O sol nosso de cada dia...

Arriscavam-se no trânsito, disputavam espaços entre automóveis, motocicletas, carretas e micro-ônibus. Faziam da avenida um movimentado centro de vendas. Aproximavam-se de vidros elétricos e de janelas emperradas...

Sobreviviam na informalidade. Ofereciam barras de chocolate, refrigerantes, maçãs do amor, porta-copos, mapas-mundi, bonecos infláveis, miniaturas de Ferraris, Lamborghinis e Jaguares; e, em dias de jogos, bandeiras, bonés e adereços alvi-negros, tricolores, rubro-verdes e grenás...

Trabalhavam sob sol e chuva; respiravam monóxido de carbono, metanol e dióxido de enxofre; corriam pelo asfalto maltratado por enchentes, carretas, tratores e caminhões.

Havia ainda os que vendiam a sorte em frações da loteria federal, os que distribuíam panfletos de sofisticados empreendimentos imobiliários, e os que pediam donativos para as campanhas contra a Aids, as drogas, a fome e o desemprego...

Pedro era um deles. Em dias nublados, vendia guarda-chuvas e capas impermeáveis. Quando fazia sol, oferecia chapéus panamá, bonés da NBA, (lê-se /enbiei/) e variados modelos de óculos escuros com a garantia do selo UV.

Graça distribuía panfletos dos centros automotivos da região, e, em época de eleições; calendários, horóscopos e mensagens positivistas com retratos de candidatos; de vereador a presidente.

Pedro planejava fundar uma cooperativa de trabalhadores do asfalto. Graça, por sua vez, era habilidosa com tesouras, pentes, escovas, pinças, alicates e tinturas. Sonhava com um salão de beleza para atender as companheiras “socialaites” da comunidade.

Ao cair da tarde, recolhiam a mercadoria em um velho carrinho de feira. Deixavam tudo no jeito para o dia seguinte, que, sempre acreditavam, seria um lindo amanhã...

Moravam no extremo sul da cidade, no bairro Horizonte Azul, quase divisa com o município de Embu-Guaçu. Costumavam chegar em casa antes do anoitecer. (...) Era mais seguro contar com a proteção do sol nosso de cada dia.

E assim... Pedro e Graça viviam aparentemente felizes à espera do primeiro filho para dali a cinco meses.

Contavam os dias, as horas, os minutos; faziam planos, enxovais, pré-natais, escolhiam nomes e sobrenomes.

“Se for menina será Gisele”, dizia Graça. “Não, não prefiro Emilia”, dizia Pedro.

E se fosse menino, como era o primeiro filho, Graça achava que deveria chamar-se Pedro, o nome do pai. Mas Pedro, o pai, preferia João para homenagear o papa recém-falecido.

E se forem gêmeos... pensava Pedro. Bem... aí cada um escolheria um nome que fosse do agrado de ambos; se menino, o de algum apóstolo da Santa Ceia; se menina, o de alguma filha de Maria...

Pedro e Graça contavam, então, com vinte e poucos anos. Acreditavam que as coisas um dia iriam melhorar... Que Nossa Senhora do Bom Conselho, por quem tinham inabalável devoção, zelaria por eles, e pelo tão aguardado herdeiro. Ela jamais os abandonaria na imprevisível e árdua rotina das poluídas, ruidosas e insensatas ruas da metrópole...

Ufa !!! Finalmente, outra sexta-feira. (...) E, como não poderia deixar de ser, os fins de semana eram sempre bem vindos.

E foi numa sexta-feira, quando já se preparavam para a última investida, que o sinal mais uma vez fica vermelho.

Os automóveis diminuem a velocidade, vão parando em fila, formam assimétricos corredores para onde acorrem os vendedores do asfalto, e por onde passam ousadas motocicletas e imprudentes motociclistas.

Quis o destino que, ao final do dia daquela sexta-feira, enquanto distribuía panfletos de um salão de beleza com o sugestivo nome, Aphrodite’s Beauty Parlor, fosse Graça colhida por uma motocicleta de 350 cilindradas em alta velocidade, e, com o impacto, violentamente arremessada a alguns metros dali.

Sem prestar socorro, um anônimo capacete vermelho evadiu-se do local do sinistro, deixando no ar um rastro de fumaça e um eco de dor no caos de mais um conturbado final de tarde...

Desnorteado, Pedro, que a tudo assistira, corre para abraçar Graça, que, àquela altura, tornara-se a personagem central de mais uma corriqueira tragédia urbana.

Uma pequena multidão logo toma conta da avenida, concentra-se ao redor do corpo de Graça, que, inconsciente, agora jaz no asfalto.

“Acorda Graça... Olha pra mim, meu amor, fala comigo. Sou eu, Pedro. Por favor, minha Nossa Senhora do Bom Conselho, o que devo fazer!?”

Chega a polícia, a perícia, a seguir o resgate. Graça é cuidadosamente imobilizada, e colocada em uma maca.

“Alguém aqui conhece a vítima?”, pergunta um dos para-médicos. “Eu, senhor. Ela é minha mulher. E está grávida de quatro meses. O nosso filho vai se chamar João, João de Deus.”

“Pode entrar e acompanhá-la na ambulância”, ordena o chefe da equipe de resgate...

Com uma estridente sirene abrindo caminho, Pedro e Graça desaparecem nos desvarios do rush de mais um poluído e sufocante entardecer de novembro...

Vieram outros dias úteis, outras tardes, outros finais de semana... Até que um dia qualquer, Pedro e Graça são vistos no mesmo cruzamento...

Pedro vende óculos escuros e suportes para telefones celulares. Graça distribui panfletos de um inédito e revolucionário sistema antifurto para veículos...

Mais ao longe, encostado no muro da calçada, um pequeno caixote de madeira exibe um aviso:

Cuidado, bebê a bordo!!!

Só não se sabe se era Gisele ou Emília, se era Pedro ou João.

O sinal então muda para o amarelo, e logo a seguir para o verde... Era horário de verão, o sol ainda brilhava no horizonte...

FIM

Conto de Zizifraga

Junho de 2010

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 03/08/2011
Reeditado em 11/01/2012
Código do texto: T3136483
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