PINÓKIO

No céu, intensos blocos de algodão entrecruzam o pacífico anil, espargindo esboços de delirantes figuras. O astro rei delineia o cintilante panorama e constrói uma cinematográfica tela de lendária perfeição.

O horizonte retifica o mar, sobrepondo-se às intensas ondulações que a agitação marítima perpetua. Dispersos, dançam no contato com as águas, banhistas que se saciam, despindo-se da rotina da vida. A escaldante temperatura propulsa o ardente anseio de permanência ali, e os dissabores da existência, instantaneamente, são apagados.

O contentamento é apreciável, vozes e risos se lançam ao vento, a vida sintetiza-se naquele quadro. Um recortado fragmento de muitas vivências, numa situação em que alcançam um aparente encontro. Tornam-se iguais.

Uma criança empina um papagaio e o pai, sentado ao lado, conversa com dois amigos. A cerveja ao lado derrama, molhando a areia salgada. À esquerda, três senhoras expõem-se ao sol. Talvez peçam ao rei da luz, o bronzeado escarlate.

De mãos enlaçadas, um adolescente casal passa, a brisa toca nos ondulados cabelos da garota e os faz serpentear, enroscando-lhes ao pescoço. O rapaz abaixa-se. Na areia da praia, rabisca um coração. Dentro, dois nomes.

Sentado, com a cabeça sobre os joelhos, meus braços acorrentam-me à posição. Fico a observar. Agora, vêm as jangadas do alto mar. Nas velas, a demonstração do intenso movimento dos bravos ventos. Ao longe, o som de uma música qualquer. Dessas barulhentas, sem qualidade, que apaixonam aquele recortado fragmento de vivências ali presente. Diferentes, mas iguais.

Inconscientes da perversão do poder, indiferentes ao bestial domínio político, sorriem por despirem-se da rotina da vida. No agora, todos são felizes. São iguais.

O sorveteiro passa cantando uma música folclórica. Duas meninas se aproximam e compram picolés. O gelo suaviza o fervor do verão. O domingo cumpre sua similar função para aquele recortado fragmento de muitas vivências.

Há menos banhistas agora. Uma garrafa descartável rola sobre a areia, impulsionada pelo vento. Incessantemente, gira. Assim, gira o planeta. E nem sempre percebemos. Como aquela garrafa não é percebida. Em seus movimentos circulares, reproduz o movimento do planeta. Para muitos, apenas uma garrafa vazia. Nela, a filosofia da vida. O ciclo vital. A materialização do círculo que volta ao ponto de origem. Ao pó tornarás.

Rapidamente, um jeep passa, esvoaçando a poeira. A mãe agarra-se à criança, a protegê-la. No condutor do carro, o respeito ausente. Na fêmea dedicada, a proteção assídua. A vastidão da praia denota limites (in)existentes.

Para o condutor, o domínio do sempre poder fazer. Tudo posso no capital que me fortalece. Para a mãe, o domínio sobre aquele a quem resguarda. Meus filhos, minha vida. Para a criança, um pássaro veloz, em que os rastros permitem lembrar uma indistinta figura. Confuso. Para esta, a melhor proteção viria do super-fantástico balão mágico. Lá, delimitariam-se os limites.

A poeira baixa. A música me chega mais áspera, devido aos intensos ventos. Lentamente, a praia se esvazia. O sol amorna estes últimos ventos do verão. De súbito, a onda do mar se estende até mim. Molha-me o calção. A frieza da água em minha pele contrasta o impetuoso clima. Percebo o quanto o monarca das chamas queima a minha pele.

Levanto-me e saio. Meu calção molhado está cheio de terra. De sandálias na mão, camiseta no ombro, percorro o caminho de volta ao carro. Um cachorrinho me segue. Tênues latidos me acompanham. Carinhosamente, mordisca os meus pés. Eu afago a sua peluda cabeça, ele deita-se de barriga para cima. Quer brincar. Sinto vontade de levá-lo. Um animal tão lindo não deveria estar sem dono.

Eu lhe chamaria Pinóquio. Para sempre lembrar minha infância. Das mentiras que eu inventava, e invento. Como esta agora! Não há praia, não há banhistas. Nem os últimos ventos do verão. Minha pele não está queimada, porque odeio o ardor que a estrela de fogo causa. Há apenas uma mesa, uma cadeira e um computador. E entre eles, o Pinóquio.

Nonato Costa
Enviado por Nonato Costa em 30/07/2011
Código do texto: T3128242