Publicando O Maior Escritor do Mundo

Finalmente a Leda voltou a ser a chefona do jornal!

Todos nós sabíamos que ela sempre teve um ás na manga. Ninguém poderia imaginar de que naipe era. E deu certo. Com um gol de mão, impedida, aos 48 minutos do segundo tempo, Leda virou a mesa e tomou o seu jornal de volta. Com a equipe de profissionais que lhe desse na telha. Sobraram pouquíssimos da leva anterior. E como ela tinha me prometido acabou me “promovendo” a “editor de cidades”. Eram mais quinhentos no bolso. Nada mal. Agora meu horário era de segunda a sexta das oito da manhã até às quatro da tarde. Mas, quem poderia reclamar?

O trampo era a coisa mais simples e surreal que você possa imaginar: eu sentava-me a uma mesa que tinha um microcomputador, uma impressora & um telefone. Não ligava para ninguém. Eram as pessoas que telefonavam para mim perguntado como fazer para publicar naquele pasquim indecente a merda que elas escreviam. Fosse em forma de conto, poesia, crônica curta ou mais extensa, matérias, ensaios, editorais e esse blá ,blá,blá todo. Então eu tinha que dar o endereço eletrônico para o pobre diabo e ele me mandar seu material. Eu lia duas vezes- tivesse gostado ou não – e passava para outro funcionário que li a mesma idiotice que eu e esse sim me dava sinal verde para publicar e daí eu ligava da minha sala para outra menina que dizia quando é que o autor deveria pegar seu dinheiro. Parece simples? Vai sonhando. Em primeiro lugar o cara que lia toda aquela cantilena depois de mim era um analfabeto funcional. Pelo menos essa era minha opinião. Não que fosse má pessoa. Não chegava a ser uma pessoa. Ele apenas aparecia com o papel na mão e dizia se eu devia ou não publicar e era só. Sob que critérios ele julgava os escritos eu nem imaginava. Nem seria trouxa de perguntar. Segundo ponto era o escroto do meu ex-chefe. Aquele bosta! Toda vez que eu ia até o bebedouro me servir, de qualquer ângulo que eu estivesse, sentia seu olhar cheio de ódio, rancor, desprezo & no fundo perplexidade por eu estar “me dando bem”. “Dando-me bem”? Como sempre o Carlo Malta fala cedo demais...

Gente de todo o Sul ligava para mim o dia todo fazendo todo tipo de pergunta. Eu respondia e dizia que precisava de material. As pessoas desligavam e inundavam a caixa postal. Tinha de tudo. Aspirantes a poetas que ainda rimavam “ardor” com “calor”, pseudo intelectuais de esquerda para lá desbotados com suas teses arcaicas sobre “revolução”, concretistas completamente lelés da cuca, ensaístas pretenciosos daqueles que provocam bocejos intermináveis, críticos de todos os gêneros sem nenhuma auto critica, malucos em geral e metidos a gênios em particular. Vocês sabem o que eu quero dizer. Não sabe? Desligue a novela da sua vida e aí quem sabe? Tinha esquecido de mencionar ( sempre esqueço de mencionar algo importante que aparece lá pelo meio do conto ) que tinha direito a uma hora de intervalo para saborear uma carne de onça, três bloody marys explosivos, fumar cigarros, filar o jornal da concorrência & jogar conversa fora com os advogados que batiam ponto e enchiam suas bocas arrogantes com o pão com bolinho do Bar do Alaor e ainda dava brecha de dar uns pegas antes de recomeçar a tarde de trabalho. Parecia uma vida mansa. “Ô Vida Boa”, sempre me gritava um dos contínuos e eu apenas piscava um olho por debaixo das lentes dos meus óculos escuros. Vida boa para quem, cara pálida? Tente ler o que a cabeça de gente ser eira nem beira escreve para ver se você não enlouquece. Ou se transforma no próximo Céline. Ou num Bukowski. Ou num Benedetti. E assim caminhavam meus entediantes dias em que eu esperava ansiosamente chegar as quatro da tarde para beber, escrever em casa, ouvir jazz & combinar uma farrinha com a Layla. Os quinhentos davam para o gasto. Todavia – já dizia o sábio adágio – “as aparências enganam”.

Lá pelo meu quarto ou quinto mês fazendo esse serviço burocrático e irrelevante deparei com algo inusitado. Uma mensagem com o título de “Explosivo” veio até minha caixa postal. Como já tinha lido absurdos inenarráveis por toda a manhã decidi que um a mais não faria diferença e cliquei duas vezes com o botão do “rato” sobre aquele novo texto. Coloquei novamente meus óculos de pouco grau e iniciei a vista de olhos. Na terceira linha eu estava estupefato! Nunca tinha visto ninguém escrever daquela maneira! Era doentio. Desagradável. Deselegante. Degenerado. Psicótico. Eu estava adorando aquilo! Uma sentença se fundia com a outra e as ideias do esteta eram lucidas, vividas, corajosas. Nunca tinha visto alguém com tanta coragem! Nem o Anton Antunes escrevia desse jeito. Nem o Leon Watts. Nem o João Mendes. Tampouco o Dalton! Era infernalmente lindo & tocante. Uma nota plangente no coração endurecido do velho Carlo. Parecia que a vida era boa novamente depois de ler aquele cara que assinava simplesmente Adamo Astarth e que restava um fio de esperança e vida inteligente nesse plano de “expiação & dor”. E não era acadêmico. Muito pelo contrário. Os acadêmicos não pontuavam daquele jeito sem um mínimo erro e com um uso perfeito de crase. Não, eu não podia acreditar que aquele diamante bruto tinha caído do nada no meu colo! Eu era “editor de cidades”? Então, depois do soco no estomago daquele magistral conto, eu iria exercer o meu cargo. Iria publicar o tal Adamo. Sem prolegômenos ou delongas. Eu iria ser o “cara” para alguém. Não me importava de ter produzido só um livro. Queria que alguém que realmente fosse um escritor verdadeiro saísse do porão e viesse ver a luz do sol. Era isso. Iria publicar. Que dúvida.

Mandei chamar o babaca que lia em segundo lugar e lhe disse com todas as letras que iria publicar o Adamo. Por minha conta e risco, acrescentei. E que pagassem ao cara com era devido e que iria retornar a mensagem pedindo mais escritos e que estava disposto a dar-lhe um espaço semanal. Resumindo essa conversa era como um cego falando com o monstro do Dr. Frankenstein. Fui em frente e fiz tudo isso. Doa a quer doer. Dane-se. O ser humano está dormindo há muito tempo e tem que haver alguém que belisque a bunda da besta para ver se acorda. Liguei empolgadíssimo para a Layla algum tempinho depois e mandei-lhe uma cópia vida internet. Quando ela retornou estava resfolegante e deveras preocupada. Disse que poderia preparar uma ação trabalhista se eu precisasse. Não entendi patavina do que ela me falou. Perguntei que ela estava enlouquecendo em face dos prazos recursais que ela tinha que seguir e ela me devolveu a pergunta colocando a culpa na erva que eu tinha comprado. Esse mal entendido seria resolvido mais tarde. Aos 43 anos eu estava peitando o status quo. Ou achava, equivocadamente, que estava. Impus-me para valer no lance do Adamo e estava disposto a ir até a Leda se necessário. Sabia que podia contar com ela. Pois sim.

Publiquei duas colunas do cara. Adamo Astarth. E continuei trabalhando bem na minha. Na semana seguinte mais duas. E na outra três. O jornal depositava direitinho na conta bancária que ele tinha fornecido. Agora eu era o “empregado do mês”! Até os contínuos tinha mais trabalho porque eu publicava o Adamo Astarth! A vidinha estava boa e a Lay já tinha desencanado que precisássemos impetrar uma ação qualquer e estava bela e doce como nunca. E eu tinha encontrado meu herói da velhice. Não queria conhece-lo pessoalmente. Isso é perda de tempo e energia. O melhor de qualquer escritor está no papel, no livro ou na tela do computador. O humano quase sempre é desprezível ( pelo menos eu sou ) e estraga e implode a magia. Pela primeira vez estava gostando do ir trabalhar e volta e meia me deparar com aqueles contos loucos, geniais e despretensiosos. Pela primeira vez parecia que o “Evangelho do Trabalho” poderia ter sentido. Ah,ah,ah,!

Tudo é interessante até o dia em que acaba. Cheguei ao jornal naquela manhã que o radio dizia ser a mais fria do ano e preparei para outro turno maçante. Era sexta feira e no dia seguinte eu iria fazer um programinha bem de namoradinho com a Layla , se a ressaca permitisse após um show do blues da noite. Sentei-me como todos os dias, liguei o microcomputador como todos os dias, fui buscar um chá como todos os dias & e o telefone começou a tocar as oito e vinte como todos os dias. Era a Leda. E não como todos os dias. Dá para sentir pelo seu tom frio no aparelho que ela estava furiosa. Comigo. Mandou-me pegar o elevador e subir imediatamente. Eu fui. Quando penetrei em sua sala todos os redatores estavam ali com cara de velório. Eu podia até escutar um tsk,tsk,tsk de lábios secos. Tenho ainda a nítida impressão que alguns balançavam a cabeça negativamente mirando ostensivamente o chão. As bochechas e a testa da Leda estavam rosadas, seus olhos que mudavam de cor, duros como aço, sua expressão mais que fechada. Indicou-me com o dedo uma cadeira de espaldar alto defronte a sua mesa. O que eu teria feito dessa vez? Não escrevia mais nada. Nem imaginava porque estava ali. Ela finalmente abriu a boca. Todos em pé e forçosamente eretos cuidando do piso. O babaquara aqui sentado.

-Você ficou completamente maluco, Carlo Malta. Afirmou Leda por fim.

-Fiquei? Repliquei. Achei que já era...

A proprietária do jornal explodiu de vez. Uma explosão nuclear de vários megatons. Só que não gritou ou berrou, conservou sua tonalidade vocal calma e lucida vários decibéis abaixo do normal o que sempre me abateu mais:

-Não faça piadinha porque você não é Costinha e nem o Ary Toledo. Seu emprego nunca esteve ameaçado jeito que está nesse momento. Você me traiu, Carlo Malta? Enlouqueceu? Já viu a caixa postal do jornal? Quer denegrir nossa imagem, seu redatorzinho de merda!

Nunca tinha visto a Leda insultar desse jeito! Minha reputação tinha sido manchada mesmo. E eu nem sabia por que. Leda virou o monitor de LDC (LSD?) para onde eu estava sentado e mostrou o correio eletrônico entupido de mensagem de desagravos, mensagens de indignação pura, mensagens de xingamentos atrozes, mensagens de ameaças e outros bichos. Agora eu sabia. Eu tinha publicado os escritos do Adamo Astarth! Puta que o pariu! Eu na melhor das boas intenções tinha levado à luz essas preciosidades literárias e o “cidadão de bem” sentiu seus brios ofendidos por pura ignorância e obtusidade. Como eu não poderia ter calculado isso? Como fui burro! O bom, o magistral, o que tem realmente relevância deve ser conservado à sete chaves para algumas mentes privilegiada! Como eu fui tão ingênuo! E aos 43! Tentei dar uma lufada de ar puro naquele jornalão de quinta categoria e agora estava no banco dos réus. A Leda voltou a carga:

-Publicou esse maluco de Adamo sei lá o que! Sem autorização!

-Mas Leda, me desculpe... Eu disse eu iria segurar essa barra. Sei que é meio avançado demais o que o cara escreve. Você não pode negar que é sensacional...

Cortou-me no ato:

-É avançado sim! Mas isso aqui é um jornal, Carlo ( quando ela chamava pelo primeiro nome é que estava começando a se acalmar ) , não uma revista literária de vanguarda e muito menos sarau e menos ainda instituição de caridade. Isso é negócio! Carlo, você consegue entender isso? Meu negócio. Meu pai começou essa coisa e eu estou levando em frente e sou proprietária novamente. Estamos entendidos?

-Sim. Balbucie mais para me livrar daquilo. Ela que me colocasse no olho da rua. 14 anos já. E nem um centavo a mais no banco. Ossos do ofício? Deve ser.

-Façamos o seguinte – ela propôs enfim – gosto de você como pessoa e do que você escreve. Para mim você é um bom profissional. Você continua com seu salário, mas volta para a redação. Sem discussão, Carlo?

-Obrigado, Leda. E levantei-me da cadeira. Ela fez o mesmo. E mandou dispersar aquele bando de abutres que estavam na sua sala. Pediu que eu esperasse um pouco. Todos saíram e nós ficamos a sós naquela sala com ar condicionado. Parecia propicio para começar um relacionamento mais intimo, o que não era o caso, pois éramos dois profissionais. A Leda tornou a sentar-se, reparei numa pequena mudança de luz que alterou a cor de seus olhos que me pareciam mel. Ela disse que a minha atitude tinha sido válida, mas que era para eu parar de vez com Adamo Astarth. Tentei contra argumentar e percebi que isso era pura perda de tempo. Ficamos mais uns quinze minutos falando amenidades e cai fora dali. De volta à redação.

No meu intervalo eu comia uma marmita de yaksoba com peixe e refletia. Ou nem refletia. Estava com a mente vazia. Por puro cansaço. De tudo. Apenas manejava aquelas palitinhos e comia. Meu coração parecia árido como o Atacama. O Leon Watts e o João Mendes passaram e vieram até mim. Falaram que tinha sido genial eu ter publicado os loucos contos do Adamo Astrath. Sorri amarelo. Elas falaram mais alguma coisa que eu nem respondi. Atraquei ao prato. Eles se foram para cumprir suas obrigações. Realmente, o século vinte e um de nada tinha de moderno e ou de atual. O obscurantismo de sempre continuaria dando as cartas. Tudo que fosse de vanguarda seria gravemente rechaçado. Adamo Astrath, meu herói da velhice, seria relegado ao mais puro limbo. Nada que chocasse os padrões vigentes. Alguma dúvida, amigo? E o velho Carlo continuaria redigindo as matérias mais insossas que já se teve notícia.

Por um bom tempo.

Para ver se aprende a parar de fazer merda...

Curitiba, 04 de agosto de 2011. 13:48 – inverno – 7 graus celsius.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 04/08/2011
Código do texto: T3139169
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.