Confissões de Alguém que Foi Longe Demais.

I

Como eu fui cair nessa?

Não sou vítima e nem tampouco não sabia o que estava fazendo. Eu fumava erva, bebia e tomava comprimidos desde os 13 anos de idade. Não vou culpar a Gerusa porque a gente estava no mesmo barco & morando juntos. Ela apenas deve ter se enchido das minhas rebordosas, das loucuras, do ensandecer até o dia clarear, de acordar com aquela ressaca moral maldita quando conseguíamos desmaiar na cama a guisa de um barato qualquer. Entrei nessa de cocaína com 22 anos. Ou seja, velho demais para isso. Sim senhor. Também não vou dizer que essa parada excluía o desejo sexual. Pelo menos não no começo.

Era uma coisa bem para a curtição. Comprava alguns gramas e cheirava nas sextas feiras. “Sextas-Cheiras” no dizer da moçada inteirada. No começo a Gerusa também mandava ver, mas ficava assustada com o pique que aquele pó branco me provocava. Ficava puta da cara quando eu começava a discursar coisas absurdas e inconsequentes. A gente fechava o pau e depois ficava de bem com promessa de que no fim de semana seguinte eu não iria mandar nada. Só erva e vinho. E na outra semana era igualzinha a anterior. Eu comprava, mandava, pirava, brigava e o ciclo recomeçava até o dia em que a pobre menina se encheu e foi embora de vez. Entrei em desespero e como sempre fui um galinho de rinha decidi ir fundo.

Agora era sexta, sábado e domingo. E com tempo ficou no esquema de quarta, quinta, sexta, sábado e domingo e logo depois era segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo. Todo dia. Em principio só quando escurecia. Quando decidi que cocaína era segura e limpeza, o dia todo, todo o dia. Nem imagino como eu arrumava dinheiro. Imagino sim. Pegava bastante em consignação, vendia para um e para outro, dava a grana estipulada e ficava com o resto para mim. Parece fácil, não é mesmo. Parece seguro. Não tem cheiro, é de rápido consumo e de barato imediato. Pareceu ser a droga perfeita que eu estivera procurando por todos esses anos. Doideira. E que não é doideira nesse plano astral?

II

Eu trabalhava para o estado do Paraná nessa época e tinha salario fixo e acesso a empréstimos bancários com descontos em folha de pagamento. É muito fácil adquirir um vicio desses quando você tem condição de arranjar dinheiro com relativa facilidade. E eu me esbaldava. Meu consumo diário passava de um grama e eu tomava uma garrafa de uísque com toda a tranquilidade e mais oito ou nove cervejas todas as noites. Nunca dormia antes das três da manhã e acordava as sete com a cabeça rachando. Ia tomar meu banho e fazer minhas necessidades, fumar um cigarro, me vesti , escovar os dentes e todos esses automatismos. Não me tocava da cagada que eu estava fazendo e como estava sozinho achava que não devia dar satisfação para ninguém continuava vivendo essa vidinha medíocre e achando o máximo. Sintoma da doença. O pó faz você ser o que quer ser por cinco ou dez minutos. Depois você precisa de outra carreira para não voltar a ser quem você é. Você pode com algumas linhas ser o piloto de testes da formula 1, o empresário bem sucedido, o funcionário do mês, o rock star. Por pequenos lapsos de tempo e logo depois mais, mais & mais. É dolorosa a volta para a realidade e a sua vida. Você não gosta do que viu a durante toda a sua existência no espelho e então quando descobre essa parada, zás! Tudo fica azul com bolinhas douradas. No início.

III

Como tinha dito antes, cocaína é droga limpa. Não tem cheiro (tem sim, mas ninguém distingue a não ser o usuário e em certas condições nem alguns policiais), não faz sujeira & uma vez que aspirada some dentro da sua narina, e não faz volume no bolso assim como um pacotão de erva. Então parece perfeita. Agora eu mandava até trabalhando. Não almoçava e durante o intervalo ficava perambulando e aspirando essa porcaria com a ponta do meu isqueiro. Quando voltava fazia minhas funções com velocidade de recorde e lá pelas quatro e meia da tarde ia ao banheiro cheirar mais. Parece um circulo vicioso? E o pesadelo está apenas começando. Conheci todos que transavam a ” branca” na época. Esse é o segundo sintoma da doença: você começa a se dar com todo mundo que tenho alguma mercadoria para te passar ou saiba de alguma conexão. Por mais que você ache essa pessoa uma merda você continua a se relacionar com ela. Pura falsidade. Essa droga incita a falsidade, ao sorriso mentiroso, ao aperto de mão frouxo, as maledicências pelas costas. Os caretas que me desculpem se não estão entendendo patavina e se eu estou falando demais. Isso é problema deles. O conto é meu e o livro também então vou narrar os fatos para que ninguém perca o fio da meada. Você vive e respira em relação ao barato da droga. O Bill Burroughs que me perdoe, mas você vicia nisso sim. O poder é altamente inebriante. E a sensação de poder é incrível! O dito bem estar quase indescritível! Nunca usei nenhuma substância que ligasse tanto o cérebro! E você não quer se desligar. Você esquece-se de comer e esquece-se de dormir. Pode trabalhar e farrear por dias a fios enquanto estiver com uma quantidade razoável no bolso. Faz um milhão de “amigos” e suas ideias fluem como água. Um turbilhão de palavras incoerentes. E você se sentindo um Nietsche. Os assuntos passam como alguém zapeando num controle remoto. Uma palavra leva a outra que leva a outra. Monólogos de várias vozes tagarelando ao mesmo tempo. Ninguém presta atenção em nada e cada qual quer falar mais alto e com mais eloquência que o outro. Nada faz sentido e é fútil e ninguém se dá conta disso. Meu primeiro ano de usuário estava chegando ao fim.

IV

A dependência se instala e você nem se dá conta. Está cheirando e pirando a todo instante e acha que sua vida está ótima e normal e que nada está fora do lugar. Que erro! Quando começa a baixar a quantidade das suas provisões você fica horas no telefone ligando para um e para outro em total paranoia até alguém lhe dar o “sim”. E outra: o tempo que você passa esperando é brutal e extremamente lento. Todo viciado passa mais da metade do seu tempo na espera. Em compasso de espera. Não adianta reclamar e você acaba adquirindo um estoicismo muito natural. Não fica praguejando porque aprende muito rápido que isso não resolve em nada. E ainda não se dá conta que está totalmente escravizado pela droga. O “patrão” nunca chega no horário. Nunca te atende no ato nem que você gaste cinco mil paus por semana na “boca”. É assim que funciona nesse negócio. Um negócio como outro qualquer. A única diferença que não é legalizado. No mais um comércio como outro qualquer. Você vai esperar, xará. Faz parte. E você em crise espera porque sabe que a quando aspirar a primeira carreira tudo vai ficar bem. O mal estar desaparece. A vontade de chorar e espernear também. O embrulho no estomago passa no mesmo minuto. A tremedeira cessa. A autoconfiança retorna. A arrogância parte intrínseca de seu caráter. O seu tom de voz adquire um que de choroso e birrento e adolescente. Você começa a falar idêntico aos viciados que rua que você ainda julga não ser. Tudo está de pernas para ar e você nem se dá conta. A cocaína acalenta sua cabeça e parece conversar com você. E não é que conversa mesmo! E ela diz: “ei, manda de uma vez, cara, você vai ficar legal”. E você obedece. Ah, se obedece.

V

Chega uma hora que sua grana acaba. Por sorte apenas vendi uma aparelho de som meio avariado e uma jaqueta de couro que tinha me custado uma bela grana e que me garantiram curtir os baratos mais alguns dias. Havia conhecido um sujeito que tinha me ensinado a economizar e tinha me iniciado nos picos. Aí, se a situação ainda não ficou preta está ficando bem depressa. Direto na veia, meu irmão! Quando bate a sua cabeça gira, sua boca seca e implora um trago forte, seu pescoço fica rijo e o toque repercute por horas e horas até você querer novamente. E a história se repete. Viciado de vez. E você ainda não se dá conta. Não se dá conta que está paranoico, neurótico de guerra vendo os meganhas debaixo da cama, dentro do armário, andando na sua casa, ou até dentro de um carro na rua e então você resolve abaixar as persianas ou se tranca no banheiro num pavor indescritível. Quando essa merda abaixa você fica puto dentro das calças consigo mesmo e corre preparar outra dose de três cc’s e a coisa se repete. Noite após noite. Dia após dia. Você deixa de fazer a barba e tomar banho, negligencia seu emprego e os estudos. A sua vida gira em torno da droga realmente. Aí você volta a pegar em enormes quantidades, vende um pouco, consome o resto e fica devendo para o fornecedor. A sua situação começa a ficar perigosa. Sua vida pode estar correndo um risco considerável. Ainda não caíram as fichas.

VI

Fazia quatro dias que eu estava na função. Tinha arrumado um segundo emprego num bar da moda só para ter acesso às drogas. Trabalhava das oito as seis na repartição e das sete a uma da manhã atrás do balcão. Consegui equilibrar minhas finanças e estava picando mais do que nunca para aturar essa jornada dupla. Tinha conhecido uma menina legal, sete anos mais velha do que e estávamos saindo por assim dizer. Bebíamos, riamos, transavamos, íamos em casa de amigos e cheirávamos. Todos os amigos dela cheiravam. Não na minha proporção. Mas aquela turminha metida a intelectual mandavam ver. Parecia que meus problemas tinham terminado. Todos eram gente de alta roda. Com grana. Eles tinham a erva viva e eu as conexões. Unir o útil ao agradável. Ledo engano. Mais um passo em direção ao abismo. O fundo do poço tem um alçapão que leva a um poço mais fundo e sombrio ainda. Claro que eu sabia que a hora que eu desabasse a coisa iria ficar bem feia. E, na real? Eu estava pouco me fodendo para isso. Sei lá porque quebrei o pau com essa menina. Loucura? Cheguei até a agredi-la com dois empurrões e chamei-a de vagabunda para baixo. Isso nunca foi do meu feitio. Nem nas brigas mais violentas com a Gerusa. Era apenas bate boca. Sua personalidade muda radicalmente quando você está usando essa porra direto. Não estou justificando nada, apenas uma constatação óbvia. Seu pavio fica curto demais. Com essa garota eu abusei, apelei. Deixei-a falando sozinha no bar e fui para casa injetar. Tinha um montão no bolso e seringas limpas. Surrupiei uma garrafa de uísque do bar onde estava trabalhando e me mandei. Piquei uma, duas vezes. Bebia pelo gargalo. Liguei para ela e falei mais um monte de merdas, ela chorava e suplicava que eu parasse. Aspirei mais duas e me senti o Jim Morrison. Mandei três Valium 10 mg garganta abaixo e em minutos estava a nocaute. Não me lembrava de nada no dia seguinte quando ela me contou toda a cena. Estava envergonhado e me sentia péssimo. Nunca tinha feito isso com ninguém. Finalmente eu tinha tomado uma chacoalhada bem no meio dos meus brios. Eu que sempre valorei a hombridade! Pedi desculpas e ela simplesmente disse que sentia misericórdia da minha pobre alma que eu estava a perdendo e que a escolha era a minha. Pensei seriamente em tratamento. Parecia que estava admitindo que tivesse um problema e que queria soluciona-lo. Teria eu dado o primeiro passo?

Apareci no meu emprego público no dia seguinte suplicando que alguém me ajudasse. Na real fazia três meses que eu pensava em parar. Três anos nessa doença já! E eu nem me dera conta como tinham passado rápido e que todos os Natais e Anos-Novos tinham sido desperdiçados, louco de pó e de bebida em excesso. Fui direto conversar com o manda chuva local e ele foi muito solicito e simpático, mas isso não resolvia meu problema .Eu precisava de internamento. De desintoxicação. De “Programa dos Doze Passos” se necessário. De eletroconvulsoterapia. De choque químico e informei isso a ele. Ele me olhava e sorria e tentava colocar panos quentes. Decidi ser incisivo e mostrei-lhe meus braços cobertos de caminhos de ratos de picadas e furos. Foi nesse momento que ele começou agir agora com um olhar de espanto e com olhos fixos em mim e disparou dois ou três telefonemas. Fui despachado para uma conversa com a assistente social, linda e gostosa ( depois de um tempo usando cocaína seu desejo sexual desaparece por completo e quem disse que não é um hipócrita mentiroso que não merece um pingo de consideração ) que tentava minimizar meu problema alegando que eu tinha um rosto inteligente. Repeti a operação de sacar os braços e ela também ficou horrorizada e ligou para uma clinica e providenciou a entrada na instituição no dia seguinte. Fui para casa. Usei o resto de droga. Bebi como um peru de véspera e fiquei acordado até às nove da manhã. Hora de assinar meu prontuário.

VII

Não vou entrar em detalhes sobre a clínica porque já escrevi sobre isso no livro. É só procurar o conto intitulado “Rápidos Relatos Sobre a Clínica de Reabilitação” e vamos ao que interessa. Quando tive alta voltei para casa. Estava realmente apavorado. Será que eu teria uma recaída em um dia, dois ou em uma semana. Essa ideia me assombrava. Eu estava morrendo de medo! Fiquei sabendo alguns dias depois que um conhecido tinha tido uma overdose e morrido. A família havia encontrado um bilhete de suicídio. Claro que eu surtei. A garota que eu tinha feito àquela presepada toda antes da clinica me ligou convidando para um cinema. Sempre gostei de cinema. Talvez eu me distraísse um pouquinho, certo? E adivinha o que ela me leva para assistir depois de quarenta e cinco dias de reabilitação? “Pulp Fiction”! Seria sua vingança perfeitamente orquestrada pelo que eu tinha feito a ela? Eu suava frio sentado naquela poltrona e sentia uma náusea cavalar! Vi a fita até o final e quando ela me levou comer uma pizza eu estava contrito e macambúzio. Comecei a relembrar daquele povo que estava comigo lá dentro e tive a real impressão de quando eu resolvi parar com toda essa palhaçada. Deixou-me em casa e me despedi simplesmente com um beijo seco em seu rosto. Estava decidido a nunca mais vê-la e nunca mais tocar em drogas pesadas. Pois sim.

VIII

Marquei um monte de psicólogos e todos me trataram mais um menos como mercadoria. Teve uma, inclusive, que estava me usando como cobaia da sua tese de doutorado e eu mandei-a tomar nu cu com todas as letras e nunca mais apareci por lá. Os medicamentos receitados exacerbavam minha depressão e minha sensação de fracasso. Joguei os comprimidos na privada depois de seis meses. Enfiei a cara no trabalho. Três longos anos de dependência. Frequentava grupos dos Narcóticos Anônimos e toda aquela autocomiseração da burguesia me afetava que um modo que me deixavam com vontade de vomitar. O crack tinha começado a disseminar sua era de terror. No meio daquela gente pequena e egoísta eu lembrava porque tinha decidido parar. Eu estava me transformando em um deles e perdendo o que era meu: minha literatura, minha escrita, minha música, meus verdadeiros amigos, as coisas em que eu acreditava e estava me tornando mesquinho como eles. O pó cobrava seu preço. Viver intensamente uma hora ou outra cobra o preço. E esse estava demais para mim e não estava disposto a pagar de jeito nenhum. Mudei para o grupo dos Alcoólicos Anônimos e percebi que esses eram mais vividos, sinceros e humanos. Quando estava sentindo que poderia recair a qualquer momento corria para lá e falava até minha língua, minha boca & minha garganta secarem. Fazia dois anos que eu não consumia cocaína. Minha batalha seria árdua. Eu me recusava a seguir os “Doze Passos” em virtude de não acreditar em deus. Não naquele deus. Em qual? Em nenhum. Não me fazia falta. Pela primeira vez na vida parei de pensar em mim mesmo e nem mesmo culpava a Gerusa pelo meu comportamento estupido. Não queria saber se as drogas eram causas ou consequências. Não estava preocupado com justificativas e me sentia bem por isso. Aquele povo do A.A. foi muito legal e gentil. Parecia que eu estava no caminho certo. Parecia.

IX

Uma noite de sexta eu tinha armado uma confusão dos diabos no trabalho porque tinha achado serviço parado de uma colega. Disse-lhe mundo e fundos e sai de lá com a cabeça a um milhão por hora. Enfurnei-me na casa de um traficante conhecido e comprei cinco gramas. Paguei em dinheiro. Coloquei a partida no bolso e fui para o bar. Tirava a bucha de um bolso e colocava no outro imediatamente como um judeu e sua grana. Tirava e colocava. Tirava e colocava. Minha boca secou. O estomago se contorceu. Gases. Merda! Passou por mim um cara que sabia que usava. Chamei-o num canto e lhe dei a coisa. Mandei que esse sumisse das minhas vistas naquele segundo. Ainda quis retrucar e fui rude. Falei que se ele não mandasse teria sua bunda chutada daqui até o Butiatuvinha. O sujeito guardou no bolso e saiu assoviando faceiro, lépido. Eu tinha conseguido daquela vez. Resolvi depois de muito tempo tomar uma cerveja. Desceu fácil e rápido. Pedi outra. Pedi uma dose de uísque. Inalei o liquido do copo. Nenhuma sensação ruim. Não tinha ficado com nenhuma nostalgia da cocaína, o que achei que iria acontecer quando pedi a bebida. Na semana seguinte fui ao um show de rock. Precisava interagir com pessoas depois de todo esse isolamento que me impus. A apresentação foi muito alta e intensa e eu sorria e balançava discretamente a cabeça. Tinha gente que eu conhecia ali e ficaram me olhando com uma expressão estranha entre descrença e piedade. Não liguei à mínima. Curti a música e o local. Para mim estava bom. Fiquei bebendo cerveja e vodca e não excedi nenhum limite. Dias depois o telefone da minha casa começa incessantemente a tocar e choveram convites para festas e churrasco. Decidi escolher a dedo o que eu iria fazer e fui à casa de amigo que tinha se desligado um tempo antes de mim. Conversamos sobre tudo. De futebol, arte e religião até a nossa condição de adicção. Descobri então que a troca de informações e experiências é necessária e crucial na nossa condição. Até aquele momento eu tinha achado que aquela conversa de “doença progressiva e incurável” era engodo e trapaça, porém trocando ideias com essa pessoa minha mente desanuviou. Comecei a achar que ainda tinha esperança.

X

Depois de mais três anos sem usar nada eu conseguia me dar o direito de fumar um baseado e de beber uma cota de álcool. Tive que conquistar esse direito e fiquei sarcástico quando pude. Para quem não está entendendo eu explico: quando aparecia cocaína em algum lugar eu decidia encharcar a turma só para ver a reação. Era minha mais nova diversão. Manipular marionetes. Esticar umas linhas e ver o povo entrar naquela paranoia brava enquanto eu virava dose atrás de dose. Um toque sádico que eu não conhecia da minha personalidade. Não durou muito. Parei que frequentar lugares e pessoas. Estava muito envergonhado com a minha atitude. Pela terceira vez exigi mais trabalho do que poderiam me dar. Descolei uma bela lesão de coluna lombar por isso. Comecei a escrever contos sombrios e fui desenvolvendo a técnica. Já pensava em publicar um livro tempos depois. O balsamo veio quando um velho conhecido uma noite em seu carro me disse que aquele ano tinha sido de “afirmação”. Fiquei olhando bem fundo em seus olhos, embasbaco com aquela palavrinha mágica. Eu finalmente estava começando a juntar os cacos que eu mesmo tinha quebrado. Tinha sido muito doloroso. Resolvi combalir meu ego de vez. Deu certo um pouquinho. Andava lendo como um possesso. Tinha conhecido uma garota negra muito linda e legal. Estávamos curtindo um tremendo affair, muito quente e bonito. E eu andava muito chato ainda cheio de dúvidas. Eu tinha as resposta e achava que não eram suficientes. Essa moça era uma deusa de ébano de um metro e setenta, seios firmes e fartos, coxas grossas, cabelo muito bem tratado, sempre bem vestida, uma furação na cama e uma companhia agradável fora dela e eu ainda não estava satisfeito. Afastei-me dela uns meses depois. Puta sacanagem! Não me sentia preparado para dividir nada com ninguém. Ela compreendeu ou fez que compreendeu. Hoje, somos grandes amigos e ela é muito feliz com seu segundo marido e seus lindos filhos. Sempre que pode lê meus contos e fofocamos na internet. Hoje seria diferente. Hoje não costumo mais chorar pelos litros de leite derramados. Hoje entendi.

XI

Quando você completa uma década limpo fica impressionado. Parece que tudo aquilo pelo que você passou é um sonho distante. Parece até outro plano de existência. Outra vida, outra pessoa. Parece que não era você. Vi uma foto minha daquela época há um tempo. Parecia que estava tudo normal e não estava. Ninguém tem “viciado” tatuado na testa. Ninguém tem “trapaceiro” escrito em neon no peito. Ninguém pode ficar fazendo planos, pois eles sempre dão errados e as pessoas se frustram e acabam tornando-se desagradáveis, amarguradas e potencialmente perigosas. Podem se afundar mesmo nessa depressão e dar valor demais a suas pequenas e fúteis considerações. A vida se resume em deixar rolar. Isso eu aprendi demais nessa minha caminhada. O que move o ser humano médio é ego, medo, competição, sem nenhum instinto básico de sobrevivência. As clinicas e os hospícios e os hospitais estão abarrotados porque as pessoas pensam que suas existências são especiais e que são dotados de um “poder maior” quando em verdade não passam de moscas sobre a mesma merda. Parece brutal? E é! Quando você completa quinze anos sem nada de cocaína em seu corpo percebe que chegou a hora crucial e decidi ir em frente. Estou me preparando para completar minha segunda década. Será minha única vitória pessoal. Simples assim.

XII

Tento passar minha experiência quando alguém precisa dela. No mais fico de bico fechado. Tenho uma afilhada de “narcóticos” que me houve e me respeita. Não tem recaído mais. Bebo o normal e fumo erva quando dá. No limiar da segunda década do século XXI as drogas são o grande problema. E a grande solução será legaliza-las. Nem precisasse fazer grandes contemplações. Só os canalhas são contra essa medida. O dinheiro que é desperdiçado pelos estados mundo afora todos os anos para combater a caspa a partir do método da decapitação é simplesmente grotesco para não dizer ridículo. Enquanto pessoas mal-intencionadas continuarem com suas medidas medievais e ineficientes, histórias como essa narrada hoje vai continuar a desfazer lares & matar gente comum ou famosa. Como ficar alheio a isso e achar que “maconheiro é somente o filho do vizinho”. Andamos a passo de tartaruga e o mundo só consegue assimilar uma mudança de cada vez. Só que tudo acontece muito rápido no momento em que martelo essas linhas. A humanidade tornou covarde por pura inércia pois criticar sentado com a bundona branca em mesa de botequim e apontar dedos é de uma facilidade quase obscena. E segundo o Ambrose Pierce “obscenidade é tudo que causa ereção a um juiz”. Tenho que concordar com ele e desejar boa sorte a todos nos que tivemos a escolha de mudar de vida ou se afundar de vez. Se estiver certo ou não, não importa. O que importa é que ainda posso respirar e inspirar. Para mim me basta. O resto é conversa. Nesse momento sinto-me bem. E o céu está azul. E já se faz quase setembro. E chega!

Curitiba, 27 de julho de 2011, 15:09 - 16 graus. inverno.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 27/07/2011
Código do texto: T3122351
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