Tribunal de quê...
Cena: restaurante tailandês. mesas quase todas ocupadas. sexta feira. noite. pouco mais que vinte e uma horas. Curitiba. frio de dez graus celsius.um casal à mesa. outro casal mais afastado, uns cinco ou seis anos mais jovem.
-Tá vendo aqueles dois ali?
-Tô. Resolveu reparar na mesa dos outros?
-Tá vendo como eles se olham? Como as mãos se tocam? Como eles falam aos sussurros?
-Prossiga.
-Tá na cara que estão apaixonados.
-E...?
-Seu sarcasmo me irrita, sabia?
-Sarcasmo? Endoidou de vez?
-Cê sabe do que eu tô falando! De romance. Não vê como ele sorri para ela e ela retribui e aproxima o rosto? Um dia já fomos assim?
-Provavelmente.
-Sabe o que me irrita em você?
-Sarcasmo?
-Dentre outras coisas. Você é frio. Gélido. Seu coração endureceu nesses anos...
-Meu coração nada tem a ver com isso. Você ficou duas semanas inteiras sem me olhar na cara a agora vem com esse papinho furado de “coração”. E ainda vem me falar de frieza?
- Você sabe por que eu fiz isso. Não se faça de tolo. Não queira sair por cima da situação.
-Não, não sei não. O que eu fiz dessa vez?
-Ora, não tem vergonha? Tá querendo começar o quê?
-Nada. Só queria uma explanação plausível e coerente. Naquela segunda feira você estava radiante e na quarta me virou a cara sem nenhuma chance de defesa. Julgamento sumário? Tribunal de Nuremberg?
-Não venha com esse seu palavrório. Guarde seu “francês” para as suas audiências e seus clientes! Tribunal do quê, mesmo?
-Nu-rem-berg...
-Ah, sei lá o que é isso. Mas você...
-Babe, veja bem. Esse é seu problema. Eu falo, falo, falo. E você não me escuta. Nem sabe o que é Tribunal de Nuremberg, porra!
-E o que uma coisa tem haver com outra? Você sempre muda de assunto! Não consegue falar sério? Não consegue ter uma conversa sadia e amena? Sempre quer ser o “inteligente”? Você não se cansa disso?
-Muitas coisas me cansam. Inclusive, isso. Já que você mencionou...
-Sarcasmo de novo! Bem, você sabe o que fez!
-Isso não é uma pergunta retórica: o que foi que fiz afinal de contas?
(bebe mais um gole de seu saquê tépido e fica puto pela cidade ter capitulado diante dessa odiosa lei antitabagismo).
-Você esquece-se de tudo com uma facilidade que nem sei... Quando te conheci achei que você fosse mais sincero...
-Prossiga.
-Segunda vez que você diz isso...
-Está esperta, então?
-Sarcasmo de novo!
-Terceira vez que você diz isso...
-Tá legal, espertinho. Quer saber mesmo! Quem é Michelle? Encontrei um cartão de visitas no seu bolso escrito Michelle Brégola no bolso do seu paletó! Tá de onda por alguma sirigaita aí?
-Essa tal Michelle que você está referindo é um colega. Um homem. Merda. O cara é italiano de Gênova e se pronuncia Mi-Qué-Lle. Miguel. Sacou a parada?
-Tá de sacanagem comigo? Agora vem dizer que...
(ele pega seu celular do bolso e disca um número, ela o fita com um misto de ódio e pesar. Atende-se do outro lado da linha, ele passa o celular para ela que escuta uma voz masculina, ela pergunta quem é e o interlocutor diz: Michelle. Ela desliga o celular. Agora está ruborizada, mas ainda volta à carga).
- Tá, tá bom. Essa passa. Você não está esquecendo-se de nada?
-Se é nossa comemoração mensal ,estamos fazendo nesse minuto e você está louca para estragar porque pensou merda por causa de um casalzinho de moleque que fica nessa de “apaixonado”.
-Comemoração mensal? Acho que vou procurar um psiquiatra para você!
-Que vai olhar na minha cara, deduzir qual seria minha patologia & me encher de antidepressivos ou antiopsicoticos e boa. E isso aí. Tudo que eu preciso na minha vida. Arranjar uma compulsão!
(Ela novamente lhe dirige um olhar, agora condescendentes porém ainda cheio de raiva e rancor, numa clara demonstração de sentimentos contraditórios, e por outra vez fita de soslaio a mesa adjacente onde estão os jovens “pombinhos” dir-se-ia cada vez mais enamorados a cada segundo que passa e agora se enlaçam com as mãos nos ombros, ela suspira e bebe um gole de seu suco que estava pousado num copo alto por ali. Recomeça a falar.)
-Tudo que eu falo você distorce! É uma coisa impressionante! Tudo que eu falo você pega uma ou duas palavras tira do contexto e distorce! Como pode isso? Daqui a pouco estaremos discutindo sobre o comportamento sexual das toupeiras!
-Olha, isso que é assunto...
( Ela corta.)
- Não acabei de falar para você que distorce tudo! ( seu tom de voz aumenta um pouco.)
-Tá. Beleza. Cê fica falando, tagarelando, dando volta e acaba não falando que foi que eu fiz!
-Não se faça de besta! Você não me deu seu cartão para comprar o presente de aniversário da mamãe! Você tinha combinado isso comigo! E no dia que fui pedir seu cartão você saiu mais cedo para o escritório e só avisou a diarista! Tive que gastar do meu dinheiro e resolvi nem te dar satisfação depois. Hoje que você me vem com essa história de “jantarzinho romântico com comida tailandesa”.
-Ora babe, faça-me o favor! Vou eu tirar meu rico dinheirinho para presentar da megera da sua mamãezinha que me chama de maconheiro desde que nós nos conhecemos? Só para sua cabecinha cheia de mimos e de vontades para conceber um absurdo desses! E no dia que eu falei que ia pagar essa porcaria era porque você estava surtando eu queria acalmá-la para ver se você parava de torrar o saco! Eu já estava desconfiado você tinha problema sério com a aquele advérbio de negação.
-Já começou o falatório de novo? Maconheiro você é mesmo...
(A vez de ele cortar o raciocínio).
-Mas ninguém precisa alardear essa minha “deficiência” na primeira página da Tribuna...
(Ela volta o discurso.).
-E que você quer dizer com “torrando o saco” & “surtando”?
-Procure no dicionário.
-Ironia? Outra vez?
-Pelo menos você virou o disco e trocou o “sarcasmo” pela “ironia”.
(Ele resmunga algo para si mesmo e então repara no casalzinho jovem num ardente beijo hollywoodiano e logo vem um sentimento nostálgico, mira os olhos de sua parceira que são verdes e intensos, faz uma analise meticulosa de seu lindo rosto com um nariz muito bem esculpido pela natureza e a boca carnuda sensual, ele ainda sente algo nobre e bonito por ela. Repara no garçom e chama para pedir mais uma saquê e a conta. Ela fica em silencio pelo primeiro momento da noite, a luz do restaurante é difusa e suave, o lugar começa a esvaziar e ficar mais convidativo. Ela suspira e o fita também. Parece que uma aura os envolve naquele exato momento. Ela abre a boca, depois de algum tempo ).
-Sabe amor, andamos nos desentendendo muito nesses últimos tempos, você não acha?
-Acho. E por coisas banais que não nos dizem respeito. Detesto jovenzinhos se “malhando” e se lambendo em público. Querem fazer essas coisas se tranquem num quarto de motel e se fodam até ralar & sangrar...
-Concordo com você. Concordo mesmo. Já pediu a conta?
-Mais um desses aqui (mata o resto do copo) e eu pago e a gente vai. Poderíamos assistir a algum filme que eu baixei essa semana. Você escolhe.
-Boa ideia a sua. Vamos tomar um drinque naquele lugar que você descobriu amanhã?
-Se você quiser. Depois da minha fisioterapia. Essa coluna está me matando. Porque eu não fiz medicina? Essas horas poderíamos estar em Malibú, enchendo a cara de tequila, fazendo amor na areia da praia e coçando o saco. Merda de faculdade de Direto. Só pra arruinar com a coluna da gente.
-Cê quer massagem, meu bem? ( Ela faz uma expressão infantil e cheia de malicia ).
-Aceito.
( O garçom chega com a bebida, ela vira de um trago profissional, pega seu cartão na carteira que está no bolso esquerdo traseiro da sua calça jeans customizada e paga a despesa ).
- Vamos nessa?
-Vamos. Tem um pouco do seu uísque preferido em casa. Você bebe um pouco. Vemos um filme, faço sua massagem...
-Não quero planejar nada. Vamos nessa. Vamos deixar rolar. Essa noite é nossa, babe.
-Que ótimo, amor. Estávamos precisando.
-Com certeza.
(Eles levantam-se e saem caminhando. Ganham a rua. A temperatura caiu um pouco mais. Ele para, cutuca seus bolsos em busca dos seus cigarros de filtro amarelo. Leva um à boca. Ela fez o mesmo. Acendem acionando seus isqueiros Zippo que tem seus nomes gravados. Entram no carro e quando ele dá a partida já se esquecerem completamente do casalzinho ostensivamente apaixonado que viram no restaurante ).
Geraldo Töpera, Curitiba, 12 de agosto de 2011. – 19 graus celsius – inverno.