A FLAUTA DOURADA

               (Se existe alguma coisa que realmente me faz sofrer é a consciência da própria mediocridade.)


          Quando desci do bar principal para o recinto da churrascaria, hipnotizado pelos primeiros acordes de uma flauta — como os ratos de Hamelin — a mesa comprida, forrada de tecido vermelho, já estava composta: em uma das cabeceiras, recostado, com a cabeça levemente pendida para frente, sentava-se o Dr. Américo, absorto na contemplação da taça de conhaque diante dele. A esposa, a sua esquerda, ocupava a extremidade lateral da mesa. Todos os seus movimentos para beber, fumar e até para falar, denunciavam um caráter soberbo e agressivo. De frente para ela, no lado oposto da mesa, o flautista encaixava pilhas num pequeno gravador de fitas, ao mesmo tempo em que cortejava os circunstantes com gracejos e sorrisos. Era alto e magro, tinha um rosto comum. A seu lado, circunspeto, o violonista dizia galanteios a Bianca, uma moça com quem eu falara umas poucas vezes no fórum da cidade. A expressão da moça era um contínuo transfigurar-se, ora de enfado, ao desestimular a tímida e inoportuna abordagem do homem do violão, ora de desacanhada sedução feminina, a reclamar para si as atenções do rapazola de perna engessada, a sua direita. Esse, porém, com gestos graciosos, expunha a seu novo amigo, um forasteiro, os motivos que o tinham levado a abandonar o colégio. O visitante, debruçado sobre a mesa, ouvia com ar sonolento, as lamentações de seu interlocutor. Entre a mulher do médico e o rapaz de fora, um casal trocava carícias, alheios à roda. De vez em quando, a cara barbuda dele surgia de entre a vasta cabeleira black power dela e vagava o olhar pela mesa, pela sala, pelas pessoas, ostentando um olhar benevolente de quem assiste a um espetáculo pobre de arte, porém, de seu confortável camarote privado. Completavam a mesa a viúva e seu filho, na outra cabeceira, ambos louros, ela mais afogueada de faces que o menino. A mãe bebia. O filho alternava bocejos e acessos de tosse. A mesa toda era um burburinho de vozes e copos, vozes amolecidas pelo conteúdo dos copos vazios. O garçom trazia mais uma rodada.
          Esparsos pela ampla sala da churrascaria, grupos de rapazes barulhentos aguardavam o início da seresta. No centro do salão, sob uma roda de carroça, à guisa de lustre, algumas professoras, de idades indefiníveis e sem casas para chegar, consumiam a noite em arremedar felicidade, bebericando doses e doses de euforia alcoólica. Há pouco, nem bem eu me instalara junto às folhagens arranjadas sobre imensos cochos e velhos almofarizes, elas haviam se aproximado de mim, pretensas a uma confraternização. O descaso com que imitei o ruído do encontro dos copos, fez com que elas mudassem de ideia. É claro que as poucas aulas que eu assumira no colégio, recém-chegado à cidade, não me punham nessa confraria. Alguém me tocava o ombro. Era um colega da seção de pessoal da firma onde trabalhávamos.
          — Olá! Apreciando o movimento? — disse-me, procurando uma cadeira com os olhos.
          — É.
          — Estou esperando que aprontem um frango à passarinho pra levar pra casa — informou-me, sem eu ter perguntado. Sentou-se e, talvez por não lhe ocorrer assunto, passou a examinar uma peça de madeira, cilíndrica, oblonga, protuberante nos dois extremos.
     — Mão de pilão — concluiu, após alguns instantes.
     Recolocou-a de pé, apoiada na mureta, na vaga entre dois cochos de samambaias e esteve pensativo por breves segundos.
     — Vamos tomar uma bebida? — convidou ele, como se tivera uma grande ideia.
     — An-han — concordei, indiferente.
Ele pediu cerveja e eu outro vermute. Começou a falar sobre o dia estafante que tivera. Depois que as bebidas chegaram, discorreu sobre aberturas, velocidades, distâncias e processos fotográficos, um “bico” que arranjara para completar o salário minguado. Narrou-me em detalhes desnecessários, sobre como o pai, que fora rico um dia, deixara uma fortuna esvair-se em malfadadas transações comerciais. Mal soube dissimular o desagrado em ter “o velho” sob suas expensas. Revelou-me planos para o futuro. Ele tinha planos. Parou de falar, consultou o relógio e julgou que sua encomenda estivesse pronta.
          — Eu já vou. Quer uma carona? — perguntou-me, erguendo-se.
          — Eu vou ficar mais um pouco, obrigado — respondi aliviado de poder continuar sozinho.
Da mesa grande ouvia-se a sexta corda do violão buscando assonância com o mi voluptuoso e prolongado da flauta dourada. O som dos dois instrumentos sobrepujava o rumorejo interminável dos convivas.
          — Mais um? — apontou o copo vazio o garçom.
          Fiz que sim com a cabeça.
          — Meus queridos amigos... — e todos, após localizarem a voz, dirigiram o olhar para o homem da flauta que, empunhando o microfone do gravador, envolveu com os olhos, num amplo movimento de cabeça, todas as pessoas da sala e, de pé, exibindo sua figura quixotesca, porém, vestida com imaculado terno de linho branco, continuou com uma fluência arrogante:
          — Meus queridos amigos, temos por costume, eu e Rangel... — e torcendo o corpo com elegância de toureiro, estendeu o braço que segurava o fone em direção ao violonista que sorria subserviente, apresentando-o — deixar gravada nossa seresta e oferecer a fita a uma dama da sociedade local.
          Ele frisou estas quatro últimas palavras com uma ênfase um pouco mais que necessária. Com um brusco menear do corpo, inclinando-se para a mulher do médico, anunciou:
          — A dama a quem vamos entregar essa recordação viva de nossa estada nessa maravilhosa cidade é a bela senhora que aqui está: a senhora Nancy — e respirou sofregamente enquanto relanceava a vista em busca de aprovação e elogios.
          — Oh! Carlos, você me deixa muito lisonjeada com esta distinção — soou a voz da senhora Nancy, rouca de muitas noites varadas em claro. Vislumbrei uma expressão de mágoa no semblante do marido e uma intenção lasciva insinuada na boca rasgada e sorridente do flautista. A bocarra contraiu-se ofendida quando a dama rouquejou com certo desdém:
          — Espero que as músicas saiam boas...
          O músico aprumou-se, refez a imagem estudadamente simpática, consultou por um momento o calendário do relógio e levantando o microfone à altura do queixo pontudo, prosseguiu:
          — Hoje é quinze de outubro e estamos nesta noite em companhia de amigos no clube... — e desligando o gravador, indagou ao parceiro, em voz baixa: — Como é mesmo o nome desse clube?
          — Caju. Clube Atlético de Jupiá — asseverou-lhe Rangel, polidamente.
          — Clube Atlético de Juquiá — confundiu-se o flautista entre os movimentos de liga e desliga no interruptor do aparelho.
          — Ju-pi-á — corrigiu Rangel, querendo ser prestativo.
          — Ah! Deixa pra lá — revidou o flautista em tom de desagrado.
          O homem do violão obtemperou uma desculpa inaudível e acabrunhou-se apoiado no instrumento ainda mudo. O prolixo soprador de flauta persistia no fastidioso discurso de abertura. Falava de si. Vangloriava-se descaradamente. Fez saber aos circunstantes que era artista da TV Rio. Tinha discos gravados e trazia alguns consigo que exibia aos mais próximos com satisfação e orgulho.
          — Estes discos vocês poderão ouvir em suas casas... — dizia. — Eles são muito bons. Aliás, tenho um contrato com uma excelente gravadora, super moderna, uma das mais avançadas na tecnologia dos micro-sulcos, uma absoluta perfeição na arte de reproduzir sons. As minhas interpretações ganham mais fidelidade, mais... E a falácia do verboso músico perseverava sem sinais de fadiga. Falou ainda de seus dotes artísticos, reclamou das frequentes atravessadas de seu violonista depois que esse aceitara uma candidatura para vereador. Não sei como, chegou a uma preleção sobre instrumentos de sopro. Dividiu-os em dois grupos e explicou a diferença entre o sopro nas palhetas e nos bocais côncavos. Discorreu sobre as várias nuances melódicas em instrumentos como pífaros, oboés, fagotes e até mesmo no hélicon. Confundiu muito. Confiava na ignorância dos ouvintes. A maioria dos rapazes das mesas vizinhas já havia desistido da seresta e deixado o salão em busca de programa mais ameno.
          — Esta flauta dourada é austríaca — explicava ele. — Já tocou muitas valsas em coretos vienenses. Um imigrante trouxe-a na época da segunda grande guerra, ganhei-a de um amigo há muitos anos. É uma maravilha! – encerrou abruptamente a fala, fixou o microfone no pequeno suporte sobre a toalha escarlate e, ato contínuo, levou o instrumento aos lábios. O ar vibrou com a ondulação harmoniosa de notas perfeitas, subindo em puríssimos agudos e baixando em acariciantes graves. O violonista dedilhou as cordas de nylon e os compassos iniciais de “Carinhoso” dos imortais Ataulfo Alves e João de Barro, introduziram o solo da flauta. Era perfeito. A melodia básica se enriquecia de mil arranjos somente possíveis para um bom intérprete. O líquido viscoso e rubro da bebida amargou-me a boca. Um sentimento de tristeza invadiu-me, penetrou os esconsos de minha consciência e emergiu transmutado em — dói-me confessar — pura inveja. A flauta dourada era realmente uma preciosidade, tal a pureza de suas notas. Eu possuíra uma idêntica. Eu tivera, aliás, toda a sorte de instrumentos musicais, desde simples harmônicas de boca até um nobre piano de cauda, desde caixas de percussão de diferentes formas e tamanhos até uma complicada bateria trabalhada em madrepérola. Na imensa câmara onde eu os colecionava, havia desde a réplica de uma antiga tiorba até a mais moderna e reluzente guitarra elétrica. Eu amava especialmente minha flauta dourada, embora, não conseguisse executar bem uma única partitura com ela ou com qualquer outro instrumento. Sentia a música no imo de meu ser, mas Deus me havia negado o dom de produzi-la. A flauta, contudo se perdera, não sei se na mudança ou durante o embargo.
          
          A melodia suave de “Canção para Ana” embalava-me agora. Despertou recordações sombrias que há dez anos teimam em me atormentar, dia após dia, noite após noite, minando qualquer alento da vontade de me abrir, apagando todo o ânimo de enfrentar, sem predisposição ao alheamento, esta vida desgraçada.
           Há uma década eu era um homem realizado. Possuía dinheiro e posição social. Era bajulado por quantos me cercassem. Movimentava grandes somas em complexos e variados negócios no mundo das finanças. Depois veio a revolução silenciosa de sessenta e quatro que me surpreendeu num vultoso compromisso financeiro. Os prazos de crédito foram reduzidos. Desfiz-me rapidamente de vários imóveis para salvaguardar o empreendimento que começara. O dinheiro estava altamente inflacionado. A imobiliária faliu dois anos depois. A minha descida foi lenta, mas irreversível. Restou-me a imensa casa e tudo o que nela havia. Mas, ainda me perseguiam os credores. Hipotequei-a. Descobri nessa época que os amigos existem em função do que temos e não do que somos. Evitavam-me. Minhas dívidas foram parar irremediavelmente nos cartórios de protesto. Por fim, o último golpe: Por determinação da justiça, o pouco que me restava foi primeiramente penhorado e mais tarde liquidado em leilão público. Meu Deus! Toda aquela gentalha chegando, pisoteando o jardim, invadindo o espaçoso salão, ávidos todos de levar barato os meus móveis, a minha prata e meus preciosos instrumentos musicais amontoados num canto, descuidadamente. O leiloeiro, oficial de justiça, berrando a todo o momento, exigindo silêncio entre a balbúrdia dos interessados que se acomodavam em cadeiras improvisadas, prosseguia, oferecendo por bagatelas: “Temos agora essa raridade, este magnífico violino. Está avaliado em cinco mil dólares... Alguém quer dar o lance para adquiri-lo? E agora este piano de cordas verticais. Três mil dólares. Muito bem, senhor. É seu. Por favor, assine aqui. Vejam esta maravilha...” Meu Deus! Não pude suportar aquilo. Nunca mais voltei àquela casa, nunca mais. O fracasso tornou-me irascível e amargo. Perambulei muito tempo de cidade em cidade, tentando me reerguer. Afinal, fiz uso de um diploma de Direito, abrindo um modesto escritório em uma pequena cidade do interior. Vegetei assim por seis anos, sem amigos e sem clientes. Fui viver de emprego. Engoli meu orgulho. Acostumei-me. Acomodei-me. Isso tudo, porém, corrói-me por dentro, essas lembranças fazem-me velho, um velho que odeia cada minuto que vive, mas que reprime esse ódio dentro de paredes de pedra, sim, dentro de duras paredes de pedra.
          — Ahn? O quê? — emergi subitamente do poço onde me afundara. O visitante, que pouco antes conversava com o menino de perna engessada, havia se aproximado de mim.
          — Ei, companheiro! Essa música te pôs em transe, né? Tu estás muito longe da mesa grande. Traga tua cadeira para mais perto.
          Para não discutir, acedi e arrastei a cadeira e coloquei-a entre a do visitante e a da viúva.
          — O cara da flauta é bom mesmo, né? — disse-me, voltando a sentar se.
          — É — concordei.
          Os músicos tocaram sem intervalo “Índia”, “Meu primeiro amor”, “Recuerdos de Ipacaray”, “Bago el cielo del Paraguai” e “Mis noches sin ti”. O som da flauta chegava aos meus ouvidos, ora como um longínquo lamento, ora como o choro manso de uma criança, outras vezes, como o canto de uma mulher cheia de saudade. O visitante me contava sobre a namorada que tivera e perdera. Casara-se depois por conveniência, com outra mulher e não era feliz. Vivia dos sonhos que traziam de volta os beijos e as carícias da primeira garota e amante. Seu corpo se contraía, a pele se arrepiava e ele, para se defender da tristeza que a música impiedosa agravava, retorcia-se, afundava a cabeça nas mãos, enfiava os dedos entre os cabelos e pronunciava sons incompreensíveis. Um pobre diabo. À última música da seleção juntara-se a voz grossa do Dr. Américo em dueto com a voz roufenha da senhora Nancy, o que conferia à canção uma intensa melancolia, cujo efeito era o de ir me congelando por dentro: o sangue, o coração, a vida, a alma. Ao meu redor, visão surrealista, aqueles fantoches, oscilando ao sabor das notas em surdina, aqueles copos bebidos pela metade, a mesa pegajosa, cinzeiros nauseabundos, odor forte de desodorante, o homem barbudo que vem do mictório em passos de bêbado que não quer parecer bêbado, o gosto amargo de não sei quantos copos esvaziados, e aquelas vozes no ar, e aquela hipocondria mórbida tomando tudo, e a solidão pesando... pesando, soterrando-me, inevitavelmente. Vilma. Onde andaria Vilma? Onde estaria aquela mulher que havia pacientemente esperado que eu superasse meus problemas? Na verdade, o começo do fim fora a partida de Vilma. “Adeus, fique com tuas dívidas, teu rancor e teus malditos instrumentos” — dissera-me ela, com a decepção de muitos anos estampada no rosto molhado de lágrimas.

          A seleção musical terminou. Novamente alço-me das profundezas do poço. Os músicos e os cantores iniciam uma animada conversação sobre as qualidades artísticas do quarteto improvisado. Num instante, porém, o flautista assume a palavra e desmancha-se em elogios à senhora Nancy e a si próprio. O meio-sorriso do médico e o efêmero entusiasmo do violonista vão sendo substituídos por uma expressão de raiva impotente à medida que o diálogo deixa de incluí-los. O casal de namorados se separa, a moça dirige-se à toalete e o rapaz escreve alguma coisa num guardanapo entre gestos de quem medita. A viúva comentara que ele tinha pretensões de poeta. Ao meu lado, o visitante, já recuperado do sofrimento de antes, ouve outra estória do rapazote de perna quebrada. Presto atenção:
          — Ele era um pai para mim — estava dizendo o garoto — aliás, melhor que um pai, porque o meu largou a minha mãe quando eu tinha sete anos.
          — E ele era padre?
          — Quem? Meu pai?
          — Não, não! Esse que morreu.
          — Ah! Sim, ele era padre. Era desses padres que nem parecem padres. Era amigo da gente, bebia cerveja no bar, torcia pro Palmeiras, como todo bom italiano e gostava de rock ’n’ roll. Todo mundo era amigo dele, sem distinção de cargo, raça, religião ou educação. Com seu jeito brincalhão, conseguia tudo o que precisava para a igreja e principalmente para ajudar os mais humildes. Resolvia qualquer pendenga: a mulher brigava com o marido, lá ia o padre Mauruto ajeitar a situação, um pai não aceitava fulano para namorado da filha, ele acertava o assunto e acabava celebrando o casamento, um homem perdia injustamente o emprego, o padre intercedia junto aos responsáveis e fazia-se justiça. Assim era o padre Mauruto.
          — É. Não há muitos padres assim hoje em dia...
          — Não há mesmo. Eu me tornei amigo dele logo que ele chegou aqui. Passei a frequentar sua casa e ele me ajudou bastante. Me fez compreender muitas coisas, coisas que me recusava a encarar... , mas ele morreu, morreu brutalmente... — e os olhos do rapazote encheram-se de lágrimas que escorriam pelo rosto imberbe. — Morreu em um acidente de carro... Eu não consigo aceitar... Não posso...
          — Calma, menino! A morte nunca é bem vinda e vem sempre quando menos se espera. Tu superas isso. Tu superas isso — consolou o visitante.
          — Não sei... Não sei. Era meu único amigo, o único com quem podia me abrir. O único que me entendia.
          — Tu superas isso, tu vais ver — repetia consternado o visitante.
          O mocinho silenciou e enxugou o rosto. Bianca, que no começo da noite havia desencorajado de vez as investidas românticas do violonista Rangel, vendo o rapaz tão desconsolado, quis confortá-lo:
          — O que é isso Júlio? Chorando por causa de um padre? Não era nem mesmo seu parente. E dizem por aí que ele não era assim tão santo...
          O rapaz enrijeceu-se. O rosto desfigurou-se, pálido, as mãos crisparam-se e num ricto de profunda revolta contra tamanha insensibilidade e explodiu:
          — Vaca! Filha da puta! — e todos na mesa pararam de conversar e, colhidos de surpresa, ficaram a olhar para o jovem que continuava vociferando em direção a moça: — Você não tem o direito... Sua biscate... Eu não admito.
          Finalmente, parou de falar e começou a soluçar com grande comoção. A garota, abalada pela inesperada reação do rapaz e tremendamente envergonhada, tinha o rosto entre as mãos e chorava baixinho. Um pesado silêncio dominou o ambiente por alguns segundos. A flauta, por fim, começou a tocar. Ruído de corpos acomodando-se nos assentos. O violão juntou-se à flauta. Um trago de bebida nas gargantas secas, comentários à boca pequena, risos mal contidos, e em poucos minutos o incidente estava esquecido. Pobres seres miseráveis! Animais indiferentes mascarados de gente. Todos cheios de falsa alegria. Não pude deixar de lembrar os versos de Metastásio: “Si a ciascum l’interno affano / si legesse in front scritto / quanti mai che invidia fanno / ci farebbero pietá / Si vedria che i lornemici / hanno in senno, e si reduce / nel parere a noi felici / ogni lor felicitá”* 
          Bianca deixou o salão discretamente durante a primeira canção, após o desagradável diálogo com o rapazote da perna engessada e levou consigo o garotinho louro que adormecera no regaço da viúva. O local, com exceção da mesa que ocupávamos, estava deserto. Era madrugada. Dois homens de meia idade desceram a escada e ocuparam lugares perto dos dois músicos. Um deles, o que parecia mais velho, logo se afastou do grupo e sentou-se sozinho numa mesa mais isolada. Trazia um ar constrangido de quem não encontra guarida em parte alguma. O outro, ao contrário, era descontraído e conversador e logo tomou o violão das mãos de Rangel, deixando-o sem a única arma de que dispunha para ser aceito na roda. Tocaram uma série de chorinhos e sambas. O ambiente reanimou-se. Esqueci por algum tempo o “mal secreto”. Por fim, devolveu o violão ao dono e disse que ia declamar.
          Começou com amenidades. Recitou com voz grave e maliciosa “O som que eu gosto muito” de Crivelli e “De preto assim” de Nidoval Reis. Os ouvintes aplaudiram o alegre e experiente menestrel. O violão iniciou o solo de uma canção dolente e ele declamou “Aquele meu balão” de Araújo Jorge, em seguida “In extremis” de Olavo Bilac. De novo aquela frialdade começava a invadir-me, e, mansa, mas inexoravelmente, ia envolvendo a todos. Afora a voz do velho boêmio, reinava no recinto um silêncio mortal. “Esta existência não vale a angústia de viver...”— soavam convincentes as frases de Guilherme de Almeida — “para o pobre, a vida é o pão e o andrajo vil que o cobre. Deus? Ah! Deus, eu não creio nesta fantasia... Deu-me esta vida, um pão envenenado... Um pão envenenado...”
          Olhei para fora, por cima do cocho de samambaias. As nuvens mais baixas escorregavam sobre uma fímbria de claridade no horizonte e já se divisava a superfície imóvel do grande lago. Um vento frio soprava para dentro do salão um cheiro agreste, um gosto de terra. As pessoas pareciam inquietas com a chegada da manhã, como vampiros que temem o sol e procuram seus ataúdes aos primeiros alvores do dia. O corpo me tremia em arrepios e violentas comichões. Todos conversavam molemente, sem vontade, sem assunto. A viúva me estendia um dos exemplares do disco do flautista. O homem na capa era mais gordo e tinha um grande bigode envolvendo o bocal da flauta. Parecia-me familiar. Passei o long play para o visitante e virei-me para a viúva que se dirigia a mim, em voz baixa, malevolamente:
          — Esse camarada, hem? Gosta de se exibir. Só gravou esse disco e deve ter sido há muito tempo.
          — Hum... — grunhi.
          — Você é bem calado, não?
          — Um pouco...
          — Bem, não ouvi você dizer uma única palavra a noite inteira...
          — É. Eu prefiro escutar.
          — Você é como a coruja, né? Falar não fala, mas presta uma atenção... — gracejou sem nenhuma graça a mulher, inclinando o rosto e o corpo obeso, obrigando-me a sentir-lhe o hálito tresandando nicotina velha.
          — Talvez — murmurei aborrecido.
          — Você não está com sono?
          — Não. Quase não durmo, quero dizer, durmo muito pouco.
          — E por que isso?
          — Sei lá.
          A mulher inclinou-se novamente para mim, dessa vez, roçando os seios moles em meu braço e os cabelos mal tingidos no meu rosto, e sugeriu:
          — Se você quiser, tenho uma cama bem maciazinha lá em casa...
          — Ora, vá pro inferno você e sua cama maciazinha... Vá cuidar de seu filho — falei entre dentes, enojado, desgostoso com a falta de pudor da megera.
          — Brocha! — cuspiu-me ela com raiva e escárnio.
          Aprumou-se na cadeira e virou-me as costas, num gesto de desdém, achando que eu fosse me importar, pobre criatura! Desprezível, vulgar, libidinosa.
          O declamador estava perguntando ao artista sobre a procedência da flauta dourada. Esse mais uma vez falava da flauta dourada para a platéia sonolenta:
          — Esta flauta, como já disse antes, ganhei-a de um amigo. É austríaca. Aliás, vou contar uma coisa interessante sobre esse amigo — o flautista limpou a garganta, refez a postura e continuou: — Faz muito tempo... Nunca mais soube do tal. Ele tinha uma grande frustração, apesar de ser muito rico. Era incapaz de tocar qualquer instrumento musical e tinha verdadeira obsessão pela música. Ele me disse um dia em que o visitava que daria tudo pela minha habilidade de tocar uma flauta. Morria de inveja de qualquer músico... Coitado!
          Um calor crescente ia me subindo pelas pernas, enquanto o flautista prosseguia em sua narrativa. Uma queimação no estômago cheio de álcool me vinha à boca em ameaças de vômito. O flautista falava de mim. E, à mesa, todos riam, mal prestando atenção no ódio que me transtornava. Ele também não me reconhecera. Ele tornava pública minha dor mais cruel, e contava sorrindo, com uma pose teatral, odiosa, e continuava:
          — Esse amigo possuía uma sala muito grande, enorme mesmo. Lá colecionava tudo quanto é tipo de instrumento musical para compensar sua incapacidade... Eu acho. Ah! E não era só em música que ele era incapaz não... — e todos, antecipando o que ele ia dizer, tal a malícia que imprimira à palavra “incapaz”, caíram na gargalhada.
          — Mas esse tal era mesmo um doido varrido, Carlos. Um maníaco-depressivo. Onde se viu tal aberração? — interrompeu a mulher do médico ao que todos riram concordando.
          Dentro de mim havia um vulcão borbulhante, latejante, forçando perigosamente as paredes de pedra.
          — Ele era um coitado... — continuava o flautista, incentivado pelo ambiente festivo que havia criado com sua história. — Nem a mulher dele aguentou tanta excentricidade. Ela o deixou por isso e por outras coisas... — a mesa vibrava ante a interpretação do palhaço. — Ela me contou tudo durante uma noite em que a encontrei numa boate. Disse-me que havia sido infeliz com ele e que sem ele tinha piorado ainda mais. Tornara-se uma prostituta.
          — Pobrezinha! — condoeu-se o velho que declamava.
          — Melhor pra ela! — redarguiu a senhora Nancy. — Antes isso do que suportar a vida com um idiota desses — e ao dizer isso seus olhos pousaram no marido que babava de bêbado, largado na cadeira da cabeceira da mesa.
          — É, talvez você tenha razão, Nancy. Foi o que ela preferiu, afinal... — retomou o homem da flauta dourada.
          Mais risadas. Meu ódio crescendo, incontrolável. As paredes de pedra cedendo.
          — Ele chamava o salão de instrumentos de quarto das desilusões, pois lá curtia todas as suas desditas, os seus desenganos. Era um refúgio, onde se escondia para remoer sua impotência com os instrumentos e, quem sabe, com a mulher.

          Todos riam, saboreando com avidez, a minha desgraça. De repente, todos estavam olhando para mim. As paredes de pedra arrebentando. Minha mão apanhara qualquer coisa por entre os cochos de samambaias. Houve gritos, correrias. Eu estava em frente ao flautista. A toalha vermelha, um líquido vermelho, viscoso escorria de minha boca em náuseas violentas, eu segurava o macete de pilão. No ladrilho frio da churrascaria, o flautista, em seu terno de linho branco, esvaía-se em sangue com o crânio arrebentado. A seus pés, toda retorcida, a flauta dourada calara-se para sempre.

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*Nota do autor: ”Se se lesse na fronte de cada um a mágoa interior, quantos que agora nos causam inveja, nos causariam piedade. Ver-se-ia que têm no próprio seio o seu inimigo e que toda felicidade deles se reduz a fingir para nós que são felizes“.



 
HFigueira
Enviado por HFigueira em 26/08/2011
Reeditado em 01/02/2012
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