O Senhor de todos os terminais...

Para ganhar tempo e fugir dos costumeiros atropelos de mais uma sexta-feira na vida, Clementino decide passar pelo banco antes mesmo do horário de atendimento ao público. Faria algumas operações nos caixas eletrônicos, e, então, estaria livre para dedicar-se aos demais compromissos do dia 30 de novembro de 2007.

E não é que valera a pena. E como valera... Nunca fora tão fácil estacionar. Clementino poderia, finalmente, sem o menor estresse, deixar o automóvel à sombra daquela tão cobiçada, frondosa e gentil sibipiruna...

Pronto, agora, era só apertar um botãozinho amarelo e, obediente, a imponente porta da agência, como num passe de mágica, abrir-se-ia para o bom Clementino.

Com o pé direito à frente, como era do seu feitio, Clementino adentra o recinto reservado ao “Autoatendimento”, e parece não acreditar nos próprios olhos: quatro terminais disponíveis. Na verdade, eram cinco, mas como um estava em manutenção, havia ali quatro, prontos para servi-lo.

As telas exibiam sorrisos pré-aprovados, e, mais ao fundo, via-se o Corcovado com o Redentor de braços abertos, envolto pela indizível beleza de todos os azuis da Cidade Maravilhosa... No canto inferior direito, lia-se “Contrate aqui.”

Todavia, Clementino só pretendia mesmo saber a quantas andava o seu minguado saldo bancário, e, se possível, retirar alguns trocados para atender às despesas mais emergentes do fim de semana que se aproximava.

(...) O que diriam hoje Orwell (1) e Asimov(2) diante de tantas facilidades !? A verdade é que “1984”, o romance, já ficara em um passado distante...

Clementino, diante daqueles versáteis monitores, ainda que por alguns míseros segundos, chegou, sem falsa modéstia, a sentir-se “O Senhor de todos os terminais” ...

Ninguém, absolutamente ninguém por perto, exceto um dedicado funcionário, que, àquela hora, já se encontrava à porta da agência (...) muito provavelmente para dirimir eventuais dúvidas dos primeiros clientes de mais uma quente e multicolorida manhã de novembro.

Nem mesmo Doralice, a simpática menina da limpeza, havia chegado para a sua lida diária. Clementino não tinha a menor razão para sentir-se pressionado. Poderia consultar o saldo em um terminal, pagar contas em outro, e, ainda, retirar algumas folhas de cheque daquele último, próximo à porta giratória. (...) Mas quantas folhas, questionava-se Clementino (...) quatro, oito ou doze!? Isso Clementino decidiria oportunamente, sem atropelos, como se Clementino fosse protagonista de um comercial daqueles cartões de crédito com bandeiras internacionais; belas paisagens, mulheres glamorosas, carros de luxo, iates, e tudo que o dinheiro é capaz de comprar...

Diante do monitor, Clementino consulta o saldo da conta-corrente. E lá estavam, com todos os algarismos, virgulas e cifrões; duzentos e setenta reais. Clementino pensa, (...) retiro setenta e ainda fico com duzentos. Contou e guardou o dinheiro. Eram três notas de vinte e uma de dez reais.

Tudo resolvido, Clementino dirige-se à porta de saída com ares de dever cumprido, e, cuidando para que ninguém o ouvisse, bem baixinho, sussurra:

“Que bom que deu tudo certo!!! Que bom que deu tudo certo!!!” Clementino consulta o relógio; ainda não eram nove horas.

Clementino já estava prestes a deixar as dependências da ainda pacata e silenciosa agência, quando, apontando para o nada, o tal funcionário aproxima-se e, educadamente, como convém a um atendente, questiona-o:

“Com licença, o Sr. reparou se o banco lhe cobrou IOF sobre as operações realizadas?”

“IOF!”?

“Isso mesmo, o Imposto sobre Operações Financeiras”, prestativo, apressa-se para esclarecer o significado de mais uma sigla na vida de Clementino.

“Não, não reparei. Na verdade, nunca me ative a isso.”

E, enfático, prossegue,

“O senhor já deve estar sabendo que, de acordo com a última Resolução do Banco Central, os Bancos não podem mais lançar débito algum referente a tais operações.”

“Não, não sabia.”

“Mas isso é muito fácil verificar. Basta o senhor consultar o saldo novamente.”

Clementino, então, volta-se para o monitor, e tira mais uma vez o saldo. O simpático atendente, numa breve olhadela, verifica o impresso e, logo o tranqüiliza:

“Tudo bem, senhor. Tudo zerado. Realmente não constam cobranças indevidas. Agora, o senhor pode ficar tranquilo.”

“Muito obrigado. Tenha um bom dia!!!”

Clementino, ainda surpreso com tamanha presteza e amabilidade, agradece, retira-se, e, ato contínuo, dirige-se ao supermercado ao lado da agência.

Pega a primeira cestinha que vê pela frente, um pão italiano fresquinho, crocante, um bom naco de queijo prato, duas garrafas de vinho tinto, e, claro, uma ração balanceada, com legumes e outros nutrientes palatáveis para Filó, a sempre fiel companheira, das horas certas e das incertas também...

Na pequena fila do Caixa Rápido, Clementino fecha os olhos; imagina-se ouvindo Ella Fitzgerald cantar (sic) Everyone is wrong but me(3).

E à noite, entre uma e outra canção, Clementino e Eulália erguem brindes, saboreiam acepipes, desfazem enganos, refazem planos e eternas juras de amor...

(A meteorologia prometia dias de sol e noites de lua cheia...)

“Por que não visitarmos amanhã a Pinacoteca do Estado e o Museu da Língua Portuguesa!? E ainda podemos dar um passeio pela plataforma da Estação da Luz... Que tal !? sugere Clementino.

“Por que não !?” Eulália parece ter gostado da ideia. Afinal, fazia anos que não iam ao centro antigo da cidade, que, agora, revitalizado, oferecia novas opções de lazer e cultura.

“Por que não !? Por que não !?” Era o que ambos diziam...

E foi um lindo passeio. Lá pelas seis, quando a tarde já se ia, e, ainda tímida, a noite surgia, voltaram felizes para casa com algumas fotografias para revelar e outros tantos retratos escritos na memória...

O domingo, como era de se esperar, foi lindo; teve sol, céu azul, uma bem vinda preguiça, e, claro, ao cair da tarde, aquela inevitável sensação de nostalgia...

E assim, lá se fora mais um quente e agitado fim de semana do verão de 2007...

Segunda–feira, 03 de dezembro, oito horas da manhã. O telefone toca. (...) Quem seria assim tão cedo, àquela hora !? (...) Quem seria!? Ainda sonolento, Clementino apressa-se para atendê-lo.

Do outro lado da linha, uma voz feminina apresenta-se como funcionária do Setor de Segurança do Banco do Brasil.

“Bom Dia. É o sr. Clementino?”

“Sim, sim, ele mesmo.”

“Sr.Clementino, lamento informá-lo de que a sua conta foi invadida por algum hacker (4) da “engenharia social”.

“Engenharia social !? Mas o que tenho eu a ver com a “engenharia social !?”

“Absolutamente nada, ou, absolutamente tudo, senhor. O fato é que já contabilizamos um desfalque de quatro mil e trezentos reais. O Sr. precisa ir à sua agência o mais rápido possível e verificar todas as movimentações da última sexta-feira, a partir das 8:40 hs da manhã.”

“E não há como resolver isso por telefone?”

“Não. Não há, senhor Clementino. O senhor, pessoalmente, deverá relatar o fato ao gerente, e verificar quais lançamentos não foram feitos pelo titular da conta.”

“Mas, puxa a vida. Eu não tenho culpa. Não fiz nada errado.”

“Não se trata de culpa, senhor. Estamos falando de uma fraude da qual o senhor não é a primeira, e, infelizmente, não será a última vítima. Mas não se aflija, sr. Clementino. O Banco assumirá todos os custos decorrentes desta operação fraudulenta. O Banco do Brasil reconhece que, como guardião do patrimônio de seus clientes, é responsável por todas as movimentações realizadas no interior de suas agências.”

Já parcialmente refeito do susto, Clementino via-se “sentenciado” a lidar com toda aquela burocracia, (...) por certo, pensava ele, mais uma herança do ultra-ortodoxo direito greco-romano...

“Bem... fazer o quê!? Tudo bem, eu vou consultar o gerente de minha conta, e me informar dos procedimentos necessários.”

Uma sensação de perplexidade toma conta de Clementino, que, sem ter mais o que perguntar, desliga o telefone.

Como em todo o início de dezembro, a árvore de natal do Lago do Ibirapuera começava a ser montada, e já se via, aqui e acolá, um ou outro Papai Noel a distribuir sorrisos virtuais nos ainda raros outdoors espalhados pela cidade.

(...) Puxa a vida ... como o tempo voa. E até parece que foi ontem... pensava Clementino, enquanto dirigia rumo à longínqua agência, e ensaiava uma maneira “didática e objetiva” de relatar o ocorrido ao gerente de sua conta. E não se perdoava por ainda não ter transferido a conta para uma agência mais próxima de sua residência. Mas, agora que “o leite já havia sido derramado” (...) de que lhe adiantaria tanto arrependimento!?

Em um “esforço hercúleo”, Clementino busca na memória todos os passos que dera naquela ensolarada manhã de sexta-feira, desde o momento em que estacionara o automóvel à sombra da gentil sibipiruna, entrara na agência e deparara-se com aquele funcionário padrão, que, antes mesmo de o banco abrir, já estava ali, à espera dos primeiros clientes de mais um movimentado dia de expediente bancário.

Pois bem !!! Como se um interruptor tivesse acionado a sua memória

visual, Clementino, em um impulso audível, deixa escapar:

(...) “Foi ele, não resta a menor dúvida. E ele usava até crachá. Ele me enganou. Puxa a vida! E eu agradeci tanto. Como pude ser tão ingênuo... Eu mereço, eu mereço.”

Clementino não se conformava de ter sido ele a vítima da vez da tal “engenharia social”. Logo ele, sempre cauteloso, para não dizer desconfiado daquelas pragmáticas e insólitas máquinas futuristas...

Claro que Clementino aprendeu que, doravante, todo o cuidado ainda será pouco. Não vai mais se impressionar com a pretensa gentileza de desconhecidos que queiram zelar por seus interesses pecuniários. Não, definitivamente, não vai...

Desolado, para não dizer amargurado, Clementino jamais imaginaria que, no oitavo septênio de vida, “em plena idade da sabedoria”, seria ele a próxima vítima.

Clementino precisava de um ouvido amigo para desabafar e tirar aquele peso dos ombros.

Como sempre, lá estava Filó, atenta, compreensiva e solidária... Clementino, então, aproxima-se dela. Filó apóia as patas no seu peito, como se a pedir que a acariciasse. Clementino passa-lhe a mão na cabeça e no dorso negro e aveludado e, pouco a pouco, vai abrindo o seu coração:

“Sabe, Filó, apesar de tudo; do susto, do trânsito insano e de todas aquelas formalidades, enfim, apesar de “ter caído como um pato no conto do IOF”, ainda assim, acho que vale a pena acreditar no ser humano...

E você, Filó, o que você pensa de tudo isso!? Você não tem nada para me falar!?

Dizem que quem cala consente, Filó...

(...) Eu sabia que você me entenderia (...) Eu já sabia, querida Filó, eu já sabia.”

FIM

Conto de Zizifraga.

Abril de 2010.

Notas:

(1) (1903-1950) Orwell, George. Romancista e ensaísta inglês com preocupações sociais; um observador atento das injustiças e desagregação social. “Mil novecetos e oitenta e quatro” é a visão de um futuro estado totalitário.

(2) (1920 - ) Asimov, Isaac. Autor americano, nascido na Rússia, cujas obras incluem romances de ficção científica e livros de ciência abordando uma extensa variedade de assuntos para o público leigo. Atribui-se a ele o termo “robótica”.

(3) Trad. (ing) “Todos estão errados, exceto eu.”

(4) Pirata da rede de computadores.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 06/08/2011
Reeditado em 19/03/2012
Código do texto: T3143365
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