O céu ainda prometia estrelas e lua cheia...

Naquela manhã bem cedo, antes mesmo do sol raiar, na obstinada luta por emprego, Laerton Alves da Silva saiu com todo o cuidado, na ponta dos pés, driblando tacos soltos para não acordar Maria Madalena, nem a pequena Sophia, que dormia o sono dos recém-nascidos, e de quem a vida ainda pouco, ou, quase nada exigia.

Era setembro de 2009, primavera ao sul do Equador.

Os noticiários televisivos informavam que a economia andava a passos largos, as exportações batiam recordes nunca vistos, o PIB(1) fora o maior dos últimos trinta anos, e a “camada pré-sal”, que garantiria auto-suificiência em petróleo cru para o país, estava em vias de ser explorada.

E, como se tudo isso não bastasse, a sempre elegante e sorridente moça do tempo previa dias agradáveis e ensolarados para aquele atípico final de inverno. Da serra do mar, soprariam brisas amenas que dispersariam os poluentes, tornariam o ar mais puro, e à noite, (...) bem, à noite, o céu ainda prometia estrelas e lua cheia.

E, enquanto caminhava sob tímidos raios de sol de mais um dia na vida, Laerton, bem baixinho, sussurrava,

(...) Será que a sorte, finalmente, veio bater à nossa porta!? Será !?

Quem sabe, naquele momento, lá em casa, entre um e outro cochilo matinal, Maria Madalena talvez sonhasse com dias mais promissores para a sua sagrada família, em especial, para a pequena Sophia, que, àquela altura, ao espreguiçar-se parecia já não se conformar com os limites físicos do diminuto e improvisado berço de vime, papelão e juta.

Todavia, para conquistar a tão disputada vaga, Laerton sabia que teria de preencher alguns pré-requisitos; entre eles, ser competitivo e ambicioso. Laerton tinha plena consciência de que, por mais que se esforçasse, jamais conseguiria ser competitivo, muito menos ambicioso, mesmo assim, um tanto reticente, Laerton decidiu tentar.

O virtual candidato deveria, ainda, em traje social, (sic) munido de documentos e foto 3X4 recente, apresentar-se à Sra. Rosália, chefe do setor de Rh.

Apesar da subjetividade de um ou outro tópico, para lá acorreu um sem-número de pretendentes, impossível precisar quantos, talvez duzentos, ou, até mesmo trezentos...

Laerton, que estudara até o 3º ano do ensino médio, era leitor assíduo dos tablóides diários, o que lhe dava razoável cultura geral, e reforçava os poucos anos de estudo regular, mas, autocrítico, ou melhor, o mais severo crítico de si mesmo, como com razoável frequência costumava se defenir, Laerton sabia que aquilo não seria o bastante para tornar-se mais um gladiador engravatado em um mundo formal e de poucos amigos. Mesmo assim, como todo o bom capricorniano, o persistente Laerton jamais pensou em desistir, em jogar a toalha, como se diz por aí.

Logo ao chegar, deparou-se com uma desordenada e ruidosa multidão à porta de um antigo edifício, estilo "Art Noveau", que, embora tombado pelo patrimônio histórico, apresentava mau estado de conservação. Chegava mesmo a sugerir certo abandono, para não dizer um imperdoável e incompreensível descaso com a memória arquitetônica, histórica e cultural da cidade.

Laerton recebera a senha número 170. E todas as vezes que a porta se abria, ele conferia o pequeno papel, já amassado pela longa espera, e pelo indisfarçável nervosismo de suas mãos trêmulas e um tanto úmidas.

Laerton ajeitava a gravata azul marinho, herança do querido e saudoso tio Basílio, abria e fechava o jornal, corria os olhos, ora pela seção de Esportes, ora pela de Entretenimento e Variedades, mas, àquela altura, ele pouco ou quase nada apreendia. Laerton não conseguia deixar de pensar na iminência da entrevista, e nas jóias raras que lá em casa deixara; Maria Madalena e a pequena Sophia.

Pouco a pouco, aproxima-se a dezena dos “algarismos setenta”. A ansiedade cresce, toma conta de Laerton, que, discreto, enxuga o suor das mãos, faz figa e mete-as novamente no bolso.

Laerton era um tipo supersticioso, quase compulsivo, especialmente quando "a pátria calçava chuteiras", ou, sempre que sentia que poderia fazer um gol no ilógico, disputado, e nem sempre leal jogo da vida.

Finalmente, uma voz feminina, firme e contundente ecoa pelas paredes do oitavo andar, anuncia o número 170. Laerton levanta-se, e, com o pé direito à frente, adentra a sala de entrevistas.

Sentada à mesa, entre pastas, agendas, telefones e monitores, uma jovem senhora de cabelos castanhos escuros, penteados com uma espessa camada de gel fixador, usando cílios postiços, batom e unhas cor de vinho, estende-lhe a mão e convida-o a sentar-se.

Depois das formalidades de praxe, Laerton, via-se, finalmente, diante da Sra. Rosália, que, ao abanar-se com um pequeno leque, "Made in China", e, olhando para a janela semi-aberta, passa a tecer pontuais comentários sobre a quase infalível meteorologia.

“Que ar abafado; hoje chegaremos aos 34º. Deve ser o tal efeito estufa, o buraco na camada de ozônio, esse insano e cruel desmatamento. E a primavera... sequer começou...”

A Sra. Rosália, então, recoloca os óculos de leitura, e, com a ficha diante de si, observa.

“Que letra bonita, Sr. Laerton, então, o Sr. tem 33 anos, estudou até o 3º ano do ensino médio, é casado e pai de uma menina... Qual o nome dela ?”

“Sophia”, com “ph” responde prontamente Laerton, revelando um indisfarçável orgulho paterno.

”Que nome bonito, o Sr. tem bom gosto.” olhando para Laerton sobre os óculos de leitura, agora, apoiados na ponta do nariz.

“Muito obrigado”, responde Laerton, sem desviar o olhar do pequeno "mouse" iluminado sobre a mesa.

E o senhor tem algum "hobby", isto é, algum passatempo, algo que amenize as inevitáveis agruras do dia-a-dia!?”, prossegue a simpática entrevistadora.

“Bem, eu gosto muito de escrever pequenas narrativas, de retratar fatos e personagens do cotidiano. Na verdade, sou um “escritor de brochuras”.

“Escritor de brochuras!? E o Sr. já publicou algum livro!?” curiosa, intervem a Sra. Rosália.

“Bem, livro, livro, ainda não. Como lhe falei, escrevo pequenos contos que retratam lugares e personagens do cotidiano. Confesso que alguns desses personagens são meus próprios alter egos.”

“Como assim, alter egos !?”

“Quero dizer que são os outros “eus”, com os quais convivo.”

“Puxa, que interessante, Sr. Laerton. Então o Sr. é um escritor de brochuras. Jamais alguém aqui se apresentou como escritor de brochuras. Parabéns!!! Sabe, Sr. Laerton, eu também gosto muito de escrever, mas não tenho coragem de mostrar os meus escritos a ninguém. Ainda me vejo uma adolescente fazendo confidências em diários... Mas, quem sabe um dia ... eu... bem... quem sabe um dia... sei lá...” prossegue a jovem senhora...

“Pois bem, Sr. Laerton, quanto ao motivo da sua vinda aqui, devo informá-lo que a vaga que o Sr. pleiteia, já foi preenchida. A concorrência pelo cargo de “assistente de telemarketing” superou todas as nossas expectativas;

(...) talvez seja consequência da atual política econômica, dos juros estratosféricos, da desmedida voracidade dessa nossa carga tributária, mas, como dizem por aí... e, se isto pode lhe servir de consolo, nada como um dia após o outro, não é mesmo senhor Laerton!?”

Distante, talvez perdido em longínquos devaneios pós-adolescentes, Laerton mantém-se calado. Até parecia que, naquele momento, o seu silêncio falava mais alto que todas as palavras da língua portuguesa...

Enquanto isso, a senhora Rosália consulta o relógio, e, um tanto sem jeito, ora abrindo, ora fechando gavetas, prossegue, “mesmo assim, foi muito bom conhecê-lo, Sr. Laerton. Afinal, foi a primeira vez que tive a honra de entrevistar um escritor de brochuras.”

O telefone toca e a Sra. Rosália não conclui o pensamento. Atende-o, pede ao interlocutor para ligar mais tarde, gira a cadeira, e, olhando para o nada da parede à sua frente, manifesta certa inquietação,

(sic) “já pedi que não me transfiram ligações, enquanto entrevisto candidatos, mas não adianta, parecem fazer ouvidos moucos aos meus reiterados apelos. O Sr. me desculpe...”

E com gestos quase protocolares, já sem os óculos de leitura, completa,

“Sr. Laerton, devo informá-lo que o seu curriculum vitae foi automaticamente incluído em nosso banco de dados, e, caso surja uma nova oportunidade, entraremos em contato. Claro, desde que até lá, o Sr. ainda esteja interessado. Por ora, só me resta agradecer-lhe a presença, desejar-lhe boa sorte, e fazer votos para que, deste nosso encontro, o Sr. possa, um dia, quem sabe, vir a escrever um novo conto...”

Aquela não fora a primeira, nem seria a última vez que Laerton acreditara nas pesquisas de opinião pública, nos números da macroeconomia e no desmedido e tendencioso ufanismo dos telejornais noturnos...

Laerton, então, levanta-se, posiciona a cadeira no devido lugar, e, estendendo a mão direita, despede-se da Sra. Rosália, atravessa a sala de espera, e, ao sair, já no pequeno hall do oitavo andar, ouve a mesma voz firme e contundente ecoar novamente pelo corredor a anunciar:

“Número um sete um, pode entrar, por favor”

Naquele momento, Laerton não queria ser visto nem mesmo pelo simpático e falante ascensorista. Aproximou-se da escada e, degrau por degrau, desceu do oitavo andar ao térreo; Laerton, agora, só tinha pensamentos para o aniversário de Maria Madalena, e, claro, para as incontidas e eufóricas gargalhadas da pequena Sophia.

Já na calçada, em frente ao edifício, havia muitos homens e mulheres vivendo da informalidade. Vendiam toda a sorte de quinquilharias Made in Taiwan, Macau e Hong Kong. Laerton encantou-se com o brilho de uma bijuteria de cristais verdes, amarelos e cor de anil, uma gargantilha de pedras semi-preciosas com a bandeira nacional à venda por “módicos” treze reais.

(...) Maria Madalena vai ficar ainda mais bonita, ponderava Laerton ao admirar o falso brilhante. Com o troco de vinte reais, ele comprou uma simpática girafinha de plástico, Made in Cingapura, para a pequena Sophia...

Era 06 de setembro de 2009, véspera do Dia da Independência, e aniversário da amada e gentil Maria Madalena.

Já com os presentes no bolso do velho casaco de linho, Laerton apenas sussurrava... (...) será que elas vão gostar!? E, em um segundo momento, como se tentasse convencer-se de que realmente fizera uma boa ação, apenas repetia, “Elas vão adorar. É claro que elas vão adorar...”

E, enquanto o ônibus garimpava preciosos espaços nas estreitas e congestionadas ruas do centro velho da cidade, Laerton, à janela, contemplava mais um longínquo e fugidio pôr-do-sol, até que, por um único, raro e bem vindo momento, parece sentir-se novamente confortado e envolvido por uma indizível sensação de bem estar, paz e esperança...

Laerton, agora, não via hora de voltar para casa. É que Laerton lembrara-se de que, segundo a científica e quase infalível meteorologia, à noite... bem... à noite... o céu ainda prometia estrelas e lua cheia...

FIM

Conto de Zizifraga

Julho de 2010.

Nota:

(1) Sigla de Produto Interno Bruto

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 12/08/2011
Reeditado em 11/03/2012
Código do texto: T3155952
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