Êxodo

Lutou contra a seca, as geadas, inundações e pragas, venceu todas, com dificuldade e esperança em tempos melhores. Perdeu numa única batalha o gado, a criação, o terreno e a casa, para um adversário inatingível, o banco que financiou a sua ultima safra destruída pelas trovoadas de granizo.

Não abandonou tudo, foi obrigado a sair com a esposa que estava no quarto mês de gestação.

A única vantagem que levaram sobre a situação de quando haviam nascido era a roupa do corpo.

Partiu para nunca mais retornar e uma única preocupação, a de arrumar trabalho imediato para poderem comer. Levou sorte, assim que desembarcou na rodoviária havia uma vaga de atendente do banheiro publico dos homens. Ela ficava sentada nos bancos de embarque de passageiros e ele oito horas direto, sendo atacado por todos os tipos de gases.

A quentinha que recebia da prefeitura dividia com a esposa, sendo a única refeição do dia de ambos, isto quando ele não estava enjoado.

A troca do ar puro do campo pelo ambiente mal cheiroso lhe causava mal estar constante e a esposa, a poluição , emanada dos escapamentos dos ônibus lhe desenvolveu uma tosse intermitente.

Dormiram uma semana nos bancos da rodoviária, depois se alojaram na sala de limpeza.

As noites curtas e mal dormidas faziam que ele relembrasse a sua lida nas suas terras.

Acordava com o nascer do sol..

O café já estava na mesa, pão caseiro, ricota, queijo e leite à vontade.

Cuidava inicialmente da criação de patos e galinhas, para consumo da casa, depois tirava o leite para fazer queijo.

A esposa lhe ajudava na ordenha e voltava para seus afazeres domésticos e ele ia a para a roça .

A noitinha recolhia o gado e após, junto ao fogão a lenha planejavam o dia seguinte antes de dormir.

Ainda se lembra quando um técnico veio para lhe oferecer um grande negocio.

Plantaria soja na safra seguinte, em vez de milho e feijão.Toda a produção já estava vendida, o que necessitaria era plantar.Para isso teria que fazer um financiamento para comprar equipamentos e sementes

.Os juros, segundo o técnico, praticamente zero.

A esposa não via com bons olhos o endividamento e principalmente colocando as suas terras em garantia.Não sabe como foi assinar aquele contrato.

Quando fecharam a porteira e partiram, o olhar da esposa estava vazio e nada lhe disse,

preferia que ela tivesse brigado com ele,

Mais um dia de serviço, novo dia de suplício. Dias depois a esposa conseguiu um trabalho na cozinha de um restaurante próximo e a alimentação melhorou, sobrava a quentinha só para ele.

Não agüentou mais, ver a esposa grávida dormir sobre tarimba enjambrada

e tomar banho em banheiro de rodoviária, Estava com nojo até de si próprio seu uniforme fedia a desodorante de vaso sanitário .

Arrumou um serviço no restaurante que a esposa trabalhava, ela foi demitida por estar no sexto mês de gravidez.Ele ficou então encarregado da faxina.

Uma noite a esposa passou mal e ele imediatamente a levou ao hospital.

Ficaram a madrugada inteira na recepção e uma boa parte do dia seguinte.

Ao ser examinada o diagnóstico comprometia a esposa e o filho, teria que ficar internada.

A recepcionista veio fazer a sua ficha e perguntou?

- Senhor tem algum plano de saúde?

-Não senhora, não tenho!

-No momento só temos apartamento para internação particular, e o senhor terá que fazer um depósito de garantia .

-Que depósito?Perguntou ele surpreso

-Em dinheiro..

-Não tenho!Respondeu de imediato

-Então o senhor terá que procurar outro hospital.

-Mas como vou leva-la neste estado! Disse ele apontando para a esposa.

-Ela pode ficar aqui no corredor até o senhor arrumar uma condução para leva-la.

-Como arrumar uma condução?Não conheço ninguém na cidade!Disse ele ao ver que o

estado de saúde da esposa piorava.

A atendente virou as costas e deixou ele ao lado da maca no corredor.

Um senhor numa outra maca ao lado lhe chama;

-Moço! leva sua esposa daqui rápido, estou aguardando um quarto há dois dias

Neste instante vários estudantes de medicina se aproximam, um deles parecendo ser o professor, pergunta o que o homem tem.Ele faz de conta que não ouve e vira-se para a parede.

Anoitecia, de joelhos no chão abraçado a esposa, ele pedia aos médicos que passavam no corredor para atende-la e recebia a mesma resposta.

-O precisa fazer a internação dela.

Sem saber a quem recorrer ou o que fazer começa a implorar para que alguém alivie o sofrimento da mulher.

Sua suplica se transformou em revolta e deu um murro no balcão da portaria, quebrando um vidro da divisão. O segurança foi chamado e tentou inutilmente coloca-lo para fora do hospital.

A polícia foi chamada, dois inexperientes soldados tremiam de medo de se aproximar do homem pálido com os olhos esbugalhados que não queria sair do local.

Chamaram reforços, que veio rapidamente.

No camburão o homem chorava, não da dor das cacetadas recebidas por todo o corpo, nem do supercílio cortado que esguichava sangue.

Chorava por não estar ao lado da esposa que lhe olhara da mesma forma do dia que deixara sua casa.

Na delegacia um policial lhe chama.

-Tu é o valente do hospital?

Ele não responde e um outro lhe dá um murro na orelha, com as duas mãos abertas, conhecido no meio policial como telefone .

Caiu tonto e ao tentar se levantar recebeu mais, outro, caindo de vez e ao mesmo tempo foi chutado, por vários outros, que lhe quebraram duas costelas.

Jogado numa cela vazia, ficou cinco dias sem atendimento médico.

Liberado foi direto ao hospital que havia deixado sua esposa.

Não conseguia ouvir o que a atendente lhe dizia, a pancada nos ouvidos o deixara surdo.

Trabalhou por mais três meses no restaurante e saiu.

Caminha lentamente pela cidade, o mesmo banco, outra agencia, não importa tudo é igual, procura o gerente.

Sentado na sua mesa com um cliente o gerente pede para que ele espere.

Ao ser atendido ele pergunta:

-O senhor faz empréstimo para plantação?

-O que o senhor pretende plantar? Pergunta o gerente.

-Soja!Respondeu ele entre os dentes.

-O senhor tem garantias para dar pelo empréstimo?

Dois tiros ecoaram na gerencia, o segurança de arma em punho entra na sala e recebe o terceiro na testa.

Sai do banco calmamente e entra num táxi em direção ao hospital.

O motorista o vê completando a carga da arma e fica quieto, aquele homem trazia estampado a morte no rosto.

Entrou no hospital entre doentes que esperavam atendimento.

Olhou a maca vazia e imaginou sua mulher, viu o segurança, viu um médico passando.Dois tiros a curta distancia e dois corpos no chão.A policia não tardou.

O corredor ficou vazio, ele sentado na maca recarregou a arma e aguardou.

O delegado com mais cinco policiais bloquearam a única porta de acesso nenhum arriscava adentrar, aguardavam reforços.

Não havia ódio em seu rosto, não havia tristeza, não havia nada, quando ele calmamente caminhou em direção aos policiais com uma mão nas costas.

Nos gritos temerosos dos homens um sobrepôs :

-Levante as duas mãos!

Ele continuava a caminhar na direção deles com uma das mãos as costas, sem nada dizer.

O seu olhar cruzou com o do delegado, olhar que já haviam se cruzado antes.

O delegado reconheceu o homem e foi o seu erro fatal.

Dois tiros foram dados, o do delegado alojou-se na parede da recepção e o dele na cabeça do delegado.

Pulou sobre o delegado que agonizava e efetuou mais quatro disparos, dois deles atingindo em cheio aquele que o deixara surdo.

Uma saraivada de balas em sua direção jogou-o sobre o balcão inerte.

Alguém chorou a morte de sua esposa e filho.

Ele não tinha quem chorasse a dele, na hora.

Chorei muito tempo depois!

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