas encostadas olhando e parecendo entediados e tentando conversar um com os outros para espantar esse marasmo, o camelódromo tristonho, as lojas de produtos evangélicos jogadas às moscas, e os botecos e espetinhos cuspindo gente para fora. Passei batido por ali. Que coisa estranha! Como os tempos mudam. Há dois anos atrás só o cheiro de maconha deixaria os ratos atiçados e procurando confusão e o primeiro fumeiro bandeira para apavorar e achacar o que ele tivesse de valor. Hoje, não dão a mínima para quem queima um. Fora um outro neurótico de guerra neca de pitibiribas. E esses são minoria.

Agora estou subindo a Marechal Hermes. Falta pouco para chegar naquele suplício. Que merda. Essa rua já foi tranquila. Já foi, bem entendido. E vou matando minha bagana e ficando cada vez mais chapado. Única forma racional que conheço para suportar a rotina diária. Fumo e bebida. Esqueci-me de tomar um trago e agora é tarde demais. Já cheguei. Um prédio bem suntuoso. Pego o elevador e solicito à ascensorista o meu andar. Ela sorri. Eu retribuo. Ela pergunta como estou. Digo-lhe que ótimo e que quero saber dela. Ela responde. Tem cabelos castanhos alourados e é bem jovem. Meus cabelos estão grisalhos na parte de cima e nas laterais. Prendo-os num rabo de cavalo. Ela me diz que também está legal. Ótimo. Chego a meu andar e agradeço à moça. Ela diz “disponha” e fecha a porta. Encaminho-me até onde trabalho e vejo toda a turma da redação com caras compridas e graves. A Leda está ali. O imbecil do meu chefe que tem ojeriza de mim também. Seus rostos parecem arrasados e deprimidos. O que será que tanto deixa essa gente para baixo e fazendo ares de guerra mundial?

-Porque demorou tanto? Pergunta o chefe de redação, visivelmente irritado.

-Eu moro tarde. Respondo na refrega. Não consigo levar esse tipo a sério. Palavra. Esse palhaço metido em suas roupas da moda, seu penteado totalmente enquadrado, suas crises de ira por uma vírgula fora do lugar ou travessão mal colocado, sua mania de querer ser o melhor em tudo, seus diplomas pendurados em sua sala, seus sapatos de cromo alemão que de tão engraxados eu posso usar com espelho, suas gravatas impecáveis. Talvez por eu ser apenas um redator cabeludo, fumeiro, desleixado? Muito pelo contrário. Porque esse zé-mané me irritada com seus modos calculados e exaustivamente ensaiados em uma existência banal.

-Não sabe falar sério mesmo! Ele esta agastado, gritando. A Leda continua com a mesma expressão tensa. – Não sei onde estou com a cabeça que eu ainda não...Ele interrompe e fixa os olhos que mudam de cor da Leda. – Leda como você ainda mantém esse imprestável, esse vagabundo alcoólatra na rua redação? Leda parecia acalmar-se um pouco com essa demonstração vulgar. Eu fiquei na minha com pares de olhos apontados em minha direção. Foda-se isso tudo, eu pensei. Decidi abrir minha boca:

-Qual é o galho?

Leda pareceu arrefecer. Veio para meu lado e tocou o meu ombro direito com aquelas mãos delicadas. Tentou explicar a situação que na realidade era bem comum. Uma garota que tinha sido despedida naquela manhã porque acabou atrasando um prazo para entrega da critica de um filme que por sinal eu já tinha assistido. Um filme louco, quase um filme de arte, com uma atmosfera sombria que tinha me fascinado. Era estrelado pelo Willen Dafoe que era um dos meus heróis. A película estava dando o que falar o nosso jornal não tinha emitido opinião. Sou apenas um compulsivo escrevinhador que nada entende de mercado editorial e que deve ser um mercado como outro qualquer. Não compreendia porque toda aquela indignação. Era um texto que eles precisavam para sair daquele transe insano? Daquele surto sem sentido? Nada que o velho e bom Carlo Malta não resolva, porra! Em no máximo duas horas! Do que eu precisava? De quase nada. Uma boa garrafa de água gelada ( quando não estou bebendo álcool bebo litros de água ), um computador, paz, silêncio e & sossego. Um pouco de musica caia bem. Sentei-me ao computador e liguei o bichinho. Tinha assistido a esse filme a menos de um mês ele tinha tudo bem fresco na cabeça. Lembro que a fita tinha me impactado de uma vez e que a Layla tinha ficado bem chocada também. Veio a primeira frase. Maravilha. O velho Malta só precisa de uma bela transpiração e a caminhada proporcionou-me isso.

“Já passei por um intensivo tratamento para dores d’alma e do corpo e posso garantir que isso não é nada comparado a experiência única de assistir a essa impactante película do diretor...”

Tomei um grande gole da garrafa. Olhei ao meu redor. Parecia uma torcida num campo de futebol na hora da batida do pênalti. Respirações cortadas. Eu ouvia o coração dessa gente e eles infelizmente não queriam se ouvir. Digitei mais rápido tomado por idéias.

“Na primeiríssima sequência uma tragédia familiar abate aquelas pessoas de modo irreversível que irá dar toda a tônica dessa história.”

Continuei catando milho e de olho naquele monitor colorido, parando algumas vezes para as correções. Agora era de um folego só. Todos esses anos escrevendo em cadernos espirais, em quartos sórdidos de pensões baratas e cheias de pulgas, em quitinetes da Nilo Cairo e do Baixo Centro, em sofás e quartos de empregadas de apartamentos de amigos temporários e de garotas mais temporárias ainda tinha me dado esse fôlego. Escrevendo há quatorze anos nesse jornalão de quinta categoria as matérias mais esdruxulas que se tem noticia (olha o trocadilho, está acompanhando o texto? Esse vai ser longo). Redigindo portaria e notas de falecimento por vinte meses naquela repartição pública burocrática e surreal. Fazendo monografias para as graduações dos playboys mimados conseguirem seus diplomas e em troca de algumas centenas de reais. Escrevendo redações para os colegas desde o primário. Talvez eu tenha chegado ao ponto certo. Talvez não. Eu estava salvando a reputação daquele “nobre órgão da imprensa paranaense”? Ora, pipocas. Será que iria reverter algum para meu bolso. Seria um bom começo. Fluxo de consciência e as minhas lembranças das sequências do filme! Quase no fim.

“E ao final de toda a ação ( e haja ação para nosso neurônios combalidos por essas duas horas magistrais ) fica a sensação de que tudo pode ser medido por palavras nesse mundo já deformado pela perda completa de suas referências primordiais”.

Mandei imprimir o texto. Passei para a Leda. Ela leu com os óculos descendo pelo nariz. Seus olhos mudaram novamente de cor. Verde esmeralda nesse momento. Sua boquinha carnuda se abriu um pouco. Meu chefe de redação me olhava com verdadeiro ódio e horror nesse momento. Relaxei na cadeira de espaldar alto que tinham descolado para mim. Terminei a garrafinha de água e pedi para encherem novamente o que foi prontamente atendido. Só transpiração, meus queridos. Não sei o que os outros escritores precisam. Quanto a mim qualquer coisa ajuda. Mesmo que seja sob pressão. A Leda terminou a leitura e talvez pela primeira vez no dia seu lindo sorriso iluminou seu rosto cansado. Ela mandou o texto para a gráfica. A edição da noite iria rodar completa. Outra vez a paz reina. Ouço um suspiro coletivo de alivio. A Leda me chama até sua sala. Vejo de soslaio novamente a expressão daquele pateta que é meu superior hierárquico. Nenhuma vitória particular para mim. Apenas trabalho duro e sem sentido. Para ele uma dura derrota pessoal. Entre outras que lhe apliquei e vou lhe aplicar se qualquer um de nos durar naquele lugar estupido. Cem pratas na minha mão pagas diretamente pela dona do jornal. Dou-lhe um beijo no rosto quando vou sair para cumprir o restante do meu “banco de horas”. Saio pela porta dos funcionários para não dar de cara com ninguém àquela hora. Dirijo-me ao bar do Alaor e peço um bloody mary e para ele trocar minha "garoupa". Ele prepara rápido e eu fico bebericando um pouco. Pego um cerveja preta do freezer para rebater. Termino meu drinque e peço outro. Decido ir caminhando para casa. Senti que estava meio fora de forma. Tomo mais um gole e acendo o cigarro da porta para fora. Passo a mão no celular e ligo para a Layla. Parece feliz com meu telefonema:

-Onde você está? Ela quer saber.

-Estava no jornal resolvendo um barato qualquer. A Leda me ligou. Menti. –Onde você anda?

-No Fórum. Já resolvi tudo e estava pensando em ir para casa.

-Tá a fim que passe te pegar aí e a gente poderia ir beber em algum lugar? Sugeri.

-Adoraria- ela disse –estou sentindo o gostinho daquela carne de onça que você me levou comer esses dias. Eu adoraria, Carlo.

-Em quinze minutos estou aí. Um beijinho, gatinha maluca.

Pago a conta.

Tomo o segundo copo de um trago só.

Pego e confiro meu troco.

Dou um aperto de mão no Alaor

Começo a andar.

Respiro e inspiro.

A vida é simples. São os outros que complicam.

Jean Paul Sartre há essa hora?

Doce ilusão...

Curitiba, 26 de julho de 2011 - 13:58 - inverno.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 26/07/2011
Código do texto: T3119822
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